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Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Estas palavras expressam a distância que me separa do mundo pelo vidro de uma janela. A realidade é grande demais para mim, me excede e isso me assusta. Lá fora está a morte, o mistério, o desconhecido, o “destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada“. Perdi, simples assim, não há o que comemorar. Falhei…

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?”

A neblina de fora reflete a confusão interna, ou seria o contrário? Estou louco ou sou um gênio? “Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!“, não… não… eu não. Não sou disso, não eu, sei de minhas limitações. O mundo é para quem nasceu para o mundo, eu nasci para sonhar que nasci para o mundo. Me dê a natureza mistificada, porque não posso crer em mim mesmo.

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

O que me resta? Comer chocolates talvez… Chocolates, que são a maior expressão da metafísica!! Platões, Kants e Hegels não sonharam com a grande metafísica no ato de comer um simples chocolate. Não há biblioteca nem igreja que ensinem mais que este ato. Estou longe, estou condenado… A Tabacaria do outro lado da rua é tão real que parece outro universo. Não tenho acesso, sua nitidez é uma muralha intransponível. Conquistei apenas aquilo que sonhei. Me pergunto: como é possível viver, estudar e até crer sem ter realmente feito isso? Como pude fazer tudo isso sem realmente fazê-lo? Gostaria de ser um mendigo, para quem sabe aí experimentar a realidade nua, concreta das coisas.

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me

Não há nada no espelho que pertença a mim. Sou vários, e talvez por isso a sensação de não ser nada. Saio de casa sem realmente sair, meus portões são cruzados por figuras estranhas, por vezes assustadoras, por tipos não confiáveis. Meu reino não é deste mundo, mas não sei também onde localizá-lo. Queria sair para peregrinar, mas permaneço “calcando aos pés a consciência de estar existindo“.

Tudo acabará, esta angústia, este orgulho de sentir-se sensível, impressionável. Logo mais, tudo será nada; logo menos, o ser se fará diferença. Um abismo se abrirá entre o que é e o que haverá de ser. Mas tudo será o mesmo, tudo haverá de continuar absurdamente o mesmo. A mesma coisa tal e qual. Tudo termina com o começo de outra. Tudo traz consigo um sim. Tudo sempre retorna, mas sempre retorna diferente daquilo que foi.

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas eis que a consciência dá três fortes pancadas na porta da minha cabeça “e a realidade plausível cai de repente em cima de mim“. Tudo gira, uma descarga de sentimentos leva para longe toda abstração, encontro a mim mesmo como homem prático, educado, dentro de um terno bem cortado. Atendo a porta da existência e percebo que “a metafísica é uma consequência de estar mal disposto“, é um vício do ócio, uma baixeza do tédio, um custoso costume, um mal-estar da alma.

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu”

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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getuliogregori
10 anos atrás

Republicou isso em Fonte da arte.

Eduardo
Eduardo
10 anos atrás

Muito interessante…

Robert
Robert
10 anos atrás

Poxa vida, mas não existe real imanência no prazer de degustar um bom vinho, comer um boa massa e também, por que não?, um saboroso chocolate.