Leitura por Rafael Lauro,
Há filosofias que desejam conhecer: a Verdade torna-se o fundamento de qualquer possibilidade de triunfo. Há filósofos que desejam refletir: o espelho é seu instrumento de trabalho. Alguns preferem discutir: as academias são seus habitats naturais. Outros querem comunicar: a objetividade racional é seu princípio. Nós queremos mais, queremos criar: nem falso nem verdadeiro, mas o que é interessante; trocamos o espelho pela ponte para não perder o horizonte; deixamos de lado as querelas universitárias para nos concentrar na atualidade dos problemas; enfrentamos a razão instituída apostando em outra racionalidade – deslocamos o eixo por sob o qual as ideais se adequam às normas.
A filosofia está mais perto da loucura do poeta que do método científico: filosofar com cheiros, toques, gostos… devires. Nossa filosofia começa com o riso, o humor é a primeira das afirmações. Se antes de qualquer embate nós rimos, é porque os problemas nos agradam, o conflito se faz necessário e a colisão inevitável. Não se faz nada sem antes rir um pouco, e, depois, rir muito. A incapacidade ao riso empurra a filosofia a uma triste sobriedade. A seriedade é própria aos que prezam pelas coisas pesadas, que querem ir ao fundo, submergir, explorar e sentir a gravidade. Nosso caminho é outro: dançamos como quem resiste ao peso, lançamos-nos ao abismo como quem pode voar.
Se nos apontam: “estão arriscando a pele em algo que de nada mais serve do que adornos poéticos”, respondemos com Ulpiano: “ou a filosofia é o risco superior da vida ou não serve para nada”. Há de se assumir de saída que nós não possuímos o sentido, nós o sentimos de maneira muito passageira. Tudo se faz em tendências, fluxos, movimentos, setas, vetores, direções; sempre variáveis, sempre variantes, sempre variações. O filósofo está para a filosofia assim como o náufrago está para o mar. Pensar o mundo é ter a certeza de estar enfrentando um Golias, mas já não somos os primeiros a tentar.
Não há conceito que não se transforme, não há virgem imaculada, não há altar para as ideias, não há sagrado. Não há, portanto, uma razão para não filosofar. Expulsamos o medo da filosofia, deixe que ele frequente apenas os terrenos em que ainda somos fracos. Muito antes do medo vêm alegria e tristeza: dois lados de uma mesma moeda, cujo valor é inestimável à filosofia. Movimentar, acelerar, sobrevoar, girar, eis os requisitos de um pensamento que se instaura no devir. Engolimos e vomitamos conceitos, ruminamos pensamentos até que eles se tornem perigosos novamente. A filosofia é uma maneira de lidar com as forças que nos querem rasgar por dentro, ela é uma máquina de tornar ativo o que é passivo. Cansamos de nos sentar à sombra, cansamos de ver o rio correr: queremos ser o rio.
Deixamos a burocracia da filosofia para trás, já está na hora de filosofar com coragem. Não somos especialistas, deixamos este assento vago aos entediantes. Sem Deus nem Estado, a filosofia se tornou para nós um parricídio, um desafio, uma fuga inesperada do presídio: as sirenes soam alto, por todos os lados há a tentativa de capturar o pensamento, mas onde houver um pouco de criação haverá também uma linha de fuga. Não fazemos reféns, mas deixamos vítimas. A filosofia nos trouxe a revolta, claro, e ela é necessária, mas talvez tão necessária quanto os momentos de descanso, de silêncio e espanto.
Nos atiramos no precipício para voltar diferentes; não queremos mais seguir os passos daqueles que nos levam ao abismo. Cada dia, cada vez mais, nos tornamos artesãos de nós mesmos. Escavar, abrir as feridas, cuidar de si, é uma tarefa dolorosa, mas certamente necessária. Olhar para as limitações que nos são impostas, para as fraquezas que nos habitam, para as doenças de nosso tempo e buscar soluções – não há tanta distância assim entre psicologia e filosofia. A parte dolorosa é ver as barras que nos prendem, tentar mudar de lugar e ver as correntes que limitam nossos movimentos. Mas é bom saber que estamos por nossa própria conta e risco, que o mais pesado dos fardos é também nossa maior chance de libertação. Se fizemos o diagnóstico em preto e branco, foi para afirmar uma prática com todas as cores!
Uma prerrogativa, sempre atual, para renovar uma razão anciã: unir mente e corpo. Ouvir os instintos, virar os ouvidos para dentro e escutar os gritos de um corpo amansado, pacificado, docilizado. Se desde sempre a sensibilidade foi vista como perigosa, agora ela é a base imanente de toda filosofia; se a razão se tornou opressora, agora ela pode ser artifício, astúcia criativa. Talvez nossa razão seja inadequada porque ela é também afetiva! Ela não tenta se sobrepor ao corpo. Invertemos conselhos, desfizemos planos, corroemos cartilhas. Nossos afetos tornaram-se razão! Novos encontros, fim dos esteriótipos. Queremos uma razão que multiplique, que mergulhe no caos de peito aberto. Um razão explosiva que tenha na vida o seu combustível e no pensamento o seu comburente. Somos a Razão Inadequada, as razões inadequadas, e se pudermos ser mais, seremos, se pudermos multiplicar, melhor ainda!
A filosofia é mais do que um modo de vida, ela é a vida se apresentando como pensamento. Quando uma ideia nos atravessa, queremos concedê-la o mínimo de consistência. O desejo do filósofo é precisamente o de tomar a realidade por um movimento de pensar acontecimentos. Pensar torna-se uma maneira de intensificar o curso da vida, deixar o caminho mais bonito. Não há fracasso maior para a filosofia do que afastar-se da existência, seja por considerá-la perigosa demais, seja por achar-se fraco demais, seja por qualquer outro motivo. Separar o pensamento da vida é esvanecer o tempo e esvaziar o espaço, trocar o intenso pelo extenso, o singular pelo mensurável, o alegre pelo triste.
Estamos à espreita, este é nosso modo de filosofar. O predador com o olhar fixo em sua presa um segundo antes do confronto. A filosofia é este instante de concentração total, um momento onde todo o resto se apaga. O objetivo é ter sempre um olhar diferente por onde se passa, cruzando fronteiras, ultrapassando a nós mesmos. Nos tornamos complexos, isto é, temos cada vez mais dobras; isto nos permite agir de modos diferentes, afetar o mundo e ser afetado por ele de múltiplas maneiras. Não existe sensibilidade inadequada, porque qualquer sensibilidade é válida. O vento no rosto, a água do rio nos pés, isto é filosofia? Talvez dependa de sua capacidade de experimentar. Quanto mais o céu fica azul, mais filosofia. Quanto mais o mar se agita, mais filosofia. Quanto mais anoitece, mais filosofia. E que dirá uma filosofia da aurora? Filosofar é ser capaz de criar e habitar estes momentos ativamente. É a potência de estendê-los no espaço e no tempo, para dentro e para fora. Ir fundo no momento, tirar tudo o que se pode; alterar as densidades, examinar as espessuras, contestar o peso, modificar a atmosfera, averiguar profundidades, abrir horizontes: é tudo matéria de filosofia.
A filosofia se conjuga em um só tempo, ela deve ser capaz de nos fazer estar presentes no instante máximo; que não nos percamos em tolices e superstições. Ser capaz de habitar um instante de perfeição, isto é filosofar no presente. Este é o pensamento que nos permite experimentar momentos de eternidade. A grandeza de uma filosofia está na sua capacidade de nos despertar novas intensidades. Não basta estar presente, é preciso que nossas forças se atualizem, que nós estejamos inteiros entregues àquilo que nos acontece. Não nos sentiríamos dignos de viver, se não nos sentíssemos dignos para filosofar e, se não filosofássemos, não nos saberíamos tão vivos.
Bebi cada palavra! Emocionante, inspirador! Cada vez que ouço declarações de pessoas que se abstém de pensar, de filosofar, de calcular, essas mesmas que se dizerem realizadas e felizes, penso na mortalha que já vestiram sem se dar conta: sem pensar… Como alguns que se entregam às pseudo-artes, aos pseudo-entretenimentos fúteis, porque se considera um pensador de segunda à sexta e que sua mente merece descanso. Essa teoria de que as pessoas ouvem, por exemplo, sertanejo universitário, pra não pensar, pra descansar a mente, me deixou intrigada. Imaginei uma vó que guarda a dentadura na água antes de dormir. É… Ler mais >
Republicou isso em ARTMANHA.
Já não acompanho o blog como em outros tempos. A vida cotidiana me absorve. Não que isso me absolva, mas enfim… Porém, é certo que quando volto aqui e aos espaços das conversas que compartilhamos fico sempre espantado com duas coisas. A primeira é afirmação categórica da tua vida e palavra como ato de criação. Posso dizer com alguma segurança que ao longo da minha vida estudantil e acadêmica vi exímios reprodutores (eu me tornei relativamente bom nisso), mas conheci apenas um indivíduo capaz de criar. Acredito que foi você Rafael. Você é um exemplo daquelas efeitos colaterais agradabilíssimos de… Ler mais >
Simplesmente sensacional! Muito bacana a origem do termo ‘razão inadequada’. Gostei muito da relação que fora elucidada entre filosofia e sensibilidade. Parabéns, vejo em você alguém que tem a capacidade de criar algo novo, sem repetir ou simplesmente transfigurar conteúdos.
Esplêndido! Essa coluna, mostra a beleza da filosofia. Cada palavra com um sentimento, cada palavra com um amor, cada palavra com uma alegria. Isto é filosofia. Enxergar o mundo e sua beleza. Conhecer a nós mesmos. Isso, mostra o que a razão pode fazer, o que o questionamento pode produzir.
Descobri no dia 03 de setembro através di podcast. Estoy amando a revista. Muito boa. Show
Não sabia que a filosofia podia brotar de um encontro inusitado entre literatura e coaching. Bela escrita, parabéns!