Quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos obriga a instaurar valores, a vida mesma valora através de nós quando instauramos valores…“
– Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, Moral como Antinatureza, §5
Em nossa tentativa de estabelecer quais são as quatro formas de niilismo (fórmula estruturada por Deleuze), passamos primeiro por suas formas negativas, reativas e passivas, que indicam uma força debilitada, consumida pelo ressentimento e a má-consciência. A última forma de niilismo tornou-se para Nietzsche uma de suas mais importantes tarefas: a transvaloração de todos os valores.
Para instituir novas tábuas de valores, só a destruição não é capaz de levar a cabo tal tarefa, ela não é suficientemente poderosa. Atravessar o niilismo, negar sua própria negação, já é abandonar a vingança, o hedonismo vazio, o ressentimento e a nostalgia. Ou seja, a destruição é a condição inicial de toda grande afirmação, ela abre espaço para uma afirmação maior que vai lentamente tomando forma e possibilita a instauração de novas avaliações para os valores. A própria negação se torna tão forte, tão profunda que rompe com as forças reativas, virando-se do avesso.
Qual o valor dos valores cristãos? O cristianismo é analisado por Nietzsche como fenômeno moral, ele nasce com a primeira forma de niilismo, o negativo. O que quer aquele que quer outro mundo? As duras provações de um cristão não indicam seu malogro fisiológico? O cristianismo não seria assim uma forma de estar doente? A hóstia é o pão de cada dia, o remédio que impede a morte do moribundo, mas seus efeitos colaterais impedem de viver, o preço que se paga é alto. O Jesus de Paulo é um lenitivo, o cristianismo funciona enfraquecendo, seu Deus é compaixão, um afeto triste, um dos perigos para o qual Nietzsche nos alertou. O cristianismo só pode ser resumido, na história do niilismo, como a vitória dos fracos.
Após o niilismo negativo, que traz em si mesmo sua contradição (dialética?), o niilista encontra valores humanos: o homem assassino de deus. Valores humanos, demasiado humanos, dominam e definem nossa subjetividade. O niilismo reage contra si mesmo (veja aqui), mas a sombra de deus ainda paira sobre nossas cabeças idealistas. Nietzsche não nos deixa descansar em paz cultuando nossos novos ídolos, ele pergunta, afinal, eles trazem uma nova vida ou uma nova fé? A ciência virou cientificismo, os valores humanos se tornaram cegos para as forças que vêm de fora. Os ideais cristalizaram-se e, por isso mesmo, se tornaram frágeis.
Quando tudo se estilhaça feito vidro, sobra apenas a tentação de pôr fim ao sofrimento. Nos cortamos andando por cima dos cacos dos ídolos que não resistiram ao questionamento do valor dos valores. “Onde está o mar, para que eu possa me afogar?“, se pergunta o último dos homens. O niilismo passivo quer encontrar um fim para si mesmo, quer morrer passivamente (veja aqui).
Mesmo assim, estas subjetividades modernas não seguem uma linha reta e definida, elas coexistem e interagem. A história do niilismo não é dialética, é uma multiplicação de suas formas. É difícil dizer quando estes sintomas levam a vida para seu fim passivo ou irrompem em uma enorme força criadora. Nietzsche busca acelerar um processo em queda livre, que só termina quando o niilismo passivo consome a si mesmo: não há como pular fora (de si e do mundo), é preciso afundar mais e mais. Qual o remédio amargo que a filosofia nietzschiana propõe? Para todo niilismo é necessário uma dose de Eterno Retorno.
O exame, a provação, o desafio, a seleção de forças do Eterno Retorno vira o niilismo contra ele mesmo. É aqui o ponto crucial, a virada acontece com o pensamento do eterno retorno, esta roda que gira rápido e expulsa as vontades fracas. Uma vida que vegeta não retorna, não suporta o peso de tal pensamento. O que é a transvaloração? É esta mudança que ocorre ao encontrar-se com o mais pesado dos pesos. “E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente…“, para o niilista passivo não há escapatória, todo seu corpo treme diante do eterno retorno, toda compaixão, toda culpa, toda adaptação entram em colapso.
A aposta de Nietzsche é de um niilismo que, eventualmente, consome a si mesmo. O niilista ativo dá cabo desta tarefa, ele nega porque quer afirmar algo maior, porque existe algo para além dele que pede passagem. Aí estão as possibilidades de pensar novos valores: o que pode a vida? Passamos muito tempo pensando o que podem os outros mundos, o que podem os ideais, o que pode o espírito, mas nos esquecemos de apostar na nossa própria existência, para esta ainda não foram criados valores (nossa filosofia ainda é sacerdotal), os que temos aí estão velhos e caducos. Estes valores são ou divinos ou humanos, demasiado humanos.
Sim, muitas mortes amargas deverá haver em vossa vida, ó criadores! Assim sereis intercessores e justificadores de toda a transitoriedade”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Nas ilhas bem aventuradas
Nietzsche, com a proposta de transvaloração de todos os valores impõe a mais alta exigência já feita à humanidade. Caminhávamos impotentes, arrastados de um lado para o outro, sobre uma terra infértil. Valores divinos ou humanitários eram nossa bússola, nosso niilismo transformou-se lentamente em um nada de vontade, um niilismo passivo que já não tem forças nem mesmo para caminhar. Mas a filosofia nietzschiana nos ensina como caminhar para a grande saúde. Onde quer que estejamos, é preciso caminhar buscando a expansão e o crescimento, caminhar sem saber ainda para onde, mas agora usando como bússola o próprio corpo e as relações que ele efetua em seus caminhos. O crescimento é feito nos encontros, não há mais tábuas de mandamentos, apenas mapas abertos, com montanhas, trilhas, rios, matas fechadas e clareiras.
Chegou um tempo em que não adianta morrer
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem
A vida apenas, sem mistificação”– Carlos Drummond de Andrade, Os Ombros Suportam o Mundo
É estritamente necessário fazer apostas, confiar. O homem moderno já não pode recuar diante de sua tarefa, não pode deixar para os homens do futuro que realizem as “profecias da transvaloração”. Nietzsche buscou realizar em si mesmo esta tarefa, ele confia tanto em suas ideias que é o primeiro a colocá-las em prática e utilizar-se como cobaia. Sua busca pela transvaloração de todos os valores não podia concretizar-se sem que ele mesmo operasse essa transvaloração em si mesmo. O Eterno Retorno lhe tornou a vida leve, quando esta lhe exigia o que tinha de mais pesado. Não foi fácil, durante anos Nietzsche lutou internamente para obter a força necessária para realizar tal tarefa. Como primeiro livro para a transvaloração Nietzsche escreveu “O Anticristo”, o primeiro grande passo, um grande Sim travestido de não!
Transvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema autoconsciência da humanidade, que em mim se fez gênio e carne”
– Nietzsche, Ecce Homo, Por que sou um destino, §1
Pensar uma psicologia é então pensar uma contra-história da psicologia, é pensar contra esta história, contra esta passividade, contra esta subjetividade, contra estes padres e idealistas que ainda nos corrompem e escravizam com suas vontades doentes. Descreveram nosso interior desconhecido como monstros perigosos, tudo para nos transformar em animais domésticos dóceis. A cultura, que poderia libertar, é a que mais nos escraviza, as armas estão viradas contra nós. Nietzsche vê o seu tempo como um tempo de morte e fraqueza, imagens e cópias, rotina e passividade.
A afirmação está acima da forma homem, está para além do homem, isso nos assusta, porque nos apegamos às forças que nos impedem de ir além, mas chegou a hora, diz Nietzsche. Florescimento e prodigalidade só nascem no excesso (como uma árvore ou uma flor). O homem não é da civilização, do povo, nem mesmo da raça humana, ele é algo a ser superado. É preciso operar com precisão e urgência uma transvaloração de todos os valores.
Pra mim, é como se o Nietzsche deixasse em aberto algo que levasse o desejo do homem a se superar, assim, com a perspectiva de maldição através das repetições das coisas, sejam boas ou ruins, o homem se cansa da eternidade repetitiva e começa a ter o desejo de se superar infinitamente, um grande passo para ser o Super-homem nietzschiano.
O melhor texto que já li sobre Nietzsche na internet.
Gostei do texto! Queria saber sobre essa imagem da santa ceia no fim do texto. Qual seria a leitura dela atual na forma como ela se apresenta, se tiver né!
Essa imagem representa as ligações que são tecnicamente nossos neurônio ou seja esses supostos ideais/divindades estão na nossa imaginação dentro da nossa cabeça, não passam disso
Explicou sem confundir mais o entendimento do conceito
Em qual obra Deleuze formula e trata as quatro formas de niilismo. Se alguém puder, responda por favor.
E aí, Matheus
É o Deleuze que organiza assim no livro “Nietzsche e a Filosofia”
Abraço!
Rapaz, você se garantiu viu! Parabéns mesmo.
Niilismo
Quem luta contra o niilismo se cobre de um manto perfurado pela negação. Nietzsche ao pensar a partir do niilismo se deixa perceber como niilista. Se esconde nas capas da reflexão. O superar de si, a vontade de potência são artefatos onde se pode esconder o desejo de um “super homem”.
Quem vai além no aquém se perde.
Nietzsche morreu completamente louco, demente. Convém lembrar isso a quem vai dedicar tempo ao pensamento dele.
ainda assim vale a pena ariscar!
Este é o melhor comentário kkkkkkkk Nietzsche foi um marco na filosofia
ele morreu de uma doença chamada Sífilis transmitida sexualmente
Texto muito bem escrito, deixo meus parabéns ao autor. Eu só me pergunto, quanto a ideia de transvaloração, eu entendo que o conceito é se libertar dos valores e morais metafísicos e humanos que nos aprisionam mas como viver em uma sociedade sem valores humanos? Os valores como respeito, empatia, solidariedade, por exemplo, que fazem parte da convivência social teriam também que ser negados e fazer o que bem quisesse já que não teria um limite para o ser humano? Como seria aplicar isso no mundo contemporâneo? Eu vejo que somente de um ponto de vista subjetivo que se poderia… Ler mais >