Epicuro viveu há muito tempo atrás, qual seria hoje a importância de sua filosofia? Será que ainda podemos encontrar alguma relevância em seus pensamentos? Quando nossa tarefa é compreender como o filósofo definiu sua psicologia, então tudo se torna ainda mais complicado. Não, Epicuro não escreveu “isso é psicologia para mim”, mas nós podemos fazer um apanhado de seus escritos e encontrar uma resposta. Esta tarefa é essencial para pensarmos uma contra-história da psicologia.
Epicuro escreveu muito, mas pouco chegou até nós. Mesmo assim, se quisermos entender o que é psicologia para Epicuro, não podemos procurar nos dicionários porque poucas filosofias foram tão difamadas quanto o epicurismo. Não é pra menos, o filósofo do Jardim nunca abriu mão de seu materialismo e, de certa forma, de seu ateísmo.
Sua prática e pensamento levam para caminhos diferentes dos seguidos pelos pensadores de sua época. No epicurismo, a física e a ética são inseparáveis, esta é sua grande inovação. Por isso precisamos fazer um percurso que sai da canônica (lógica, critérios para a verdade), passa pela física, onde nos encontramos com os átomos, e, finalmente, chega na ética. A psicologia, para Epicuro, permeia os três estágios.
A medida do conhecimento provém do corpo, as sensações do corpo dão o tom. A dor e o prazer são maneiras de conhecer, e a ética lida com esses afetos fundamentais. A sensação é a realidade, e a realidade é a imediaticidade das sensações, esta é a verdade. Não existe uma separação entre nós e o mundo, não existe uma distância nem mesmo um abismo, o mundo se encontra conosco através da sensação, que gera prazer ou dor. Uma sensação, sem exceção, é sempre verdadeira, é a realidade que se apresenta a nós. A sensação é um acontecimento psicológico, que gera em nós, dependendo da constituição física de cada uma, prazer ou dor.
Verdadeira é a presença da realidade em nós e para nós. Ela é nossa matéria prima, única fonte de conhecimento, moldamos e somos moldados pelas nossas sensações. Os átomos de nosso corpo não estão isolados do mundo, muito pelo contrário, estão em relação constante. A terra encosta em nossos pés, os raios de sol encostam em nossos olhos, a melodia encosta em nosso tímpano, a água encosta em nossa língua, o cheiro das flores flui por nossas narinas. Nascemos e morremos em meio às sensações, ela é irrefutável.
Não se podem gozar prazeres puros sem o conhecimento da Natureza”
– Epicuro, Máximas Fundamentais
Epicuro ensina que há duas sensações: prazer e dor, a primeira é conforme à natureza, a segunda lhe é contrária. As sensações são o critério do conhecimento físico e, então, a possibilidade de uma vida ética. De onde vem o conhecimento da natureza? De algum livro sagrado, de uma revelação divina? Não. De uma autoridade na terra, de um rei ou sábio, do mundo das ideias? Também não. A verdade é sensação, então a física não precisa apelar para qualquer transcendência, estamos e permanecemos na imanência.
A física de Epicuro terá esta preocupação, não apelará aos Deuses por respostas. “Nada nasce do nada”, é sua primeira constatação, “O todo é formado de corpos”, a segunda. Sem corpos não poderíamos existir e não poderíamos saber o que existe além de nós, porque além dos corpos só existe o vazio. “Os átomos possuem uma infinidade de formas”, devido à grande quantidade de sensações que podemos ter, e, “os átomos se movem continuamente desde a eternidade”, porque nenhum Deus chegará uma dia para o julgamento final.
Esta conclusão é importante, só existem duas coisas no mundo: átomos e vazio. Sem vazio, os átomos não poderiam mover-se, sem átomos, não existiriam corpos. Os átomos se chocam entre si, e desviam sua rota inicial. O mundo começou quando o primeiro átomo se inclinou de sua trajetória inicial e começou a colidir com outros (clínamem). A partir de então, uma enorme variedade de átomos entra em relação, se conjugam e se separam. Não podemos ver os átomos, porque eles são muito pequenos, mas sabemos de sua existência porque os corpos possuem variadas formas e se recriam o tempo todo, se desmontando e refazendo. O mundo flui como um rio (diria Heráclito), o mundo flui com seus átomos, replicaria Epicuro.
Tudo é feito e efeito de átomos, os deuses são feitos de átomos, a alma é feita de átomos, nada foge do materialismo de Epicuro. Mas até mesmo a alma? Sim, por que não? O filósofo dizia que a alma era composta por átomos sutilíssimos, leves, pequenos e redondos. Sendo assim, a psicologia de Epicuro é matéria para a Física. O corpo é animado pela alma, que lhe dá movimento e sensação, os dois entram em relação, o corpo não pode existir sem a alma nem a alma sem o corpo. “Os que dizem que a alma é intemporal, falam sem nada dizer” (Epicuro). A alma é mortal, ela vive enquanto vive o corpo, quando este se desagrega, a alma também se desfaz e seus átomos seguem outras direções. Nossa alma se espalha pelo mundo com o fim de nosso corpo, bonito, não?
Um corpo sem alma não sente, não age, não é um ser vivo. Para haver sensação, é necessário que as partículas da alma estejam presentes; e para haver pensamento é preciso haver sensação. A alma leva as sensações e os movimentos de uma parte do corpo para a outra. Estes átomos sutis se desviam mais facilmente, se movem com mais liberdade, parecido com a teoria do clinâmem de origem do mundo. O corpo é uma relação de átomos mais leves e outros mais pesados, uns mais rápidos e outros mais devagar, a alma é parte deste corpo, são átomos sutis que compõem nossa existência. É na relação entre alma e corpo que encontramos a liberdade.
Saindo da lógica e da física, chegamos à Ética. Conhecer os átomos, as sensações, o prazer e a dor é o que permite à psicologia entender o ser humano. A Ética de Epicuro é hedonista, ou seja, afirma que o homem busca, em todas as situações, o prazer e evita a dor, assim como todos os animais. O ser humano, em sua essência, busca aquilo que convém com a natureza e evita aquilo que não convém. A finalidade da vida, diz Epicuro, é uma só: a felicidade!
Dizemos que o prazer é o começo e o fim da vida feliz. Com efeito, por um lado, o prazer é reconhecido por nós como o bem primeiro e conforme à nossa natureza e dele partimos para determinar o que é preciso escolher o que é preciso rejeitar; de outro, é sempre a ele que chegamos, pois são nossas afecções que servem de regra para medir e apreciar todo e qualquer bem por mais complexo que seja”
– Epicuro, Máximas Fundamentais
Ou seja, o prazer é o começo e o fim do hedonismo, mas não o meio. Precisamos da Psicologia, precisamos dos critérios fornecidos solidamente sobre a canônica, a física e a ética para alcançarmos o prazer. Primeiramente, Epicuro ensina a nos livrarmos de toda e qualquer dor inútil, desnecessária. Claro que a dor, o desconforto, a doença, existem, mas precisamos diminuí-las ao mínimo possível; Epicuro chama isso de aponia, sendo que ponos, em grego, significa dor, sofrimento. Reduzindo a dor, o caminho para a felicidade se torna mais claro.
O prazer não é ausência de dor (como gostaria Schopenhauer e outros), mas diminuir a dor com coisas não importantes é o primeiro grande passo. Faz sentido, um copo não transborda se estiver cheio de furos, uma vida não ultrapassa seus limites se estiver consumida pela mágoa e sofrimento!Mas é da natureza do homem sofrer por coisas que desconhece, ele se desespera com superstições que não entende. É verdade, a ignorância faz o homem sofrer mais do que deve. Como terapia, Epicuro nos traz o Tetrapharmakon, quatro remédios psicológicos que funcionam como guia para dar os primeiros passos em direção à felicidade.
Os dois primeiros são mais voltados para o lado psicológico. Primeiro: se os Deuses são perfeitos, então não têm preocupações, logo, não ligam para nós. Não temos nada com os deuses e ele nenhum interesse em nós. Não precisamos nos preocupar com castigos divinos, com maldições, com dogmas, qualquer tipo de ritual ou milagre. Os deuses vivem lá, nós aqui, não há motivos para um sequer pensar no outro (veja mais aqui).
Segundo: quando nós estamos, a morte não está; quando a morte está nós não estamos. Isso significa simplesmente que temos um problema a menos: a morte. Não há porque ficar pensando nela, porque a morte é simplesmente a desagregação dos átomos sutilíssimos que compõe nossa alma, quando isso acontecer, não estaremos lá para ver (veja mais aqui). E, ainda assim, a desagregação é de nossa alma, mas os átomos que a compõe continuam existindo para além de nossa felicidade ou tristeza.
Epicuro ensina que podemos reduzir e muito a dor, para, então, nos concentrarmos no que realmente importa: uma ética da doçura. Longe de superstições e medos inúteis temos condições agora de encontrar prazeres duráveis. O verdadeiro prazer está na serenidade do sábio, na tranquilidade de corpo e alma que só um verdadeiro hedonista poderia encontrar. Afinal, apenas um falso hedonista se perderia em meio a prazeres fugazes, passageiros que causam sempre mais tristeza e infortúnios que verdadeiros prazeres.
A terapêutica hedonista ensina a realizar três operações para não cair nesta armadilha: 1) rememorar os prazeres passados, selecionando quais realmente nos fizeram bem e podem ser chamados de prazeres; esta rememoração, por si só, já é prazerosa, e são esses prazeres que nos ajudam para a segunda operação. 2) avaliar a qualidade dos prazeres, escolhendo os que nos fizeram mais bem do que mal; e finalmente, 3) antecipar prazeres futuros, que virão com a justa medida dos prazeres, e que, sendo bem avaliados, já nos alegram com a suas possibilidades de realização.
Mas se a Ética hedonista é tão simples, por que não somos felizes? Epicuro responderia que não sabemos fazer bom uso de nossas sensações e prezares, não sabemos avaliar aquilo que melhor convém com nossa natureza e, finalmente, não nos analisamos o suficiente. Em suma, não nos conhecemos o bastante e não nos cuidamos o suficiente.
O hedonismo é busca pelos prazeres justos, com temperança, moderados, levando em conta que todo prazer pode conter uma cota de desprazer e vice-versa. Além do mais, lutamos contra a sedução dos prazeres externos que nos são ininterruptamente oferecidos. Estes prazeres, diria o sábio, são inúteis e desnecessários, causam apenas a atribulação da alma e afastam do caminho da felicidade.
Hedonismo é também prudência, para levar o prazer ao máximo. A filosofia é oferecida por Epicuro como uma terapêutica, uma medicina da alma. Por que? Porque o conhecimento dissipa os terrores do ânimo e, ao sair da ignorância, permite uma vida feliz. O sábio está mais próximo dos deuses e da felicidade. Claro que ele é superior ao ignorante, mas nem por isso deve menosprezá-lo ou maltratá-lo, muito pelo contrário. De que serve um filósofo que não afasta a ignorância, o medo, as superstições os vícios e o sofrimento humano? Para que serviria uma filosofia deste tipo? O filósofo se debruça sobre a existência, olha para o lado, vê seus companheiros, e oferece respostas.
A psicologia estuda a natureza humana precisamente porque cada um, por ser composto de uma relação variada de átomos, tem um jeito de sentir prazer e dor. Os átomos estão lá, as sensações também, cabe ao homem fazer o resto. A filosofia hedonista mostra que o prazer é o começo e o fim, e a psicologia é o meio de alcançá-lo.
Inspiração forte para Espinosa
Epicuro e Espinosa são 2 pensadores fantásticos e sinto que poderia me basear quase totalmente em somente suas filosofias!
Rafael parabéns pelo site. Você aceitaria a minha contribuição com textos sobre arte e psicologia? Abraços.
Meu contato: rocanassa@uol.com.br
Meu blog: http://www.faroartesepsicologia.blogspot.com.br
Olá Rosangela,
Não estamos aceitando textos, mas obrigado pela proposta! 🙂