Quem de nós, se fosse criar fundamentos pedagógicos para o ensino, o faria de tal forma que eles resultassem na prática que se dá nas escolas atualmente? Foi-se longe demais. Só sobre os escombros disto que chamamos escola é que podemos repensar um aprendizado libertário. Comecemos por questionar o currículo, neste texto seu âmbito formal, no próximo no que convém chamar de oculto e, por fim, colocaremos três princípios rizomáticos como proposição.
A definição formal de currículo, a que vem da expressão latina curriculum vitae, faz referência aos diversos assuntos de que se compõe um curso. Língua portuguesa, Matemática, Ciências naturais, Ciências sociais e políticas, Artes e Educação física. Ensinar estas matérias aos pequeninos, eis o propósito da nossa escola. Apenas isso? Não, existe o tal do currículo oculto, que inclui o aprendizado das diretrizes do comportamento. A tal da sociabilidade, defendida pelos pedagogos como uma das principais funções da escola.
Qualquer leitor que frequentou ou frequenta a escola sabe alguns dos defeitos do programa do nosso ensino infantil, fundamental e médio. Todos nós lembramos, no mínimo, que a escola causa sofrimento tanto ao aluno quanto ao professor. Mesmo correndo o risco de não trazer grandes novidades, ressaltaremos quatro pontos do ensino, baseado neste currículo formal.
Tudo indica que a nossa escola moderna, em oposição à antiga grega, foi concebida no modelo industrial. Como uma fábrica, a escola recebe a matéria-prima com a função de transformá-la em algo útil e produtivo. A criança chega aos três anos e sai aos dezesseis, se não falhar nos constantes testes de qualidade promovidos pela direção. Bate o ponto ainda na primeira hora da manhã, ou da tarde, e desempenha sua função por um ou dois períodos. Sua função? Encaixar-se no ideal de bom funcionário, digo, aluno. Aquele que não desperdiça tempo com bagunças, que aprende em bom tempo, que respeita o ambiente de trabalho, que obtém as melhores notas nas avaliações.
No Brasil, temos o agravante da ditadura civil-militar. Os dirigentes do país instauraram uma lei em 1971 que ficou conhecida como a reforma tecnicista das escolas, tirando entre outras matérias a música e a filosofia e colocando os famigerados estudos morais e cívicos (!). Como o nome indica, a reforma tinha como objetivo “a qualificação para o trabalho” para satisfazer as “necessidades do mercado” (Lei nº 5672, Arquivo do Estado de SP). Esta diretriz mercadológica clara durou uma década, quando outra lei, em 1982, alinhou novamente a educação no sentido da “formação geral” do estudante. Uma década foi o necessário para consolidar ainda mais as diretrizes fabris e mercadológicas da escola e estender uma herança sombria de quase 40 anos sob a qual estudaram várias gerações. Todos nós nos lembramos de cantar o hino nacional na escola todas as semanas, não é mesmo?
Feito este sobrevoo histórico da constituição de nossas escolas, ressaltaremos quatro críticas à escola atual e seu curriculum que nos parecem sobretudo pertinentes e essencialmente alinhadas a esta dupla herança. Importante destacar, antes de qualquer coisa, que existem bons professores apesar da instituição escolar, que é aqui o alvo de nossas críticas. Bons professores, muitas vezes apenas um par deles, sustentam ainda boas formações.
Comecemos pelo pior. A escola desconsidera a vida, considera, por sua vez, o trabalho. É fato que todos deverão trabalhar, a crítica não é esta. A questão é que, ainda hoje, formam-se alunos segundo uma exigência mercadológica de disciplina e operação. Não só através do programa escolar, mas da maneira como se este se aplica, isto é, a maneira conteudista e mecânica com que os assuntos são abordados. Sem sentido real, os assuntos são fragmentos empilhados aleatoriamente (Edgar Morin). Recortam-se pedaços de grandes campos do saber humano e transmitem-nos sem o mínimo de interesse prévio. Conhecimento passado verticalmente jamais se difunde, é a horizontalidade que constrói. Ignorar a formação para a vida é, no nosso entendimento, a maior das falhas. O trabalho é apenas uma parte da vida, aliás, uma parte que gostaríamos que fosse cada vez menor e melhor. Onde, na escola, pensa-se sobre a vida e pela vida, no prazer e pelo prazer? Na potência possível que carrega o ser? Veja, não é só filosofia. É o que se pode chamar de interesse verdadeiro. A vida está acima da filosofia, da matemática, da história e da geografia, mas pode compor-se delas e de tantas outras matérias segundo o nosso interesse, segundo o que nos parecer vital!
Segundo. A escola desconsidera o ser, considera a massa. Na sala da aula, a individualidade perde o lugar para o coletivo. Com exceção ao que concerne à satisfação das necessidades, não faz sentido falar em coletivo. É impossível ensinar para a vida sem preservar a individualidade, pelo simples fato de que somos todos diferentes e, consequentemente, temos vidas diferentes. Assombra-me constatar que na escola usamos uniformes, somos chamados por números, aprendemos as mesmas coisas, seguimos as mesmas regras… tornamo-nos um, o que é impossível, mas o processo constrange qualquer produção de realidades alternativas em nome da conservação da constante identidade, do corpo organizado.
O terceiro ponto deriva diretamente dos dois anteriores. A escola desconsidera o útil, considera o padrão. Já é triste termos que elucidar que útil não é apenas o que é prático, objetivo e rentável. O útil é necessariamente subjetivo, está no sujeito, é escolhido por ele para seu próprio uso. Não há utilidade dada em objeto nenhum! A arte é um grande caminho para esta compreensão e prática. Ao considerar apenas o padrão socialmente dado, a escola, mais uma vez, ignora seus alunos. Cria seres desinteressados. O professor deve ensinar espanto, diria Rubem Alves.
Por fim, a escola desconsidera o meio, considera o fim. Da alfabetização ao vestibular, não se valoriza o caminho. Transforma-se o agora em uma exclusiva preparação para o depois. Estudaremos hoje, como bons ascéticos, para colhermos depois. Colhermos o quê? Eis a dúvida fundamental. A quê, ou a quem serve este preparo?
Fomos todos reféns, sequestrados na mais tenra idade, por uma instituição similar à prisão e à fábrica que nos obrigou a ser. Um esforço enorme, para um ganho dos mais miseráveis: a manutenção das coisas como são.
Texto brilhante!!
A questão do currículo escolar me fez lembrar do texto do Bourdieu, que fala sobre o capital cultural. Na minha opinião, o currículo escolar contribui para a manutenção das desigualdades.
Parabéns!!
Obrigado pelo elogio e pelo comentário!
Não conheço o texto, irei atrás.
Valeu a indicação!
Muito bom Lauro!
Se não viu ainda, vale a pena dar uma olhada nesse vídeo. Ficou bem famoso nas Universidades por ai.
Spoken Word – Why I Hate School But Love Education
http://www.youtube.com/watch?v=y_ZmM7zPLyI
preciso de mais!!!
Tem outros dois textos! Coloquei os links no começo!