Skip to main content

Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor”

– Alberto Caeiro, Guardador de Rebanhos, V

Espinosa define três gêneros do conhecimento, sendo este primeiro o mais ineficaz para atingir a liberdade e o contentamento. Todos eles são verdadeiros, entretanto, existe uma hierarquia entre, uma ampliação gradual na capacidade de entendimento. Neste primeiro gênero de conhecimento, dirá o filósofo holandês, ainda somos passivos, vivemos ao acaso dos encontros, estamos no campo da opinião, do conhecimento por experiência vaga, dos sinais, das conclusões sem premissas ou simplesmente da imaginação.

Este é o tipo de conhecimento erigido em torno do senso comum, responsável pelas noções universais e pelas leis morais. Sim, isto porque no conhecimento imaginativo os traços mais singulares perdem sua força e se misturam, gerando uma confusão do que é dentro/fora, meu/seu, forte/fraco, bom/ruim. A imaginação é efeito de uma experiência sofrida, um acúmulo de sensações e sentimentos embaralhados; nela, só se tem conhecimento do afetou, e não das causas que geram aquele afeto determinado.

Cada um, de acordo com a disposição de seu corpo, formará imagens universais das outras coisas. Não é de surpreender que, dentre os filósofos que pretenderam explicar as coisas naturais exclusivamente pelas imagens das coisas, tenham surgido tantas controvérsias” – Espinosa, Ética II, prop. 40

No primeiro gênero do conhecimento ainda estamos no reino da tolice e da superstição, não temos potência o bastante para pensar profundamente naquilo aconteceu, apenas juntamos e separamos as coisas pelos efeitos que causam. Em outras palavras, o corpo é afetado, mas desconhece as causas que o levaram a ser afetado de determinada maneira.

Exemplo: ao comer uma maçã, sentimos o seu gosto, associamos seu nome e a comparamos com outras frutas. Através da memória (marcas reunidas na imaginação), passamos a juntar todas as maçãs comidas até hoje e a chamá-las pelo mesmo nome. Contudo, a memória é falha, sem perceber, perde de cada objeto as pequenas diferenças que possuem entre si, e começa a tratá-los pela mesma coisa. O pensamento imaginativo pensa falar de singularidades, mas chega até elas através de universais, pois não tem capacidade de guardar todas as mínimas diferenças. É desta forma que nascem as noções universais (bem diferentes das noções comuns).

Esses termos surgem porque o corpo humano, por ser limitado, é capaz de formar, em si próprio, distinta e simultaneamente, apenas um número preciso de imagens” – Espinosa, Ética II, prop. 40

Espinosa chama este primeiro gênero de conhecimento de ideias inadequadas, pois são imagens que se formam apenas através da percepção sensorial, e permanecem confusas e obscuras. São inadequadas porque não conhecem as relações que fazem aquela imagem formar-se necessariamente, mas apenas os efeitos já prontos, ou seja, o conhecimento do primeiro gênero é um conhecimento apenas dos efeitos (o cachorro de Pavlov não entende de reflexos condicionados, por isso acredita que a sineta tem efeitos salivantes).

No começo, ainda impotentes para concatenar as causas e efeitos, criamos ideias juntando o que nos acontece, sem sermos ativos neste processo. A imaginação ainda é incapaz de entender as causas, é mais fácil ficar apenas com os efeitos porque são imediatos. Infelizmente, a grande maioria das pessoas nunca sai do conhecimento de primeiro gênero, pensando apenas com preconceitos e o senso comum. Chega a ser irônico Espinosa defini-lo como o primeiro e mais simples dos três quando muitos filósofos e cientistas se apoiam inteiramente nele.

O primeiro gênero de conhecimento é então o conhecimento de efeitos do encontro, ou dos efeitos de ação e de interação das partes extrínsecas umas sobre as outras. Oh, não se pode definir melhor. É muito claro […] os efeitos causados pelo choque ou pelo encontro de partes exteriores umas com as outras define todo o primeiro gênero de conhecimento” – Deleuze, Curso sobre Spinoza

Preso às noções gerais cujo resultado é a imaginação, o homem reduzido a este tipo de conhecimento ainda opera pela distinção bem e mal. Ele moraliza porque só consegue se localizar no mundo através de noções universais e oposições como bem e mal. Não há exceções e ele teme tudo que não consegue categorizar e dispor nesta ordem. Desta forma, o homem tem medo de tudo que foge às leis que criou através de sua imaginação confusa. 

Todo o edifício religioso, por exemplo, é uma ideia inadequada formada pela imaginação: trata-se de uma universalização, uma antropomorfização da natureza como se houvesse uma causa universal por trás das coisas, sem conhecer as relações específicas entre a parte e o todo. Os profetas são muito bons de imaginar, e quase toda religião se sustenta no neste conhecimento como base. Infelizmente, a superstição é consequência de ficar preso a este gênero de conhecimento, sem nunca superá-lo, nunca ir além do que acontece. Quem fica no primeiro gênero do conhecimento diz “Pedro me fez mal” e julga: “Pedro é mau”; mas para Espinosa isto é como dizer “o fogo me fez mal”, “a pedra que caiu em minha cabeça me fez mal”, e passar a julgar o fogo e a pedra. Ficar apenas no signo: “o que isso quer dizer? O que significa?”, como se ele indicasse algum dever, algum caminho que deveríamos seguir para sermos felizes.

Espinosa e, posteriormente, Deleuze nos trazem o exemplo do Sol: ele parece muito perto de nós, mas na realidade está a milhares e milhares de quilômetros de distância. Entretanto, a imagem que se forma dele na retina é real, o problema é afirmar que esta imagem (dele pequeno) é verdadeiro, por desconhecimento das relações de perspectiva. O problema é contentar-se com o conhecimento que a imaginação traz. Entrar em relação com o sol apenas com o primeiro gênero do conhecimento, é dizer: “o sol é quente”, isso significa que as partículas do sol (os fótons) entram em relação com as partículas da pele; é ficar sempre na exterioridade: “O sol está perto”, “o sol é quente”, “o sol queima”, “o sol é uma estrela”, “eu amo o sol”. O erro não está na ideia incompleta, está em afirmar a incompletudo como tudo o que há. A imaginação é a impotência de pensamento frente ao real, é a visão parcial e restrita, mas que pode crescer.

Permanecer nos processos imaginativos impede que a filosofia avance. Mas como ir para além da imaginação? Como qualificá-la? A resposta está nos bons encontros que fazemos, quando a potência aumenta; é desta forma que se ganha a capacidade ativa de se relacionar com os objetos exteriores em vez de ficar no acaso dos encontros. A pergunta agora passa a ser: como superar as ideias inadequadas e formar ideias adequadas? Isso se dá através do conhecimento relacional, ou melhor, racional do segundo gênero do conhecimento.

Os gêneros de conhecimento são também maneiras de viver, modos de existência. O primeiro gênero (imaginação) é constituído por todas as ideias inadequadas, pelas afecções passivas e seu encadeamento. Esse primeiro gênero corresponde, antes de mais nada, ao estado de natureza: percebo os objetos ao sabor dos encontros, segundo o efeito que eles têm sobre mim. Esse efeito é apenas um ‘signo’, uma ‘indicação’ variável. Esse é um conhecimento por experiência vaga”

– Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 201

Texto da Série:

 

Gêneros do Conhecimento

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
4 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Diego de Oliveira
Diego de Oliveira
12 anos atrás

Estou achando muito interessante o texto. Porém tive um problema na página: “isto se dá através do segundo gênero do conhecimento (veja aqui).” Acho que deu um problema no link. Não é possível clicar no (veja aqui) e ir para a próxima página, aonde será exposto o segundo gênero do conhecimento. Aguardo um retorno.

Estou achando ótimas leituras introdutórias! Parabéns pelos textos!

Rafael Lauro
Admin
Reply to  Diego de Oliveira
12 anos atrás

Fala Diego!

Tudo bem?

Que bom que você gostou! Os textos sobre o segundo e o terceiro gêneros do conhecimento em Espinosa ainda serão postados. Provavelmente nas duas próximas quartas-feiras …

Abraços!

gersonferreira
gersonferreira
7 anos atrás

Rafael,um artesão com potencial de afetar.Gratidão pelo texto. Gostaria de ler algo seu referente a V parte- sobre a potencia do intelecto ou sobre a liberdade humana. Abços.

Rafael
Rafael
4 anos atrás

Opa. Legal!

Só uma correção: as partículas do sol são os neutrinos!