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Escrever na terceira pessoa é mais do que uma simples escolha estética. É um recurso de conforto, pelo qual o escritor se protege do risco de encarnar as próprias angústias. Por isso, tantas vezes o personagem é um infeliz, escolhido para sofrer no lugar de quem escreve. O plural majestático também não deixa de ser um truque: escrever em nome de um grupo é uma maneira de se sentir menos sozinho, além de ser um ótimo instrumento retórico. No entanto, existem temas em que essa conveniência acaba parecendo uma covardia – e a morte é um deles. 

Escrevo este texto em meu próprio nome. Não estou em luto, nem sequer me sinto especialmente triste, mas venho pensando sobre morrer. É que me desespera um pouco o fato de que, mesmo sendo jovem, tenho pouco tempo para viver. Imagino que alguns de vocês discordem, mas ninguém me convence de que algumas dezenas de anos por vir me serão suficientes para esgotar todo o desejo que carrego por aí. Me sinto como um palhaço equilibrando um copo cheio sobre o nariz: os solavancos o fazem transbordar molhando meu rosto, enquanto solto gargalhadas tristonhas, lembrando que um dia inevitavelmente haverei de perder o jogo de maneira definitiva.

Não pensem que não me esforço por deixar o pensamento sobre a morte para mais tarde. Nunca fui um bom estoico, sempre preferi o sábio espinosista que pensa mais na vida. Vocês haverão de me desculpar por falhar desta vez. É mais forte do que eu essa sombra que me acompanha, e que corre tão rápido, mas tão rápido, que não importa o quanto eu corra, insiste em me perseguir. Às vezes, ela cresce justamente nos momentos em que a vida mais se afirma em mim. Que as mais belas vivências sejam as que mais nos lembrem do fim é uma dolorosa contradição, que já não posso mais ignorar.

De toda maneira, estou vivo agora mesmo e, por mais que seja apenas por um instante, me sinto convocado a falar da morte como quem vive. Nesse caso, haverão de me desculpar os que já morreram, pois só me resta buscar alguma saúde neste misterioso fato de pensar sobre morrer. Eu consigo ouvir vocês, é uma batalha perdida, eu sei. Já vivi tempo o suficiente para perceber que as coisas não voltam mais. Tanta coisa em mim já se foi, algumas estão indo neste exato momento, e percebo também o quanto ainda vou perder: a força, os cabelos, a voz, os amigos, a memória, as letras, as notas, as canções e os amanheceres me serão levados.

Todo encontro é também uma despedida na qual evito pensar. A consciência plena do fim é insuportável, e é por isso que eu geralmente prefiro mudar de assunto com divertimentos. A vida sem a morte, entretanto, é um luxo do qual nem sempre eu disponho. Quando a perda de alguém querido não me vem lembrar, o próprio espelho faz o trabalho. Estou cansado de desviar o olhar e, neste momento específico, uma questão lateja entre minhas ideias: se a vida é um esforço, se viver é uma luta, eu tenho o direito de escolher como lutar e quais armas usar. Mais do que isso, só eu posso decidir quanto tempo quero resistir. 

Não, não estou pensando em morrer já. Ao contrário, a dizer do agora, posso garantir que gostaria de viver para sempre. É claro que eu já tive maus momentos e pensei sobre o suícidio, afinal todos nós conhecemos bem demais a tristeza para fingir que nunca pensamos nisso. É realmente uma questão, mas este texto não é exatamente sobre tirar a própria vida, mas sobre os recursos que teremos à nossa disposição quando ela mesma começar a se retirar. Para dizer mais diretamente, estou falando sobre a eutanásia, isto é, sobre a nossa liberdade de escolher a boa hora para morrer. 

É um tema tão antigo que preservamos o termo o grego (eús + thánatos, literalmente boa morte). A princípio pode parecer contraditório que exista alguma morte boa de morrer, mas o contrário certamente não deixa dúvidas: a depender das circunstâncias, morrer pode ser a ocasião de um sofrimento terrível. É um fato que a vida mais longa não é necessariamente a melhor, mas é ainda mais evidente que o mais longo processo de morrer é o pior1. Apesar dessa certeza, o imperativo de negar a morte é o que conduz a nossa moralidade. A opinião sobre a morte assistida é tão rasa que chega a ser ofensiva: tratam o assunto como se fosse um pecado, um pensamento derrotista, uma falha de caráter… nem parece que quem vai morrer sou eu.

Tem gente que até tenta convencer os outros de que todo sofrimento é uma chance para o crescimento espiritual, imaginem só. É preciso ser muito covarde para fazer alguém se sentir ainda pior por perceber que não consegue mais acessar as alegrias de sua vida. As pessoas parecem se esquecer do nível de indignidade a que o sofrimento pode levar, ele é o verdadeiro avesso da sensibilidade2. A dor física incessante, a dependência absoluta, a incapacidade de reinventar não são contornáveis, ao contrário, elas acabam reduzindo da maneira mais cruel a vida que resta. Quando penso nisso, percebo que não tenho medo da morte, mas sim do morrer, isto é, do fato de que terei de morrer vivendo3

Eu realmente espero que minha morte seja rápida e súbita como uma tempestade de verão, que meu calor se dissipe em petricor – mas infelizmente isso foge completamente ao meu controle. Assim sendo, muitos anos atrás eu decidi que, em algum momento, uma parte da minha atenção será totalmente voltada para o processo de morrer, esta será a arte à qual pretendo dedicar os últimos anos de minha vida4. Tornar a morte mais leve será um talento que terei de inventar ao lado das pessoas que eu mais amo. Não será nada fácil, mas na minha fantasia isso acontece depois de uma longa festa, que haverei de planejar. Então, partirei com lágrimas de saudade nos olhos, como quem comprou uma passagem só de ida.  

Para o coração, a vida é simples: ele bate enquanto puder, e então para5. O problema é que, às vezes, não importa o que aconteça, ele não quer parar, e continua seu ímpeto cego, batendo “não” em cada batida6. Parece uma grande crueldade interromper o seu ritmo, mas como fazê-lo entender como a vida é complicada para nós? Como explicar para este músculo teimoso que já não há motivo para tanto esforço? Viver exige muito mais do que um mero corpo vivo7. Por isso, eu decidi lhe convencer aos poucos, quem sabe ele me perdoe quando a hora chegar. Seja como for, este que me tem sido inegavelmente um amigo do peito, com certeza será o último de quem eu me despedirei, mesmo a contragosto. 

 


1 Rubem Alves dedicou dois textos ao assunto, e sua argumentação é tão sucinta quanto eficaz.
2 “O sofrimento é, certamente, na consciência, um dado, um certo conteúdo psicológico, como o vivido da cor, do som, do contato, como qualquer outra sensação. Mas, neste próprio conteúdo, ele é um apesar-da-consciência, o inassumível. O inassumível é a inassumibilidade. Inassumibilidade que não é devida à intensidade excessiva de uma sensação, a qualquer excesso quantitativo, superando a medida de nossa sensibilidade e de nossos meios de apreender e manter; mas um excesso, um demais que se inscreve num conteúdo sensorial, penetra como sofrimento nas dimensões do sentido que aí parecem abrir-se ou enxertar-se.” Emmanuel Levinas, O Sofrimento Inútil

3 “Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar

Morrer ainda é aqui
Na vida, no Sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar”

– Gilberto Gil, Não tenho medo da morte

4 É claro que estou exposto
eu como todos os outros
animais às intempéries
que cedo ou tarde nos ferem;
mas aqui a noite, seda,
suavemente me enleia:
espelhos olhares vinhos
uvas cachos rosas risos
e ali, do lado de lá
das lâminas de cristal
tão tranquila e cintilante
quanto o céu, sonha a cidade.

Desperta-me um celular:
a morte também tem arte.

– Antonio Cícero – La Capricciosa

5 Karl Ove Knausgård abre com estas palavras a sua série de livros autoficcionais
6 “Heart beating “no” at every beat”, frase dita pela personagem do mais novo longa-metragem de Pedro Almodóvar, o primeiro escrito em inglês, “Room Next Door”
7 “Bom não é viver, mas viver bem” Sêneca

Referências 

O quarto ao lado, Pedro Almodóvar
Carta de Despedida, Antonio Cicero
Sobre a Eutanásia, Antonio Cicero
Sobre a morte e o morrer, Rubem Alves
Não tenho medo da morte, Gilberto Gil
O sofrimento inútil, Emmanuel Levinas
Sobre a brevidade da vida, Sêneca
A morte do pai, Minha Luta vol.1, Karl Ove Knausgård


Como citar

LAURO, Rafael. Coração batendo não. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/11/04/coracao-batendo-nao>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Marie
Marie
28 dias atrás

A crise dos 20 e poucos anos… Às vezes penso em ir para alguma espécie de templo nos últimos anos de minha vida, para aprender a aceitar a morte: por primeira vez vejo uma ideia semelhante expressada em um texto na web.