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Foucault mostra como a disciplina nasceu como técnica, estratégia para criar corpos, treiná-los, mostrar a eles um caminho. A disciplina permite passar quase sem se perceber da vigilância à punição, cria corpos dóceis. A correta disciplina é uma arte do bom adestramento. Por que adestrar?

O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício”

– Foucault, Vigiar e Punir

O poder funciona de maneira simples, não é algo majestoso, concentrado, impenetrável. Certamente é intrincado, mas ao menos é aberto, franco, até mesmo modesto. Aqui se quebra o paradigma de poder que emana de uma torre central ou do salão real. O poder passa, ele flui, não é um ponto, são linhas mais do que barreiras, são fluxos mais do que limites.

Por isso podemos dizer que não há distância entre nós e o poder, somos o ponto onde ele incide, transforma, mas ao mesmo tempo um foco de resistência, objeto e fonte de propagação. “O poder esteja convosco, ele está no meio de nós“. Isso torna difícil que seja capturado, pois não está em um lugar específico.

Uma questão importante para devida compreensão da Disciplina, e de Foucault de uma maneira geral, é a hipótese repressiva. O poder produz muito mais do que reprime. Seria impossível uma sociedade de pura repressão, exigiria energia demais, esforço demais. O poder produz de forma lenta e contínua, num ritmo cadenciado, hipnótico. Ele só reprime em última hipótese, antes disso ele forma, treina, exercita, conduz.

O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame”

– Foucault, Vigiar e Punir

Olhar Hierárquico

O poder começa no olhar, na maneira como se observa o outro. Esta categoria substitui o olhar dos palácios, onde os nobres queriam se mostrar e substitui também o olhar das fortalezas, onde se via lá fora o inimigo. O modelo é o do acampamento militar: onde todo soldado pode ser visto e fiscalizado a todo momento. Por que observar continuamente? Ora, muito simples, obter conhecimento de como adestrar mais e melhor.

As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e de treinamento”

– Foucault, Vigiar e Punir

Sonho de uma construção onde, com um único olhar, possa se ver tudo. Neste intuito, desenvolveu-se uma arquitetura para a observação do indivíduo: janelas, espaços, distribuições, concentrações. Contrariando a forma de círculo, de onde o poder ficaria no centro, criou-se uma pirâmide, para que cada um saiba sua posição, mas que se possa observar o andar de baixo, um microscópio do comportamento.

A vigilância é um operador econômico, ela traz lucro, rendimento, eficiência, produção. Ao mesmo tempo discreta e indiscreta, esta forma de poder procura criar corpos competentes, obedientes e morais. Ela cresce e se multiplica: sorria, você está sendo filmado. Olhar hipnótico com o qual nos acostumamos.

Quanto maior o número de pessoas, quanto maior a divisão de trabalho, maior a vigilância hierárquica; quanto maior o número de alunos, maior a vigilância hierárquica (“quem quer ser o representante de sala deste semestre?”), quanto maior o número de funcionários, maior o número de cargos (“quem será o funcionário do mês?”). Aparentemente menos violento e corporal, mas na verdade, absolutamente físico e normalizador, a micro-física-ótica do poder se espalhou por todo o corpo social.

Sanção Normalizadora

Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal”

– Foucault, Vigiar e Punir

Ao mesmo tempo em que se olha, se vigia, também se pune. Um aparelho de micro-penalidades se forma em torno do indivíduo sujeito às instituições disciplinares: o castigo pode ser leve, mas deve gerar efeitos, é mais moral que físico.

É preciso atenção para qualquer desvio: no espaço (“Fulano, volte para seu lugar”), no tempo (“não demore, não se atrase”), na produção (“Ei! Não faça corpo mole”), na postura (“sente direito, ande direito”), na aparência (“se vista de acordo, não saia desta maneira”), no corpo (“tome banho, corte as unhas, lave a mão”), na moralidade (“seja educado, responda direito”), na sexualidade (“não fale isso, não se comporte assim”).

Verifica-se a todo momento o desempenho dos indivíduos, procurando suprimir os seus desvios, recolocando-os em um rota de normalidade. Um modelo ideal de aluno, soldado, trabalhador é estipulado, uma dívida eterna onde o indivíduo luta para enquadrar-se em um arquétipo ideal e inexistente. O tempo todo estamos sendo comparados com uma norma, um padrão, um paradigma.

O castigo tem uma única função: adequar os comportamentos em relação ao conjunto. Punir é corrigir, retificar, consertar, emendar, colocar no bom caminho. E ainda poderão dizer: “é para o seu próprio bem”. Castigar é também uma maneira de exercitar: refaça o dever de casa, refaça o movimento, refaça o trabalho. Tudo até que o corpo se renda, aceite, se encaixe. Vencer pelo cansaço.

Trata-se simplesmente de gratificar ou punir. A distribuição se faz segundo as aptidões, pontos positivos ou negativos para os alunos, condecorações ou sanções para os soldados, bônus ou advertências para os trabalhadores. Submissão ao modelo ideal. Lenta modelagem em direção ao impecável.

Os efeitos das sanções normalizadoras se dão por etapas: primeiro é preciso comparar os indivíduos, avaliá-los, olhar as anotações, suas notas, suas fichas, seus prontuários, suas observações ao longo do tempo; logo após é possível diferenciá-los de acordo com suas aptidões, medir e hierarquizar sua eficiência. Só então é possível coagir os que não se enquadram, traçar limites entre o aceitável e o inaceitável, normal e anormal, saudável e doente. Diferenciar para catalogar segundo critérios homogêneos.

Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as  diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais” – Foucault, Vigiar e Punir

O treinamento, a disciplina, a observação contínua, permitem todo um sistema parapenal, que pune segundo seus próprios critérios, é o poder da Norma, da Era da penalidade perpétua, que ao mesmo tempo diferencia para melhor igualar, separa para melhor unir, equipara para melhor hierarquizar.

Texto da Série:

Vigiar e Punir

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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profjeanmagno
10 anos atrás

Reblogged this on Blog do Prof. Jean Magno.

hanney
hanney
5 anos atrás

uma leitura leve com um significado profundo!!!!

ingrid luani peixoto
ingrid luani peixoto
2 anos atrás

muito bom, amei o site e o conteúdo! me ajudou muito em um trabalho.