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Já falamos de verdade e sujeito, mas seria interessante mostrar também a tensão que existiu no mundo antigo com respeito ao cuidado de si e o conhecimento de si nas mais variadas vertentes filosóficas daquele tempo. A verdade não é e nunca foi um elemento calmo do discurso, ela é um campo de disputa, onde conceitos são como armas com as quais batalhamos modos de vida.

Nossa intenção é responder, juntamente com Foucault, como o conhecimento de si ganhou tão grande fama e ofuscou o tema do cuidado de si, que ficou relegado ao segundo plano da filosofia. O deslumbramento que a filosofia tem com o tema do conhecimento é algo que intriga o filósofo francês, e ele se esforçou para nos mostrar como uma certa tradição inverte esta relação: estoicos, epicuristas e cínicos.

Trata-se, em suma, de partir em busca de uma outra filosofia crítica: uma filosofia que não determina as condições e os limites de um conhecimento do objeto, mas as condições e as possibilidades indefinidas de transformação do sujeito

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 475

Marble statuette of Socrates.

O modelo platônico é nosso paradigma de conhecimento, mas não podemos esquecer de Aristóteles e todos que se seguiram. O filósofo das ideias nos revela uma miscelânea de pitagorismo, parmedianismo, heraclitismo, os ensinamentos de Sócrates e outras correntes. Ele junta reminiscência e conhecimento de si, para falar de ignorância e cuidado de si. Deste caldo ele tira suas conclusões.

Sócrates foi chamado pelo oráculo de Delfos o homem mais sábio da Grécia, de modo que o filósofo responde, “Se sou o mais sábio é apenas porque sei que nada sei”. Falsa ignorância a destes pensadores, arrogância de um saber que se diz sagrado e que está a disposição de todos no mundo das ideias. O discurso pedante se diz do povo. Ou seja, a filosofia, que supostamente parte do zero, da ignorância, que brota no meio da praça, é apresentada por Platão como a vontade de reconhecer as reminiscências, as ideias que guardamos em nós, as quais nós não temos acesso porque nosso corpo atrapalha o acesso à alma.

Estas ideias seriam aquelas que vislumbramos quando ainda não tínhamos encarnado. A verdade está lá fora… o conhecimento está na alma, que o corpo tanto atrapalha. Este modelo, sabemos, posteriormente evoluiu para a o tema da revelação divina! “Leia a bíblia”, dizem os moralistas e os padres, “conheçam as leis”, dizem os juristas, “você não tem um pós-doc no exterior”, dizem os professores arrogantes. Sempre a tríade: salvação-texto-verdade, como se ela fosse algo que acessássemos e que estivesse no alto, para ser buscada e conquistada. Como se uma verdade externa pudesse nos guiar e indicar o caminho correto.

O cuidado de si cai então em uma subordinação ao conhecimento de si, que indicaria os melhores caminhos a seguir. A matéria subordinada à forma. Esta ideia está claramente definida no texto Alcibíades, de Platão, onde o cuidado de si é anunciado nos moldes idealistas. Nele, o personagem homônimo da obra conversa com Sócrates e este o incita a conhecer a si mesmo. Como poderia o jovem e imprudente Alcibíades cuidar de si se não conhecia nada de seus adversários nem de si mesmo? E como poderia ele imperar sobre os outros se não era capaz de dominar a si mesmo?

Foucault analisa cuidadosamente os textos antigos para encontrar onde e como o cuidado de si subordinou-se ao conhecimento de si. Como se o primeiro estivesse submetido ao segundo. Nos helênicos, cínicos, estoicos e epicuristas, isso começa a mudar, o cuidado de si se liberta do peso político de Alcibíades e da pedagogia para chegar em um princípio geral incondicionado.

O que isso significa? Quer dizer, agora, que cuidar de si passa a ser algo coextensivo à vida, importante para quando se é novo ou velho. Também sai das relações de Status da cidade e passa a ser uma preocupação para a existência como um todo, em todos os campos. Podemos e devemos cuidar de nós mesmos não quando ainda se é jovem nem para aprender a morrer; agora o cuidado de si é uma atitude frente à vida, um gesto contínuo.

Ao cuidarmos de nós mesmos, certamente não chegaremos a uma origem perdida, afinal nada se perdeu, tudo está aí, é matéria para ser elaborada. A intenção de quem cuida de si é fazer emergir uma outra natureza, própria, não dada, e, portanto, originariamente ainda não conhecida. Quebrando assim com os modelos da tradição: Socrático, platônico e cristão.

O conhecimento de si havia sido o condutor de todas as análises do sujeito no ocidente, o que acabou por deixar o cuidado de si em um lugar de ornamento. E podemos ver como isso acontece até hoje quando a Ética deixa de ser fluída e torna-se uma moral estática (veja aqui). Mas o conhecimento, e é isso que queremos mostrar, pode estar submetido ao cuidado de si, eis a transvaloração estética da moral: é preciso conhecer-se, claro, mas apenas para melhor cuidar de si próprio. Cuidar no sentido de sustentar as forças de criação do indivíduo que busca superar a si próprio!

Seguido esta linha, Foucault pressente outras maneiras de dizer a verdade. E nós seguimos este caminho com grande alegria, pois não há nada mais para descobrir, apenas para inventar! Procurar uma verdade íntima ainda é, de alguma forma, obedecer e estamos cansados de seguir ordens! Existiria então uma outra maneira de ser verdadeiro e de conhecer a si mesmo?

A tékhne toû bíou (técnica de vida) inscreve-se na cultura grega clássica, creio, no vazio deixado tanto pela cidade quanto pela lei e pela religião, no tocante à organização da vida”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 402

Por isso os gregos encontraram outros usos para os prazeres e criaram outras maneiras de apropriarem-se da verdade, através de exercícios e meditação e ascese. Exercícios que consistiam em viver para que se tenha a melhor relação possível consigo próprio, uma técnica de modelagem, criação, produção. Onde o homem torna-se matéria de si mesmo e passa a se relacionar de outra maneira tanto com seu próprio corpo, quanto na casa, com outros homens. Surge um modo de vida dá ao sujeito ferramentas capazes de prepará-lo para as mais variadas situações da vida.

Que todo o saber de que precisamos deva ser ordenado à tékhne toû bíou (à arte de viver), é um tema tanto estoico quanto epicurista ou cínico”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 232

Técnica e arte tornam-se uma coisa só! O artista como alguém treinado e versado nas mais diferentes técnicas para cuidar de si mesmo. Eis alguém devidamente preparado! Por isso, diz Foucault, a comparação com o atleta. É preciso ser um bom atleta, claro! Que saiba movimentos eficazes da mesma forma que os cínicos guardavam certas máximas. Saber o que se deve e que não se deve saber, saber que alguns conhecimentos deveriam estar sempre à mão, para serem utilizados assim que a situação exigisse.

Subordinar o conhecimento de si ao cuidado de si é perceber que algumas coisas merecem e outras não merecem ser conhecidas. Algumas são importantes, outras são conhecimento inútil que, portanto, não deve nem mesmo ser considerado um conhecimento. O cuidador de si não aprende para se mostrar aos outros, ele não desfila conhecimento. Da mesma forma que o atleta aprende somente o necessário para realizar os movimentos correta e precisamente, para concluir sua tarefa com precisão.

A paraskeué é a equipagem, a preparação do sujeito e da alma pela qual o sujeito e a alma estarão armados como convém, de maneira necessária e suficiente, para todas as circunstâncias possíveis da vida com que viermos a deparar”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 214

Os gregos querem se preparar, conhecer o mundo e a si mesmo é um modo de cuidar de si mesmo. Apenas isso, o conhecimento não é mais uma ditadura da verdade, não mais manda em nós, ele está ao nosso dispor. O sábio é diferente do ignorante, mas é também diferente de Sócrates, e todos aqueles que fazem do conhecimento uma forma de regime totalitário e universal. Os gregos nos mostram que existem duas formas de conhecer, uma alegre e outra triste e eles seguem o primeiro caminho, tornando o conhecimento, e não a ignorância, uma bênção.

Sendo assim, é possível ver como o conhecimento de si e o cuidado de si se opõem à ignorância de formas diferentes. Afinal, está na bíblia “Conheça a verdade e ela vos libertará” (João 8:32). Mas de que verdade e de que ignorância eles estão falando? A vontade do estulto não é livre, isso nós sabemos, ele é determinado por outrem, ele quer várias coisas ao mesmo tempo e por isso se contradiz. É impotente, vive na servidão, acaba sendo levado de um lado para o outro. Vive na inércia, sua vontade se interrompe, se contradiz e conflita consigo mesma.

Quem não teve ainda cuidados consigo encontra-se nesse estado de stultitia. Portanto, a stultitia é, se quisermos, o outro polo em relação à prática de si. A prática de si tem que lidar – como matéria primeira, por assim dizer – com a stultitia e seu objetivo é dela sair”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 118

Marble statuette of Socrates.

O estulto é ignorante das causas e efeitos que o determinam, por isso não é causa de si, não sabe qual o melhor modo de viver. O ignorante é convocado pelo filósofo moralista a conhecer a si mesmo e pelo sábio a cuidar de si mesmo. No primeiro, o conhecimento se torna uma prática normalizadora, o filósofo-padre quer dar forma à matéria caótica do ignorante. O moralista sempre segue o caminho do poder.

O cuidado de si se opõe à ignorância em outro sentido, ao modo de uma experimentação de si que permite tornar-se mais forte e convicto de uma possibilidade de vida ético-estética. Por isso nos afastamos do conhecimento de si como oposição à ignorância e buscamos outro caminho. A verdade não está lá fora para ser descoberta. Ela não é uma essência no mundo das ideias a qual precisamos nos apropriar. Ela não vem do alto e é revelada por visionários e profetas.

A subjetivação de um discurso verdadeiro passa pela construção de si! Não pelo sacerdote que nos diz qual a nossa verdade, queremos distância dos confessionários! É lá onde se faz do sujeito o objeto de um discurso verdadeiro. E existem vários confessionários hoje: o divã de um analista, o sofá da televisão, o banco dos réus.

Quantas vezes não ouvimos o conselho “conhece a ti mesmo” gravado no oráculo de Delfos? O conhecimento de si nasceu como epígrafe da filosofia, como maior caminho para a elaboração de si. E é até hoje repetido, respeitado e praticado. Conhece a ti mesmo como busca da verdade é o paradigma do cientista, do padre, do psicólogo e do filósofo. Todos estão procurando o conhecimento certo de si e das coisas. Nada de erros, por favor! Nada de desviar-se da correta razão que leva ao caminho da verdade. Nas mãos destes filósofos, queremos conhecer a nós mesmos, sem nos desviar, a coisa em si, pura, certa, límpida.

A diferença essencial está na busca pela verdade, como um conhecer a si mesmo, e na prática da verdade, como cuidado de si!   É possível encontrar a si mesmo somente e na medida em que se constitui uma arte de viver. Platão gostaria que o conhecimento nos conduzisse deste mundo para o outro, enquanto o cuidado de si conduz a um novo eu, uma nova relação consigo mesmo. Passamos da verticalidade para a horizontalidade.

O cuidado de si é, portanto, um conjunto de técnicas que permite vincular o sujeito à verdade. Não no sentido de descoberta, nem de parentesco, nem de proximidade, nem de essência, mas sim de uma verdade que dota o sujeito de algo que ele não possuía, uma verdade apreendida a duras penas. Um sujeito que diz a verdade, sim, não porque a conheceu, não porque lhe foi revelada, mas porque a sua conduta é absolutamente, integralmente, totalmente idêntica ao sujeito que a enuncia. Cuida de ti, para ser capaz de enunciar de ti mesmo a verdade! Eis o cuidado de si superando o conhecimento de si.

É preciso que essa verdade afete o sujeito, e não que o sujeito se torne objeto de um discurso verdadeiro”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 217

Texto da Série:

Cuidado de Si

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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quentald
7 anos atrás

Seria interessante listar modos de ação objetiva e pratica, como fizeram os estóicos e epicuristas, a fim de enfrentar as armadilhas contemporâneas. Exercícios mesmo, como se,faz na psicologia comportamento ( preconceitos a,parte). Sair do campo da linguagem e fazer a transmutação da passagem ao ato. Precisamos de novas escolas e grupos de ação.

hgropelli
hgropelli
Reply to  quentald
7 anos atrás

Sim, um dos maiores problemas é não sair do conceito, da teoria. Mas como realizamos isso? As nossas sociedades e relações tornaram-se tão complexas, que é difícil “conectar-se” com os filósofos da idade antiga. É claro há outros; nós(seres humanos) procuramos sempre um caminho para seguir, eu não estou esperando uma “resposta pronta”/fácil, ao contrário, algo original, que de algum modo pertença a mim.

Talison
Talison
Reply to  quentald
6 anos atrás

Rafael, que texto maravilhoso! Parabéns pela escrita, confesso que ri quando você cita o Oráculo de Delfos, e o senso comum nos repetindo: conhece a ti mesmo, conhece a ti mesmo.. Rsrs, no mais, parabéns!

Glen, psicólogo
Glen, psicólogo
7 anos atrás

Pelo jeito, a página entrou em férias… Já estou com saudades

Glen, psicólogo
Glen, psicólogo
Reply to  Rafael Trindade
7 anos atrás

Parabéns por este projeto! É claro que este site não é direcionado apenas para psicólogos, mas este site vem a colaborar para a urgente construção de uma psicologia (e psicólogxs) subversiva, rebelde, antropofágica. Uma ética que diga não a essa cultura social escravocrata e perversa. Investimos em uma formação pensando em nosso melhor, e no melhor para pessoas, para a libertação, mas quando nos damos conta ops – nossa profissão nada mais é que mais uma ferramenta deste sistema – é preciso desformar para formar novamente. Realmente impressionante como vocês, caras jovens com tempo limitado como todas as pessoas, conseguem… Ler mais >

Felipe Fernandes de Viveiros
Felipe Fernandes de Viveiros
7 anos atrás

Foda pra caralho esse post! Já vi outros do Rafael, curto pra caralho ele nesse site!!

Não sacava, até então, essa ideia do Cuidado de Si. Fiquei bastante intrigado com o cerne dessa ideia, é algo que tenho por vista durante minha vida nesses últimos anos, e garanto, por experiência própria, a importância do cuidado de si.

Valério Augusto
Valério Augusto
5 anos atrás

Primeiro: deixemos Platão de lado, essa praga que coloca obstáculos a quem queira aprender de si e crescer, regatando a sua identidade que esteve sufocada. Crescer através do conhecimentos é um tal absurdo que nega a individualidade. Isto é de fundamental importância. O conhecimento pode nos servir, no máximo, para formularmos questões – que devem ser respondidas, não pela razão, mas pelo que trazemos como componentes de uma personalidade enrustida ainda. Palavras não resolvem a questão existêncial eminentemente emocional. Alguém duvida que as contribuições freudiana e reichiana são muito mais úteis do que qualquer filosofia? O que acontecei na Grécia,… Ler mais >

Jonathan
Jonathan
3 anos atrás

Gostei imensamente do texto. Essa diferença entre o conhecimento o conhece si e o cuidado de ti é pouco falada e colocada dessa forma tão clara . Agradeço a oportunidade.