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O Eterno Retorno de todas as coisas, aquela que, em nossa série, chamamos de Eterno Retorno Cosmológico é a primeira e menos intensa das formulações. Ela não promove a aceleração digna de um conceito como esse. Sozinha, ela não desloca as forças, não atua sobre o corpo, não leva à ação. A razão científica está ainda muito preocupada com a verdade para propor modos de vida autênticos. O Espírito Livre ainda tem um longo caminho pela frente até destruir todos os ídolos. Por isso, precisamos prosseguir…

Superar a vontade de verdade é assumir que a mera possibilidade já garante os efeitos do pensamento. Crer, como Platão, que apenas o constrangimento do pensamento verdadeiro leva à transformação é uma tolice. Dirá Nietzsche: e a potência do falso? A ideia de danação eterna é um ótimo exemplo para mostrar o que um pensamento pode fazer com a humanidade, independentemente de sua verdade.

Então, por que não pensar da mesma maneira o Eterno Retorno? Ora, uma única vez ou inúmeras vezes, não importa! Se a formulação cosmológica é falha, o importante é que pensemos os seus efeitos! Qual o valor deste pensamento? Ele favorece a vida? Ou a amaldiçoa? Ele estabelece como critério a própria vida ou a desmerece em razão de outros mundos?

O Eterno Retorno do Mesmo é o segundo momento deste conceito. É hora de agir, mas que horas são? Será já meio-dia? Ainda não, o sol não está a pino. Bom, então é preciso pensar sobre quem o pensamento do Eterno Retorno irá decair, quais são os ouvidos que o podem ouvir, quem poderá incorporá-lo. Nietzsche suspeita que seu pensamento soará como uma maldição, pois não há homem ainda preparado para ouvir suas palavras sem antes cuspir ao chão.

O niilismo se espalha como uma sombra pelo corpo da humanidade. Toma de assalto a humanidade e a leva à decadência. Quais as origens dessa doença? Excesso de cristianismo e a crença na razão!  A vida está sempre rebaixada, sempre sendo pensada sob condições, fazendo concessões, em função de uma ideia transcendente, de um universal. Ora moral divina, ora moral humana, sempre os mesmos erros! Ah, é urgente navegar para além de bem e mal!

Sképsis diante da moral é o decisivo. A ruína da interpretação da moral do mundo, que não tem mais nenhuma sanção, depois que tentou refugiar-se em um além: termina em niilismo. ‘Tudo não tem sentido’ (a inexequibilidade de uma única interpretação do mundo, a que foi dedicada uma força descomunal – leva a desconfiar se todas as interpretações do mundo não são falsas)”

– Nietzsche, Vontade de Potência, §3

O homem cansado, vivendo na ausência de sentido, não suportaria viver infinitas vezes. Mesmo assim, o pensamento do Eterno Retorno do Mesmo tem a potência de o levar a uma crise, uma reorganização do ponto de vista da grande saúde. O homem precisa ser superado! Por isso, a título de experimentação, como uma anedota, como mera hipótese, Nietzsche põe esta formulação na boca de um demônio:

O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse…”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §341

Ou seja… já não importa se é verdadeiro ou falso, agora é uma questão de intensidade. O demônio impõe um desafio de pensamento, não uma tese científica. O retorno cosmológico como hipótese que afeta o pensamento é exposto:

…‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem  – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!…”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §341  

Esta hipótese demoníaca demanda uma urgência diante da existência, ela traz uma nova perspectiva, uma transformação, uma mudança de eixo. E se tudo, absolutamente tudo retornasse? Afinal, qual seria a nossa reação? É isso que Nietzsche quer testar… qual seria a nossa reação se não houvesse mais nada além desta vida que retorna eternamente?

– Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes? ‟, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §341

Duas reações são possíveis: pavor/recusa e alegria/consentimento. O que é preciso para querer viver tudo outra vez? Quais forças precisam habitar um homem para que ele chegue ao fim de sua vida e diga “mais uma vez”? O Eterno Retorno do Mesmo é um pensamento seletivo, um desafio ético. O que nós queremos, queremos por incontáveis vezes?

Mas trata-se também de um pensamento de pura imanência! Pois elimina de si toda e qualquer exterioridade e traz o centro de gravidade novamente para a Terra. Devolve o peso para esta existência! Mas não era isso que tanto nos oprimia? Não era isso que os cientistas contemporâneos de Nietzsche temiam? Essa própria existência sem sentido?

– Melissa McCracken

Para Nietzsche, este pensamento supera todas as religiões e metafísicas porque mantém o centro de gravidade valorativo no real, não se busca por justificativas éticas no além-mundo para justificar esta existência, ela agora precisa se justificar por si mesma. Por isso o título “O maior dos pesos”, pois a questão do valor saiu do mundo transcendente e voltou para o  nosso mundo.

Aqui, Nietzsche usa o niilismo como combustível para explodir a si mesmo. O sem-sentido exige então uma operação seletiva, mas trata-se de uma seleção bem diferente da platônica. A ideia é dar cabo do que não pode ser salvo em nós e voltar a investir naquilo que possui a capacidade de criar. O martelo de Nietzsche serve para destruir e construir, seu peso é seletivo. Ele libera as forças corrompidas pelos velhos valores e abre caminho para construir novos.

O Eterno Retorno seleciona porque dilacera quando passivamente interpretado e leva ao êxtase quando ativamente vivido! O Eterno Retorno é o niilismo mais selvagem que assusta aqueles que buscam um sentido fora deste mundo, mas a maior bênção para aqueles que querem viver neste. Ele abre dois caminhos: um, onde a exaustão se esgota por si mesma; outro, onde a abundância se supera, se separa e se expande. Daí a necessidade de transvalorar os valores, trazendo novas possibilidades para a existência. E para isso precisamos de novos pensamentos, desafiadores e que nos façam ir além! Caso contrário, o desafio do Eterno Retorno nos esmagará!

Esta doutrina coage o indivíduo a dar sentido por si mesmo, é a fórmula máxima de afirmação. Por isso ele se torna criador de valores, invertendo e colocando a eternidade neste mundo e não no além, operando uma mudança de perspectiva, capaz de encontrar outras formas de dar peso às coisas, de medi-las. Esta capacidade de criar e ser juiz é o que justificará a existência de cada um. Nós precisamos escolher e criar pensando “viveríamos isso eternamente?”, “se tudo retorna, que forças justificam seu retorno?”.

A mim parece, ao inverso, que tudo é de demasiado valor para poder ser tão fugaz: procuro uma eternidade para cada coisa: seria permitido despejar os preciosos bálsamos e vinhos no mar? – Meu consolo é que tudo o que foi é eterno: – o mar os traz de volta”

– Nietzsche, Vontade de Potência, §1065

O aforismo de Nietzsche é intitulado o maior dos pesos porque retira Deus como o ponto máximo de onde retirávamos e pesávamos nossos valores antigos e traz esta nova possibilidade: pesar nossos valores com o peso do Eterno Retorno. “Deus está morto!” Nós o matamos. Então, cabe a nós pesar este ato e criar novos valores no sentido de avaliar, medir, estimar, pensar sobre eles, realizar uma genealogia. Por isso, o mais radical dos pensamentos, aquele que refunda a imanência, desfaz o que Platão fez.

A ideia de que tudo pode retornar exatamente igual nos torna infinitamente responsáveis por nossas escolhas e atitudes. Como seremos obrigados a vivê-las infinitas vezes, precisamos fazer o melhor possível, aqui e agora. Precisamos viver de tal modo que a mera hipótese de tudo se repetir outra vez seja uma bênção! Eis o Eterno Retorno! A vida não tem sentido? Ótimo! Melhor assim! Impossível, para nós, seria se o mundo já estivesse justificado por um decreto divino! Com leis e mandamentos imutáveis escritos nas estrelas! Já estivesse tudo decidido por algum ser superior ou por qualquer entidade que seja, a vida seria a maior das maldições! Isso sim seria um terrível fardo! Queremos que a eternidade volte para este mundo, caso contrário, não haveria sentido em criar nada!

A moral e a religião protegeram até agora a vida do sem-sentido, mas o Eterno Retorno é capaz de liberar as forças e diferenciar. Este é o papel do pensamento seletivo, acelerar a decadência nos permite ver quais forças devem se salvar e quais devem ser aniquiladas. Para aqueles que afirmam em sua máxima potência, a existência se torna novamente perigosa, mas tão mais sedutora. O acaso, o incerto e o súbito nos tornam mais fortes, convocando o nosso melhor. Neste sentido, Nietzsche opõe a afirmação dionisíaca à culpa cristã. O dionisíaco delicia-se num mundo sem Deus. A ética encontra a tragédia. O maior de todos os pesos é também o maior de todos os presentes: se tudo retorna, a vida não tem sentido! Nós damos sentido a nossas vidas, como um artista que dá sentido a sua obra.

Que bênção! Temos a chance, e esta sim nos parece divina, de sermos responsáveis por nossa própria criação! Nietzsche abriu a possibilidade de nos tornamos artistas! Esculpindo-nos como nossa própria obra de arte; dançando a música da vida, não pelo que acontece depois que ela termina, mas pelo prazer do ritmo e da melodia.

Texto da Série:

Eterno Retorno

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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faustost2015
faustost2015
7 anos atrás

Idéia poderosa! Parabéns pelo texto!

Luciana Veronese
7 anos atrás

Maravilhoso texto!!!! A genialidade de Nietzche é enlouquecedora e inspiradora. Tê-lo conhecido salvou minha vida – acho que já tinha um DNA nietzscheano dentro de mim e simplesmente não conseguia compreendê-lo. Entender o sentido do eterno retorno me libertou das amarguras do niilismo e deu um significado muito mais palpável à minha vida.

Rodrigo Duarte
Rodrigo Duarte
5 anos atrás

Texto muito bom, ta muito de parabéns bixo.

Ayla
Ayla
4 anos atrás

Incrível!

Elio Marques
Elio Marques
4 anos atrás

Muiro bom,obrigado.Só assim começo a compreender Niezche

Paulo
Paulo
4 anos atrás

Primeiramente parabéns pelo texto, eu gostaria de saber a sua opinião sobre a página 65 “Das mulheres jovens e velhas” para Zaratustra a mulher é somente “a mãe do super homem” sem poder ela mesma buscar pelo além do homem?

Milene
Milene
3 anos atrás

É disso que eu penso ,como conhecer a verdade.
Se libertar é ler um texto e ter a interpretação decodicada.
Lerei muito mais …um verdadeiro BUMMMMM no cérebro.
Parabéns ….perfeito elementar ✨💡

Lena
Lena
2 anos atrás

Que venha mais “o eterno retorno” de seu texto, Rafael Lauro! Obrigada e parabéns