Espinosa não foi o primeiro a tratar da servidão humana, nem mesmo da servidão voluntária. Encontramos em La Boetie e Montaigne grandes contribuições. Mas Espinosa é o primeiro a fazer uma ciência dos afetos para compreender melhor a servidão; tal análise será de extrema importância para entendermos posteriormente o significado de Liberdade para o filósofo holandês.
Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeitado que é, muitas vezes forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior”
– Espinosa, Ética IV, prefácio
Este trecho abre o prefácio da parte IV da Ética, onde Espinosa trata da servidão humana decorrente da força dos afetos. O homem submetido aos afetos é aquele impotente para regulá-los, ele está ao sabor do vento, incapaz de dosar, ordenar os afetos aos quais, por fim, se submete e é levado. A definição negativa de servidão é simples: impotência para moderar os afetos. Como já vimos, eles não são bons nem ruins, são simplesmente parte necessária da natureza. A servidão ocorre neste campo subjetivo dos encontros em que o ser humano faz trocas diretas de potência: divisão, oposição, conveniência, concorrência, harmonia, etc..
O homem submetido à força dos afetos, “vê o que é melhor e aprova, mas segue fazendo o pior” (E IV, P17, Esc). E, nesse caso, os afetos são mais fortes que o conhecimento deles. Confuso, o homem impotente tenta dominá-los em vez de entendê-los, mas sempre acaba perdendo. A fortuna é efeito de nosso conhecimento imaginativo em face das forças que nos ultrapassam. Por isso, servidão significa estar possuído pela exterioridade, ver o melhor mas não conseguir fazê-lo.
Não existe, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular relativamente à qual não exista outra mais potente e mais forte. Dada uma coisa qualquer, existe uma outra, mais potente, pela qual a primeira deve ser destruída”
– Espinosa, Ética IV, axioma
A razão pela qual somos submetidos à servidão resulta de sermos uma parte finita da substância infinita. Sendo assim, é impossível que não sejamos afetados pelo mundo à nossa volta. A realidade nos atravessa constantemente e é impossível que, dada sua infinita potência, ela não nos submeta de inúmeras formas. Sim, somos ínfimos, mas ainda somos uma parte da substância infinita, estamos mergulhados na natureza, somos uma parte de Deus.
A força pela qual o homem persevera no existir é limitada e é superada, infinitamente, pela potência das causas exteriores”
– Espinosa, Ética IV, prop. 3
É bastante evidente, o mundo é muito superior a nós e pode nos arrastar para qualquer lado sem que tenhamos chance de resistir. Qualquer pequeno acaso nos faz perder autonomia, nos joga no meio de relações que nos afetam negativamente e nos torna heterônomos, submetidos aos encontros fortuitos. Toda espécie de afetos tristes nasce dessa relação de impotência com o que nos acontece: ódio, ressentimento, tristeza, melancolia, ira, inveja, indignação. O homem em estado de servidão encontra-se:
- Alienado: sem poder de decisão, fora de sua capacidade de agir, levado a pensar por forças exteriores.
- Contrariado: vê o melhor, mas segue fazendo o pior. Não consegue agir como entende que seria mais útil, que lhe faria bem.
- Violentado: sente-se carregado por forças muito superiores às suas, desnaturado pela violência que sofre dos afetos.
- Enfraquecido: as paixões tristes nada ensinam sobre as condições em que se pode fortalecer o conatus e, portanto, enfraquecem-no.
Para escapar das garras da fortuna somos capazes de nos agarrar a qualquer coisa. Do medo nascem os deuses e as superstições. Das tristezas e agruras da vida nos entregamos ao desespero ou nos escondemos em uma igreja qualquer, rezando, pedindo perdão, piedade, clemência. Imaginamos que aqueles seres superiores que nos criaram devem estar muito bravos com a gente. Vivemos confusos, sendo levados a acreditar nas coisas mais absurdas para encontrar alguma regularidade ou segurança em um mundo que nos assombra.
Se Deus é a natureza, então, devemos deixar na mão de Deus e simplesmente nos atirar passivos ao acaso dos encontros? Claro que não! É justamente essa a receita para aumentar a tristeza e o medo. É neste ponto que Espinosa delata o erro dos homens tristes, ao “entregarem nas mãos de Deus”, eles nada mais fazem que “lutar por sua servidão como se fosse sua liberdade“. A servidão é a privação da parte que nos cabe da potência infinita do ser, é deixar de agir para ser agido. Servidão é o estado de entrega total, é ser possuído pelo entorno, sem a força e a prudência necessárias para efetuar os encontros.
A servidão pode chegar ao ponto de dilacerar a subjetividade, fazendo-nos experimentar uma fraqueza sem igual, sentida como isolamento. E não é pra menos, a impotência realmente nos coloca à mercê das forças exteriores e a própria exterioridade começa a parecer perigosa. Servindo, nossa capacidade de afetar e de ser afetados declina continuamente. Qual o resultado? Fechamento ainda maior, que pode até ser cômodo e confundido com liberdade, mas que acarreta efeitos reais e muito danosos.
Chamemos de Deus, Fortuna, ou Natureza, nem tudo que nele acontece nos convém. Sendo assim, somos convidados por Espinosa a olhar para a nossa fragilidade e tomar uma atitude em relação a ela. O que nos faz bem? O que aumenta nossa potência de agir? O que convém com nossa natureza? O que é útil para nós? Afinal, como podemos tomar parte na realidade? Se nada é bom em si, mas apenas em relação a alguma coisa, então precisamos descobrir o que podemos, aquilo de que somos capazes, que convém à nossa essência. Bom é aquilo que é útil para aumentar nossa potência de agir e também nossa capacidade de ser afetados. Esta análise dos afetos é o ponto de virada.
O mundo é este mar de forças. Então, será que seremos inevitavelmente mastigados pelo acaso, engolidos pela fortuna, digeridos pelo caos? Não!, é aqui que o jogo se inverte. Espinosa nos mostra que há constância, coerência e conveniência entre as partes do mundo. Deus não age por vontade, mas por necessidade de sua própria essência, então o mundo é determinado e ordenado, mas nós, partes ínfimas, geralmente não temos a capacidade de perceber isso.
A servidão humana é a ignorância daquilo que nos faz bem ou mal. A quarta parte da Ética é a conclusão da análise dos afetos, a continuação da luta de Espinosa contra as paixões tristes. Uma verdadeira guerra que tem no corpo um campo de batalha. Para livrar-se da servidão é imperativo que o homem deixe de ser invadido pelas paixões tristes que o afligem diariamente e busque bons encontros, que comece a entender o que há de comum entre ele e o todo.
O homem cansado e triste não pode ser livre, seu conatus está reduzido, sua potência de agir é pequena, sua perfeição foi diminuída ao mínimo. Ele efetua apenas maus-encontros, o que sempre o deixa em estado de letargia e o leva a imaginar outras vidas, outros lugares. A imaginação é uma janela de cadeia, mas também é nela que se encontram as possibilidades de fuga. Que se imagine uma felicidade mínima e realize um pequeno bom encontro que seja, estas são, para Espinosa, ferramentas capazes de serrar as grades da prisão. A alegria é mais forte que a tristeza, pois diz diretamente ao nosso conatus:
O desejo que surge da alegria é, em igualdade de circunstâncias, mais forte que o desejo que surge da tristeza”
– Espinosa, Ética IV, prop. 18
Nutrimo-nos da felicidade, ela retroalimenta nosso desejo, nossa potência, nosso conhecimento. A virtude é a capacidade de efetuar cada vez mais bons encontros. Por isso dizemos que a Ética é um livro que leva diretamente à prática. A plena realização de nossa potência não pode ser relegada ao destino das estrelas, muito pelo contrário, cabe a nós tomar as rédeas de nossa vida e atuar para que ela aconteça segundo nossa natureza. Tal ferramenta é a Razão, e o conhecimento se torna, então, o mais poderoso dos afetos.
A tarefa da Razão (que nós chamaríamos de Razão Inadequada, pois difere totalmente do conceito tradicional de Razão), é entender e avaliar os afetos, compreender o que é bom e mau para nós, não em si, mas em relação. A razão não domina o corpo, não controla o corpo; ela guia, conduz, modera, dirige os afetos, abre caminhos ao criar avaliações corretas, possibilidades mais interessantes.
A razão se fortalece em conjunto com o corpo, porque a capacidade de pensar da mente aumenta junto com as relações harmoniosas que se estabelecem entre os corpos. Pensar e agir são capacidades interligadas que envolvem a compreensão do mundo. Assim, a análise dos afetos oferece novos valores, novos modos de vida, não mais submetidos às forças exteriores, mas criados a partir da essência própria de cada corpo.
Quanto mais nos esforçamos por viver sob a condução da razão, tanto mais nos esforçamos por depender menos da esperança e por nos livrar do medo; por dominar, o quanto pudermos, o acaso; e, por dirigir nossas ações de acordo com o conselho seguro da razão”
– Espinosa, Ética IV, prop. 47, dem
O conhecimento é uma virtude, no sentido em que dizemos que ele é uma força. E, como força, ele interfere nas relações passivas que antes dominavam. Conforme o conhecimento dos afetos aumenta, ele mesmo se torna um afeto, fazendo as vezes daquilo que antes oprimia. Tudo começa com um pouco de alegria, que nos impele a sair da servidão e procurar a liberdade.
Entretanto, para nós, seres finitos, essa saída da servidão nunca é total. Espinosa não promete a ausência de paixões e tristezas, mas coloca em nossas mãos um conceito muito bonito de liberdade. Ser livre é, em alguma medida, conquistar o campo da fortuna, deixar de ser causado para se tornar causa dos afetos. Ao invés de ser apenas uma parte passiva dos acontecimentos que nos rodeiam, passamos a ter parte naquilo que acontece.
Eis caminhos para deixar o medo para trás e atingir o amor à necessidade; deixar de ser parte para finalmente tomar parte; negar a servidão e conquistar a liberdade, mas este já é assunto de nosso próximo texto: Espinosa e a Liberdade.
Gratidão !
Belo texto. Realmente, Espinosa faz uma análise muito imparcial das relações entre a razão e os afetos, mostrando nossa potência e nossos limites. É a ética do “esforço por compreender” a natureza humana no contexto da natureza geral. Fantástico!
Excelente!
Olá,
Seus textos tem sido muito esclarecedores!! Eu gostaria de perguntar: o que vem a ser “o amor intelectual a necessidade” ?
Obrigada!!
Darlin
Oi, Darlne! Muito obrigado!
Dá uma olhadinha em “Espinosa e a Liberdade”. Lá ele quebra a ideia de livre arbítrio e fala como devemos amar a necessidade.
Até!
Obrigada Rafael!
Obrigado por compartilhar tamanho conhecimento.
Ficou, comigo, uma dúvida: A nossa capacidade de “domar o acaso” não seria insignificante? Visto a nossa quase insignificância perante a infinidade de Deus, como diz Espinosa. Por mais que tentemos realizar bons encontros, a aleatoriedade da contingência torna isso, quase que, insignificante? Ora ou outra seremos tomados por conatus que não queremos e entraremos em um loop de tristeza?
Já reli esse texto por inúmeras vezes. Ele caiu como um presente em minha vida.
Obrigado por isso, Rafael. Forte abraço.