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Devemos falar apenas do que não podemos calar; e falar somente daquilo que superamos — todo o resto é tagarelice”

– Nietzsche, Humano Demasiado Humano II, prólogo §1

Alexandra Levasseur

O conceito de vivência se torna cada vez mais importante para Nietzsche ao longo de sua obra. Principalmente a partir de do livro Aurora. Se uma vivência leva tempo para tornar-se madura, o mesmo vale para ela enquanto conceito para Nietzsche. Para o filósofo, as vivências estão sempre inscritas no corpo, e isso demora para amadurecer, não acontece da noite para o dia.

Em um primeiro momento ela é a imediaticidade da vida, ou seja, é simplesmente um estar presente quando algo acontece, uma ligação direta, um estar lá sem mediações. A vivência possui neste primeiro momento muito mais um conteúdo estético do que racional, sua importância é sentida na pele. Em um segundo momento, ela é algo que possui um significado, não passa desapercebida pois foi vivida com intensidade. A vivência é algo de único, de imediato, resultado de múltiplas experimentações, mas que precisa de dias, meses, até mesmo anos para ser devidamente processada.

São as vivências que constroem a roupagem de uma pessoa. Trata-se de uma experiência estética-individual-imediata. Vivência como conceito subjacente à razão! Não é racional, por isso seu conteúdo está sempre parcialmente obstruído. Claro, pois a vida necessita agora ser avaliada apenas pela própria vida e na própria vida, não por uma razão despótica. Afinal, quem poderia avaliar uma vivência senão uma vida como constante processo?

Cada instante de nossa vida faz alguns dos braços de pólipo do nosso ser aumentarem e outros murcharem, conforme a alimentação que traz ou não traz o instante. Nossas experiências, como disse, são todas, neste sentido, meios de alimentação, mas distribuídos com mão cega, sem saber quem passa fome e quem está saciado”

– Nietzsche, Aurora, §119

Mas a vivência também implica um grande desprendimento, uma radical modificação. Toda vivência é um devir que altera as condições de existência. Todo desprendimento ocorre de súbito, algo sobre o qual o “eu” não tem controle, como um chão que se abre e obriga a trilhar um novo caminho. A vivência é de tal modo intensa que altera a vida por completo. Este desprendimento pode levar um ser humano a sucumbir, mas se ele consegue efetivar-se nesta travessia, estará mais forte no final. Desprender-se, aqui, é um tipo de vitória.

Eu tenho de ir adiante, novamente erguer o pé, esse pé cansado e ferido; e, porque tenho de fazê-lo, com frequência lanço um olhar furioso às coisas mais belas que não me puderam deter – porque não me puderam deter!”

– Nietzsche Gaia Ciência, § 309

Foi o que aconteceu com Nietzsche, foi necessária uma grande solidão depois de desprender-se de seus antigos mestres. O filósofo do martelo rompe com Schopenhauer e Wagner para conseguir pensar com mais liberdade sua própria filosofia, para tornar-se um Espírito Livre. Outro rompimento foi com a universidade em que dava aulas, a doença o obrigou a trilhar um caminho distante da academia, e foi melhor assim. Não é à toa que seus livros estão recheados com o tema da grande convalescença: a doença sempre pega o homem de surpresa, mas é ela também que permite o libertar. A vivência da doença prepara o homem para sua saúde! (veja aqui)

Por isso cada vivência leva tempo para ser digerida, e mais tempo ainda para ser explicada com palavras, para ser comunicado: “tornada comum”. A comunicação muitas vezes é impossível, ao menos muito difícil, ou no mínimo perigosa. Afinal, uma vivência não possui inteligibilidade racional imediata plena, seu conteúdo nem sempre faz sentido, por isso a dificuldade de entendê-la e comunicá-la. A vivência só pode ser experimentada dentro dela mesma, e é este o objetivo. Uma travessia que permite experimentar outros mundos. Por isso uma vida empobrecida não passa por qualquer uma dessas situações, ela não descola-se de si mesma, não consegue voar, tornar-se leve, não adquire o que Nietzsche chama de pathos da distância.

Olhando para trás – Raramente nos tornamos conscientes do verdadeiro pathos de cada período da vida enquanto nele estamos”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §317

– Alexandra Levasseur

Pouco a pouco, cada um dos experimentos tornam-se vivências ou, levado para outro lado, uma simples lembrança, algo vulgar, medíocre, comunicável. O que torna cada vivência algo sempre muito particular, que realmente não podemos entender completamente. Este deve ser, inclusive, um dos nossos medos: ser compreendido por todos significa que nossas vivências são de tal modo vulgar, simples, que todos são capazes de entendê-las. Não, a importância de uma vivência só será compreendida posteriormente, depois de muito tempo. Vemos como a consciência é realmente a parte mais frágil do corpo e segue sempre a reboque, sendo a última a chegar.

Ainda assim, as vivências são o solo do pensamento. E as experimentações são a condição de possibilidade das vivências e, portanto, imprescindível para “tornar-se aquilo que se é”. Um pensador só vive e se constitui pelas vivências pelas quais passou, pelos estados que experimentou. O objetivo do filósofo é analisar sob que condições de vida emergem e se transformam suas teorias. Ou seja, realizar uma autogenealogia. Não seria possível realizar uma auto-biografia porque não há um “eu” por trás das sensações, tudo que existem são impulsos que se sobrepõem uns aos outros. Uma auto-biografia é sempre superficial demais, não chega no cerne das questões. As vivências, diz Nietzsche, permitem realizar uma auto-genealogia, compreender a partir das condições de vida que deram origem a um pensamento. Afinal, podemos pensar e escrever apenas sobre o que e como foi vivenciado.

A pretensão de “conhecer a si mesmo” soa para Nietzsche como uma infantilidade socrática. Como seria possível fazer uma auto-análise? Como seria possível uma revelação de um “eu” oculto? Não… o que existe é uma variada gama de experiências, situações, acontecimentos, ou, para resumir em apenas uma palavras: perspectivas. As vivências, para Nietzsche, dão conta das condições de pensamento, daquilo foi preciso superar, digerir. Aquilo de que um pensamento precisou dar conta. Vivência como as condições de mudança, percurso que uma vida traçou ao afirmar-se como obra de arte. Por isso toda filosofia é a confissão de um autor, afinal, ele só pode escrever do que vivenciou.

A nós, filósofos, não nos é dado distinguir entre corpo e alma, como faz o povo, e menos ainda diferenciar alma de espírito. Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo”

– Nietzsche, Gaia Ciência, prólogo §3

Todo “tornar-te quem tu és” se realiza dentro da própria vida. Ou seja,  é preciso vivência para tornar-se o que se é. Vivências que queimam lentamente, crises que devem ser superadas a fim de se retirar delas todas as suas consequências. Sendo assim, podemos ver como a vivência é uma espécie de conquista da vida, o sentimento pleno de que realizamos a travessia existencial de algo importante. Um excesso que agora pode se afirmar para além de qualquer sistematização teórica. Uma vida que não pode ser codificada em seu todo, ser completamente compreendida racionalmente, mas pode ser vivida em toda a sua plenitude. Pessoas assim, estão para além do bem e do mal, poderíamos dizer que estão inclusive para além-do-homem.

O que são, então, nossas vivências? São muito mais aquilo que nelas pomos do que o que nelas se acha! Ou deveríamos até dizer que nelas não se acha nada? Que viver é inventar?

– Nietzsche, Aurora, §119

Experimentar significa acumular vivências, vivências estas que nos permitem criar. Como? Quem nos dará este direito de voar por cima dos valores? Onde este tipo de vivência está garantida? É preciso ter direito a este novo ponto de vista, é preciso ter direito ao sentimento perdulário de que superamos algo. Apenas a Vontade de Potência dá conta desta conquista, uma longa travessia por vales e montanhas que permite ao homem ter direito a si mesmo, conquistar-se. Está é, diz Nietzsche, a única maneira de “tornar-se quem se é”, passando por uma enorme gama de experiências, de acontecimentos que desdobraram o homem nas mais variadas formas.

Há aqui uma grande experiência de vida que provém das andanças do espírito livre que atravessou muitas vivências. Pinta-se aquilo que se é com a tinta das experiências na paleta das vivências. E quantas vezes não foi preciso abandonar algo? Mas agora tudo retorna! Apenas este desprendimento incondicional nos deu abertura para novas possibilidades. Muitas experiências permitem muitas vivências, o que permite então ao cultivo de seu próprio solo, fértil o bastante para dar frutos. Mergulhar na existência como maneira de superá-la dela, mas ainda dentro dela. Entre vivências e andanças, o homem cultiva a si mesmo.

A grande saúde – Nós, os novos, sem nome, de difícil compreensão, nós, rebentos prematuros de um futuro ainda não povoado, nós necessitamos, para um novo fim, também um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, mais forte, alerta, alegre, firme, audaz que todas as saúdes até agora. Aquele cuja alma anseia haver experimentado o inteiro compasso dos valores e desejos até hoje existentes e haver navegado as praias todas desse “mediterrâneo” ideal, aquele que quer, mediante as aventuras da vivência mais sua, saber como sente um descobridor e conquistador do ideal, e também um artista, um santo, um legislador, um sábio, um erudito, um devoto, um adivinho

– Nietzsche, Gaia Ciência, §382

Texto da Série:

“Torna-te Quem Tu És”

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Eduardo
Eduardo
7 anos atrás

Rafael, que texto incrível. Sem palavras e nem tenho a pretensão de “torná-lo comum”. Obrigado por fazer nascer essas palavras e compartilhá-las.

Matheus
Matheus
7 anos atrás

Um filósofo sensasional e um texto brilhante. Obrigado e parabéns, Rafael.

Matheus
Matheus
Reply to  Matheus
7 anos atrás

Sensacional, desculpe o erro.

LUIZ VIDIGAL PIRES
LUIZ VIDIGAL PIRES
4 anos atrás

Excelente trabalho !

Mácio Nunes Machado
Mácio Nunes Machado
9 meses atrás

Texto fantástico, profundo, necessário! Bom demais ser surpreendido com a autenticidade e força das mensagens do texto, ao mesmo tempo que, de alguma forma é também uma confirmação daquilo que já está em nós, mas que não sabemos como dizer.
Parabéns!!