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Ao longo da história da filosofia, a concepção de sabedoria mudou bastante. Na filosofia epicurista – e de maneira geral em todo o helenismo – a concepção de sabedoria é proposta em função de uma virtude, a phronesis, que costuma-se traduzir por prudência. Isto significa que sabedoria não é um saber contemplativo, dedicado à theoría, ao contrário, é uma prática. Assim, o sábio não é um sabe-tudo, pois a sabedoria é um saber-fazer.

O que o sábio epicurista sabe fazer? Transformar as suas ideias fundamentais em uma maneira de viver. Para recordar esses fundamentos, podemos recorrer ao tetrapharmakon, o quádruplo remédio de Epicuro: “Não há por que temer os deuses; a morte nada pode contra nós; o bem é fácil de alcançar; o sofrimento é fácil de suportar”. Encontramos essas ideias associadas ao sábio na carta de Epicuro a Meneceu:

Será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa sofrimentos leves?”

– Epicuro, Carta a Meneceu

O sábio não teme os deuses, pois estuda a natureza. Ele também não teme a morte, porque dedica-se à ideia de que ela é apenas a ausência de sensação causada pela dissipação da alma material. Com relação à dor e aos temores, ele exercita a alma para suportá-los. E, por fim, ele sabe que o princípio e o fim da vida são os prazeres e a felicidade será tão plena quanto a capacidade de usufruir de prazeres simples e constantes. 

É importante notar que, em todos os pontos, há uma atividade incessante. Não se deixa de temer em absoluto, mas em função do estudo. Assim como não se despreza a morte ou suporta as dores com facilidade. Se assim fosse, não haveria necessidade de filosofia. Ou seja, a filosofia epicurista é inseparável de uma concepção de exercícios espirituais que tornam a sabedoria possível como virtude. 

Principalmente nos prazeres, a filosofia é o instrumento que o sábio utiliza para direcionar o seu desejo afastando-se dos objetos de carência ilimitada: a riqueza, a glória, o poder, assim como a paixão amorosa, não oferecem o tipo de prazer moderado que ele busca. O objetivo final é o prazer, mas o prazer virtuoso é aquele que permite uma vida eudemonista, isto é, de ataraxia e aponia, de ausência de perturbações e dores. Em resumo, o sábio é aquele que sabe suportar as dores e usufruir dos prazeres sem se perder neles.

Para os epicuristas, a felicidade é uma sensação contínua de bem estar que só pode ser conquistada por meio de prazeres moderados. Assim, o sábio distingue-se do vulgo porque direcionou o seu desejo para o que é natural e necessário, deixando de lado os objetos da opinião, que costumam tomar por necessário o que não é e consideram natural o que facilmente nos leva a dor, sendo contrário a nossa natureza mais íntima.

A filosofia epicurista, munida de um conhecimento empírico, de uma física atomista e de uma ética hedonista, permite a qualquer um tornar-se sábio, desde que esteja disposto a confrontar as ideias mais correntes. A sabedoria é uma triagem do campo da opinião tanto no conhecimento quanto na ética. No conhecimento, o sábio aposta nas sensações contra as falsas representações; na ação, ele se pauta pelo prazer contra as imagens ilusórias.

O sábio não participará da vida pública se não sobrevier causa para tal. Ele segue o conselho de Epicuro: “esconde tua vida”. Ele aposta na autarquia e prefere participar da política apenas no que for necessário. Não vai à Ágora, não vai às praças públicas para se manifestar, pois seu objetivo maior é a paz e a tranquilidade. O epicurismo não é uma filosofia apolítica, há uma grande reflexão sobre o conceito de justiça, mas certamente não aposta na política como necessidade para a felicidade.

A autarquia, o governo de si, não se opõe diametralmente ao governo dos outros, à sociedade. Ao que tudo indica, Epicuro dedicou-se ativamente a pensar sobre a justiça, concluindo que o justo é uma convenção necessária por natureza em função da utilidade de uns para com os outros, trazendo mais uma originalidade para o epicurismo: a conciliação entre phýsis e nomos.

“Não é possível viver feliz sem ser sábio, correto e justo, nem ser sábio correto e justo sem ser feliz. Aquele que está privado de uma dessas coisas, como, por exemplo, da sabedoria, não pode viver feliz, mesmo com o esforço correto”

– Epicuro, Máximas Fundamentais

Ou seja, o sábio não pode ser feliz se for injusto, se desconsiderar os pactos mais fundamentais de sua sociedade. Ele não se desliga totalmente dos demais, ao contrário, ele os toma em relação. No entanto, há uma distinção importante entre os semelhantes e os distantes. O sábio forma uma comunidade de amigos para que a sociabilidade seja mais interessante. Não à toa, Epicuro fundou um jardim, uma verdadeira comunidade filosófica.

“De tudo aquilo que a sabedoria nos proporciona para a felicidade de toda a nossa vida, de longe o mais importante é a posse da amizade”

– Epicuro, Sentenças Vaticanas, 13

A recusa à sociabilidade geral se faz em função do elogio de uma vida comunitária restrita e a amizade se torna um componente fundamental do modo de vida epicurista. Ao sábio, a felicidade será muito mais possível se ele estiver rodeado de amigos, também sábios, em laços comunitários estreitos e seguros. Para os epicuristas, é da relação entre amizade (philia) e sabedoria (sophia) que nasce a filosofia, que definitivamente não é um fruto qualquer.

O sábio não vive para enriquecer, não busca o crescimento por meio de cargos políticos, não se importa com o que falam dele, mas também não busca o isolamento do eremita. Para resumir em poucas palavras: a sabedoria é resultado de um conjunto de práticas que, por meio de um esforço verdadeiramente filosófico, mantém simples, constantes e comunitários os prazeres.

Texto da Série

Epicuro – Ética

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Luis Augusto
Luis Augusto
1 ano atrás

Epicuro gestou o estoicismo, ambos se afastam dos problemas para serem felizes. Fácil assim, admitem o mal mas não querem lutar contra ele. Se Vc. Nao fizer política, alguém fará por Vc., E isso pode significar que sua indiferença o conduza até a sua morte. Não descarto totalmente essa visão porque todos pode agir e influenciar até um certo ponto, neste sentido o epicurismo, o estoicismo e Rousseau fazem algum sentido, mas não significa a felicidade não, pois o homem não pode livrar-se da infelicidade.