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A ética epicurista é hedonista, mas diferencia-se de outras escolas que privilegiam o prazer – como os cirenaicos, por exemplo – porque pensa a felicidade segundo a noção helênica de eudaimonia, isto é, segundo a ideia de que a boa vida é sinônimo de uma boa disposição de espírito, de uma harmonia entre o indivíduo e o próprio ser das coisas. Isso leva os epicuristas a repensar a noção de prazer como episódica satisfação das carências e buscar os prazeres mais simples, tidos como naturais e necessários.

Em vista dos prazeres simples, Epicuro propõe uma disciplina dos desejos para regular as inclinações dos seres humanos, que muitas vezes tomam por objeto coisas que não se convertem neste tipo de prazeres. A palavra grega usada para “desejo” é epithymía, que significa “ter a mente voltada para algo” ou “lançar o espírito sobre algo”. Assim, os desejos são movimentos da alma em direção a determinados objetos.

Essa palavra grega epithymía é a mesma que Platão usava para definir a parte apetitiva ou concupiscente da alma, relativa aos desejos do baixo-ventre, a busca por comida, sexo, prazeres. Ele considerava esta a parte mais baixa da alma, que é irracional, mortal e cujos apetites não se comparavam em grandeza com os da parte racional. Além disso, no novo testamento, epithymía é a palavra que costuma designar o desejo pelas coisas proibidas, os pecados da carne, a luxúria. 

Entre os epicuristas, não há sentido pejorativo para epithymía: desejamos o prazer, e isto é evidente. Então, sempre que nos debruçamos sobre algo, estamos buscando prazer. Entretanto, muitas vezes não obtemos o que desejamos porque projetamos o desejo em objetos que não podem entregar o prazer que almejamos. Assim, para alcançar a felicidade, vista como conquista de constância nos prazeres, faz-se necessária uma disciplina dos desejos. Epicuro propõe uma divisão em três tipos de desejos:

Dos desejos, alguns são naturais ou [naturais e] não necessários, outros nem naturais tampouco necessários, mas produzidos por opiniões vazias.”

– Epicuro, Máximas Principais, XXIX

Pois bem, façamos primeiro a distinção entre necessários e não necessários. Os prazeres necessários são aqueles que, caso não sejam satisfeitos, geram dor e até mesmo morte, por isso são necessários. Se não houver este tipo de prazer, a dor aparecerá, crescerá e nos tomará. Por outro lado, os prazeres não necessários são aqueles que, caso não sejam satisfeitos, não geram dor. Para simplificar, podemos até dizer que os necessários são aqueles relativos à sobrevivência, como a alimentação e o abrigo, por exemplo; enquanto os não necessários remetem a uma variação possível dos prazeres, como comer algo gostoso ou ter uma casa bem feita.

A segunda distinção se dá entre prazeres naturais e não naturais. Aqui é preciso atentar para uma diferença que se faz entre os prazeres colhidos na evidência das sensações e aqueles que são ditos prazerosos no campo da opinião, vazia de experiência. Os prazeres só são prazeres porque envolvem nossa natureza, nosso corpo que os experimenta. Ou seja, os prazeres naturais são aqueles que afirmam nossa natureza, onde percebemos que os objetos se convertem realmente em prazer; enquanto os prazeres não naturais, sempre desnecessários, são fruto da opinião dos outros sobre o que é prazeroso. 

Em outras palavras, a distinção entre prazeres naturais e não naturais surge da diferença entre experiência e opinião. É por isso que geralmente a opinião é qualificada como vazia, como vã, porque ela não remete a uma experiência de prazer conforme nossa natureza, mas a um grupo de imagens que circula em uma sociedade. E quais são os objetos que costumam colocar como maior fonte de prazer? As riquezas, a glória, a honra, o poder, entre outros. O epicurismo ergue-se em contrariedade com estas opiniões dizendo que estes objetos não são naturais, tampouco necessários, pois não costumam converter-se verdadeiramente em prazer.

Dentre os desejos naturais que não levam à dor caso não realizados, aqueles cujo ardor é intenso têm origem em opiniões vãs e se dissipam, não por sua própria natureza, e sim pela vacuidade da opinião dos homens.”

– Epicuro, Máximas Principais, XXX

Assim, a disciplina epicurista dos desejos dedica-se a uma organização dos objetos que costumamos classificar em três grupos e, por fim, aconselha-nos a tomar os primeiros como mais importantes, os segundos de forma moderada e descartar os terceiros. Vamos passar por cada um deles para compreender melhor.

Desejos naturais e necessários

Os desejos naturais e necessários precisam ser satisfeitos, caso contrário geram dor. Seus objetos são a comida, o calor, o sono, o abrigo e poderíamos até mesmo dizer o ar. Tudo aquilo que é necessário satisfazer para que não sintamos dor é classificado neste primeiro grupo de desejos. São desejos que, caso não satisfeitos, atrapalham nosso equilíbrio, nossa própria maneira de ser. 

Epicuro coloca estes desejos como os mais importantes. Devemos dedicar a vida a estes prazeres, pois eles são os únicos verdadeiramente fundamentais para a boa vida. Se formos capazes de valorizar o estado de saciedade que estes desejos trazem, estaremos mais perto da felicidade. Uma anedota conta que Epicuro dizia poder concorrer em felicidade com o próprio Zeus se dispusesse de pão e água. 

Além disso, os objetos destes desejos nos são abundantemente oferecidos pela natureza. Por mais difícil que seja obter um prato de comida, um casaco, um bom lugar para dormir, ainda assim, em comparação com os outros desejos, são os mais fáceis de adquirir.  Tudo que mantém a saúde é natural e necessário, e, diz Epicuro, fácil de obter. Isso porque somos capacitados por natureza para obter estes prazeres: um rio nos dá água, as árvores nos dão comida, uma caverna nos dá abrigo.

A questão é que não falamos à toa em disciplina dos desejos. Não é fácil manter-se atento a este tipo de desejos e perceber o valor real de seus prazeres. Somos rapidamente impelidos a buscar mais do que o puro e o simples, e isto não é necessariamente um problema, desde que feito com moderação; assim chegamos aos desejos não necessários.

Desejos naturais e não necessários

Neste grupo, estão os desejos que não geram dor caso não sejam satisfeitos. São naturais porque experimentamos como prazerosos, de acordo com a nossa natureza. Não morreremos por não satisfazer estes desejos, mas tendemos a eles mesmo assim, pois almejamos alguma variação. Há uma diferença entre alimentar-se com pão e água e com queijo e vinho; ou ainda entre comer apenas o suficiente e servir-se um pouco mais por prazer.

Dizemos então que os desejos naturais e não necessários produzem uma certa adição e/ou variação no prazer. Podemos tomar um vinho, um suco, um caldo de cana, mas não podemos não tomar água. Podemos nos vestir com vários tipos de roupa, mas não podemos ficar pelados no frio. 

Os epicuristas não fazem um juízo negativo sobre este tipo de desejos, mas eles ficam em segundo lugar em importância. Isso se dá por um motivo muito simples: quando imoderados, nos levam à dor. Se comemos excessivamente, sentimos dor; se buscamos uma variação incessante dos objetos, nos sacrificamos muito para obtê-los e, consequentemente, sentimos dor; e assim por diante.

Os desejos naturais e não necessários são variações dentro dos prazeres. Eles são bem-vindos desde que não comecem a agir contra a nossa natureza, desde que não tirem nosso equilíbrio, gerando dores desnecessárias. O risco é exatamente este, por isso é necessária cautela em relação a estes desejos. O exemplo mais famoso é o do amor. Em geral, entre os epicuristas, a paixão amorosa é desaconselhada, porque raramente pode ser moderada, e acaba trazendo mais dores do que prazeres.

Percebo que em ti o impulso carnal propele impetuosamente ao encontro amoroso. No que te concerne, desde que não violes nenhuma lei, não agridas aquilo que foi honestamente estabelecido pelo costume, não causes dissabor aos próximos, não maltrates teu corpo nem desperdices o necessário, segue tua escolha conforme tua inclinação. É impossível, contudo, não ser afetado ao menos por um desses inconvenientes. As paixões amorosas, com efeito, nunca fazem bem; afortunado aquele a quem elas não fazem mal.”

– Metrodoro, Sentenças Vaticanas, 51

Desejos não naturais nem necessários

Em último lugar, estão os desejos não naturais nem necessários, que são fruto do que dizem por aí, prometendo muitos prazeres, mas convertendo-se em muitas dores. Ou seja, existem desejos não naturais, que tomam por objeto prazeres ditos pela opinião vã, isto é, desprovida da experiência da evidência de um prazer pelo corpo. Tomamos uma imagem pela coisa, acreditamos nela e seguimos desejando-a, sem saber ao certo aonde isso nos levará.

O hedonismo epicurista, rigorosamente eudemonista, é uma busca dos prazeres constantes e uma elaboração dos meios para alcançá-los, sempre perguntando-se quais deles fazem sentido para a boa vida. Para isso, Epicuro sugere um exercício simples, basta perguntar-se: o que acontecerá se eu concretizar este desejo? E o que acontecerá se eu não concretizá-lo? A resposta deve nos elucidar sobre o quanto devemos considerar ou não tal desejo.

Acreditamos que a riqueza nos fará felizes e a desejamos ao ponto de perder a capacidade de valorizar as verdadeiras riquezas: estar vivos, satisfeitos nas necessidades mais básicas, acompanhados de amigos, celebrando a felicidade, fazendo filosofia. Estes desejos nos fazem mergulhar na inconstância, pois se ligam a objetos que perturbam a alma pelo medo de perdê-los ou pela esperança de tê-los. É por isso que Epicuro sugere descartá-los. 

Buscamos a fama e a glória, a glutonice e a luxúria, o poder e a conquista, mas estes desejos não são necessários e também não são naturais, por um simples motivo: são imagens formadas pela opinião, mas não consideram realmente o caminho que leva à concretização destes desejos. Acaso alguém tem mais prazer do que dor em uma guerra? Assim, todo prazer efusivamente celebrado pela opinião deve ser investigado e possivelmente descartado. A maioria deles não passa de quimeras que a filosofia precisa enfrentar.

Em suma, Epicuro aposta nos desejos naturais e necessários, que além de abundantes, permitem a ataraxia. Para os que julgam ser pouco o suficiente, a felicidade será um árduo caminho de perturbações e inconstâncias. Aqui, apresenta-se uma das lições mais importantes do epicurismo: “nada é suficiente para quem o suficiente é pouco”.

Texto da Série

Epicuro – Ética

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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2 Comentários
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Matheus Magalhães Guimarães
Matheus Magalhães Guimarães
1 ano atrás

Esse texto é demais!

Alair veiga
Alair veiga
1 ano atrás

Muito bom ficou a sua organização do trabalho a respeito da idéia sobre o epicurismo..
Gistei muito