Em 1880, foi encontrado um conjunto de 81 aforismos epicuristas no Vaticano. Em meio a outros textos gregos antigos, lá estavam um conjunto de ideias de Epicuro e seus discípulos. Algumas dessas ideias já eram conhecidas, aliás repetidas, mas outras traziam novidades. Esses aforismos ficaram conhecidos como Sentenças Vaticanas e são, de longe, a fonte mais importante para pensar a doutrina epicurista da amizade.
Apesar de serem conhecidos pela reclusão, os epicuristas não eram misantropos. Ao contrário, o jardim de Epicuro recebia todos que estivessem dispostos a filosofar. Como a finalidade da vida é o prazer, todos, sem exceção, têm algo a aprender e também a ensinar, pois não há quem não sinta prazer. Assim, a filosofia é sinônimo de saúde da alma, na medida em que toma como objeto a bem aventurança, isto é, a vida de prazeres moderados e perenes.
Para os epicuristas, o sábio é aquele que, através da filosofia, modera seus desejos, afastando as perturbações e usufruindo de prazeres simples e constantes. Aponia, ataraxia e autarquia são suas primeiras conquistas, isto é, a ausência de dor, a imperturbabilidade e o governo de si, respectivamente. No entanto, isso não é tudo, há uma conquista diretamente relacionada a estas três primeiras: a amizade.
Toda amizade deve ser buscada por si mesma, mas origina-se de seus benefícios”
– Epicuro, Sentenças Vaticanas, 23
De início, parece bastante simples: a amizade surge de um interesse que temos uns pelos outros. Então, a princípio, qualquer relação que nos traga benefícios é suficiente. No entanto, a amizade não é um tipo qualquer de relação, pois é qualificada pela sabedoria. Apesar de contrariar o que nosso senso comum costuma chamar de amizade, Epicuro afirma que, para que esse tipo de relação floresça, é necessário um equilíbrio, pois aquele que não regulou seus desejos, que não sabe quais são os prazeres mais interessantes, não é capaz de fazer amigos, porque procura satisfações que essa relação não traz.
A diferença entre uma relação de amizade e uma relação de interesses banais está no fato de que entre amigos há uma reciprocidade regulada pela sabedoria. Quem aprendeu que os desejos de riqueza, de glória e de poder não servem para a felicidade, quem encontrou na filosofia uma maneira de moderar esses apetites, quem tornou-se sábio por viver em acordo com a natureza – este sim pode entrar em relações de amizade, porque, além de ter muito a oferecer, nada tem a perder.
Enquanto muitos utilizam os outros para fins próprios, o sábio aprendeu a bastar-se e, por isso, ele não precisa dos outros para suprir suas carências mais fundamentais. Assim, a relação de amizade pode surgir como benefício mútuo, onde os interesses são diretamente colocados pelas partes sem que haja interferência de desejos contrários à natureza; interessam ao sábio os prazeres imediatos da leitura, do diálogo e do pensamento.
Não age como amigo nem quem em toda ocasião procura tirar proveito, nem quem nunca entra em contato; aquele negocia a retribuição de seus favores; este se priva de boa expectativa para o futuro”
– Epicuro, Sentenças Vaticanas, 39
Quem busca vantagem em toda relação não consegue estabelecer relações de amizade; assim como aqueles que nunca comunicam seus interesses aos outros. A amizade é uma relação de intersecção entre as partes, onde cada uma busca na outra uma maneira de afirmar o conjunto. A amizade se perde nos excessos tanto de afirmação quanto de negação de si, é equilíbrio para o qual é preciso dedicação. A amizade é uma relação moderada por ambas as partes, é um campo de trabalho conjunto, onde se colhe algo mútuo.
Para Epicuro, a phronesis, prudência, é a virtude mais importante, porque é a busca conjunta pelo bem e pelo justo, isto é, pelo prazer moderado e pela relação útil. Buscar a utilidade de uns para com os outros no que concerne ao prazer – aqui está a síntese da sociabilidade epicurista. Não há como fazer isso desprezando os acordos, os consensos, os outros e seus desejos. Na cidade, é a justiça que rege os entendimentos entre os humanos, mas entre amigos são as próprias pessoas que o fazem.
Uma vida livre não pode adquirir grandes riquezas, pois não é coisa fácil obtê-las sem servir à multidão ou aos poderosos; porém tudo o que ela possui é com constante prodigalidade; e se por acaso a sorte lhe proporcionar numerosos bens, ser-lhe-á fácil trocá-los pela benevolência do próximo”
– Epicuro, Sentenças Vaticanas, 67
A liberdade não condiz com a busca irrefreada de satisfação das carências e amizade definitivamente não sobrevive entre os ricos e poderosos. O sábio troca as riquezas que por acaso obtém por um bom amigo, porque sabe que esse tipo de relação é muito mais rara e valiosa. Ele só é capaz de fazer isso porque soube ligar seu desejo a objetos bem delimitados. Em outras palavras, é por contentar-se com pouco – sentindo prazer por não sentir dor nem medo, por ter o que comer e onde dormir – que o sábio valoriza seus amigos.
A amizade conduz sua dança pelo mundo inteiro, convidando todos nós a despertar para a celebração da felicidade”
– Epicuro, Sentenças Vaticanas, 52
A amizade é a celebração da felicidade, eis a fórmula definitiva do conceito epicurista. Ela é uma dança exuberante, que nos desperta para os verdadeiros valores, aos quais vale a pena consagrar uma vida. Deixar de desejar os objetos vazios da opinião e sacrificar-se por eles é acordar de um sono profundo, agitado por pesadelos, para então juntar-se ao mundo, à natureza, aos amigos, em um dia bonito, às margens de um rio, cuidando uns dos outros, como na imagem idílica que Lucrécio viria a eternizar em seu poema:
Basta que estejam em conjunto, prostrados na relva macia,
perto das margens dum rio, debaixo dos ramos mais altos,
de seus corpos cuidando sem excessivos cuidados,
especialmente quando o clima sorri e o período
do ano esparge a verdejante relva com flores.”
– Lucrécio, Sobre a Natureza das Coisas, II, 29-33
Dentre todas as alegrias que a amizade proporciona, há uma que merece destaque: a filosofia. Não custa lembrar que a própria palavra φιλοσοφία é composta por philia e sophia, amizade e sabedoria. Ao que tudo indica, os epicuristas propõem um outro paradigma para definir a filosofia: em vez de amigo do saber, ou amante do conhecimento, podemos pensar em uma comunidade de pensamento, de amigos filósofos, que auxiliam uns aos outros naquilo que mais importa : pensar bem para viver bem.
PARABENS EXELENTE CONTEUDO !!
Texto muito bom e útil! Obrigado!
Parabéns pelo trabalho.