Vimos que a Folha é o centro, o meio, a ligação; vimos que a Raiz é suporte, aprofundamento que leva mais longe. E a flor? A flor é a parte sexual. Ela é ao mesmo tempo o que se dá para o mundo e o que atrai em seu seio. A flor e o fruto são o laboratório de máxima conjunção, onde as diferenças se encontram com maior intensidade.
Por isso, podemos definir a flor como a explosão da diferença: com inúmeras formas e cores, ela é o exótico, aquilo que faz fronteira com o fora, e mais, o chama, o convida para entrar e se transforma. O signo da flor é a metamorfose.
A flor é a conjunção aberta, ela prova que a vida é interdependência. A vida vegetal se faz como um conjunto de multiplicidades que se abre para outros conjuntos de multiplicidades. E na flor esta multiplicidade atinge o ápice, se abre porque não cabe mais em si! É o momento em que a vida quer ir além, quer quer dar um passo para além de si mesma.
Sabemos disso, a vida pode torna-se pequena para ela mesma, e quando isso acontece, a casca na qual ela está precisa se quebrar para seguir em novas direções. Neste sentido, reprodução de forma alguma é mera duplicação. Não, isso seria pouco para a vida. A flor que vem não procurará assemelhar-se aos antepassados (subvertendo a expressão ridícula: “quem sai aos seus não degenera”). Muito pelo contrário, absolutamente ao contrário: a reprodução é exatamente o movimento de afastar-se da imagem, é geração contínua e intensa. Fecundar é ir para além de si, é um exercício de despersonalização.
Todo o movimento anterior nos traz até aqui. O primeiro movimento foi entrar em relação: filtrar a multiplicidade de fora e relacioná-la com a multiplicidade interna, cortar e recortar o mundo segundo medidas vegetais. O segundo movimento foi criar raízes, fazer uma disjunção inclusa entre a terra e o céu, encontrar o ponto de apoio dentro do movimento universal para não perder-se universo afora. O terceiro movimento são os frutos de tudo isso: o que brota desta conjunção? Vai pra mais longe ou se perde dentro de si? O que, neste movimento de auto-apropriação, nos faz devir outro? A posse de si mesmo é (lembrando paradoxos de Heráclito) perceber-se outro, fazer-se outro, ao mesmo tempo ser e não ser. A flor é o órgão voltado para o futuro, ela quer que o novo apareça.
A flor mostra, frequentemente, um mecanismo inverso: o da desapropriação de si”
– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas
Tornar-se quem se é para tornar-se quem não se é ainda, eis a flor! É o mais belo movimento da vida: abertura de si, conjunção com a diferença. A natureza tem desses mecanismos, que nos abrem para o mundo. E isso de modo algum concentra-se num ponto único. Não é a parte sexual que se abre para o outro, é todo o conjunto. Quem não floresce não sabe, quem não experienciou não aceita tal possibilidade.
O exemplo clássico: a vespa e a orquídea, para que a orquídea vá adiante, ela precisa entrar em conexão com outro reino, o animal, para que deste encontro, ela seja lançada mais longe. Este é o devir-vespa da orquídea, ela não imita a vespa, ela entra em sua zona de ressonância para ampliar a sua capacidade de afetar. O reino animal faz amor com o reino vegetal, quando come seus frutos (o que mostra que existem inúmeras maneiras de amar). Outro exemplo são os esporos jogados pelas plantas no ar. É pura virtude dadivosa. Para que a vida siga, ela precisa ser excessiva, é preciso exceder-se.
Mas o que é a semente? Ela é como um pequeno feto? De certa forma, podemos dizer que sim. Mas o que é qualquer pequena vida que começa a surgir de um pequeno grão? De onde vem tanta potência, tanta sabedoria? (como um feto sabe que é um feto humano, por exemplo? Como uma araucária sabe tornar-se araucária?). Encontramos um dos mistérios da vida e temos muita dificuldade de respondê-lo porque estamos acostumados a pensar que o pensamento está apenas em nossa cabeça humanas, demasiado humanas.
Não é porque pensamos com nossa cabeça que o pensamento pertence ao cérebro. Uma semente também pensa, mesmo que num sentido totalmente diferente do que estamos acostumados. A semente carrega consigo uma forma de saber. Um ovo é um conjunto de forças virtuais, uma semente é a mesma coisa, existe, sem ser atual, pois já carrega consigo a arte de desviar forças, cortar e recortar segundo suas medidas. Neste sentido, uma semente é como um pequeno cérebro. A semente é o cérebro do mundo vegetal! Lembrando que a semente apareceu milhares de milhares de anos antes.
Dizendo-o de outro modo, existe um cérebro material e não nervoso, um espírito imanente à matéria orgânica enquanto tal. Por meio da vida, a matéria pode tornar-se espírito – começando a viver. A manifestação mais evidente desta forma elementar de ‘cerebralidade’ é encarnada pela semente”
– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas
Os estoicos nunca se deixaram enganar, nosso intelecto faz parte do Logos, que é a própria natureza. Nós pensamos dentro do pensamento da natureza. Temos pensamentos humanos, claro, mas apenas isso, uma perspectiva dentro do todo. A semente possui uma forma de saber que nem de longe a vã filosofia europeia sonhou. Se o saber é a potência de criação da vida, então a semente é uma de suas melhores representantes.
Trata-se, no fundo, de alargar o sentido das noções de saber e pensamento numa direção oposta à do aristotelismo. Não se trata de fazer do intelecto um órgão separado, mas antes fazê-lo coincidir com a matéria”
– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas
Desta maneira, podemos dizer que a flor é o cérebro das plantas, ou melhor, o aparelho sexual das planta é o que é o cérebro para o animal. Em uma frase: a planta pensa com suas partes íntimas. Pura força pulsional. Ora, isso torna Darwin uma espécie de psicólogo e Freud uma espécie de biólogo, não é mesmo? Pois toda forma é um resultado destas forças mais profundas que se agitam dentro de nós. Uma força inconsciente que nos impulsiona. Quem estudará o inconsciente vegetal?
A razão é uma flor: poderíamos exprimir esta equivalência dizendo que tudo o que é racional é sexual, tudo o que é sexual é racional”
– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas
Neste sentido, talvez seja possível dizer que um intelecto subjaz toda a matéria, sem exceção. A planta possui um conhecimento claro e distinto, mas não consciente. Este é o segredo, as plantas pensam sem cérebro, algo que os estoicos já diziam, há um intelecto universal que preenche tudo, inclusive aquilo que não tem cérebro. Talvez o cérebro seja apenas uma grande antena de captação desta razão, mas que não é sua exclusivamente.
Em suma, a razão é o que dá forma a tudo o que existe, mas ela não precisa do cérebro! Ela pode até beneficiar-se deste, mas certamente não precisa deste órgão tão relativamente novo na história da vida. Mas outra observação se torna muito importante: esta razão não busca o mesmo, busca a diferença.
A razão, a flor do cosmos – é uma força de multiplicação do mundo”
– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas
Quando há afirmação da vida, o que retorna é o diferente. Quando deixamos que estas múltiplas forças se afirmem, o mundo se abre para a diferença. É lindo de ver e fácil de comprovar porque é isso que encontramos ao contemplarmos qualquer jardim, qualquer floresta, qualquer bioma. Tudo que se afirma torna-se cedo ou tarde outra coisa.
A razão não é já a realidade do idêntico, do imutável, do mesmo; é antes a força e a estrutura que obriga todas as coisas a misturarem-se com seus semelhantes pelo viés do dissemelhante a fim de modificar os seus rostos: ela é a força que deixa ao mundo e aos encontros casuais o cuidado de redesenharem a partir do interior os rostos dos seus componentes”
– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas
A natureza não teve que esperar pelos seres humanos para pensar. As plantas fizeram isso muito antes da chegada do homem. As forças vegetais dobraram as forças minerais e solares a fim de multiplicar a diferença. A vida vegetal é a maior aceleradora de partículas que a humanidade já viu.
Quebramos então a ligação entre ser humano e razão. Tiramos o pensamento do cérebro. A razão é uma força universal, pulsional, sexual, que se manifesta em maior ou menor grau dependendo do lugar, do momento, do clima e da atmosfera. E nós? Nós nos semeamos como sementes, nos abrimos em flor, porque amamos a invenção, a experimentação e a diferença.
Sensacional.
Me fez lembrar o trabalho corpo-flor da Castiel Vitorino Brasileiro. Que conexão fantástica
Maravilhoso!!!
Fabuloso!!!!!