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Nada do que me apresentam como minha essência me esgota; são apenas nomes”

– Max Stirner, O Único e Sua Propriedade, p. 472

– Ivo Stoyanov

A psicologia para Stirner pode partir apenas de um único ponto: o egoísmo. Este é o nada criador, o nada que se consome! Nada está acima do anarquista-individualista e é deste nada do qual tudo o mais pode brotar. Não há outro caminho, apenas o egoísmo pode ser considerado a mais real e mais poderosa das forças.

Stirner precisa deste ponto de partida. E é a partir dele que delimitamos uma fronteira; se começássemos por Deus, o Homem, o Inconsciente, já estaríamos alienados do processo, já estaríamos presos em coisas que não somos nós próprios.

O que quer o egoísta? Profanar todos os ídolos e afirmar a si próprio. Nem Deus nem Mestre, repetiremos incansavelmente. Isso não significa cair na ilusão de que não existe mais nada além de nós. Estamos no mundo, claro, fazemos associações, mas de agora em diante nossa posição será totalmente diferente: somos inimigos de todo poder que se afirme como superior a nós, trocamos a transcendência pela imanência.

Nossa luta se faz nesta realidade, pela própria realidade. Nenhum poder é sagrado, estamos todos na mesma condição, um mar de forças. O Único é um grau de potência, cabe a ele afirmar-se, associar-se, apropriar-se, enfim, lutar com tudo que está à sua disposição. E como ele faz isso, para Stirner há apenas uma caminho, através da propriedade.

Minha relação com o mundo consiste em desfrutar dele, em o usar para meu gozo pessoal: essa relação é gozo do mundo e faz parte do meu… gozo pessoal”

– Max Stirner, O Único e Sua Propriedade, p. 412

Se nenhum egoísmo pode ser destruído, se o Único é absolutamente singular, encontramos aqui um utilitarismo e um hedonismo levados ao extremos: só o Eu importa, apenas ele deve ser objeto de nossa atenção e qualquer coisa que se coloque na sua frente deve ser considerado um inimigo. O Eu como conjunto múltiplo de forças que procuram se afirmar! Uma vontade de potência que quer sempre mais, sempre aumentar seu domínio.

Claro que isso não significará um hedonismo banal, mas precisamos lembrar que precisamos partir de algum ponto: se não posso controlar, então não é meu, então não me diz respeito. Stirner torna o Único um corpo singular maciço, que através de seu egoísmo super condensado dobra o espaço e faz tudo girar ao seu redor.

Que me importa se o que penso e faço é cristão ou deixa de ser? Que me importa se é humano, liberal, humanista ou não-humano, iliberal, inumano? Se isso servir meus interesses, se me satisfazer, pois dai-lhe os predicados que quiserdes, então isso me é completamente indiferente”

– Max Stirner, O Único e Sua Propriedade, p. 461

Sabemos que não é fácil ler essas proposições assim de repente. Mas tudo bem, a Filosofia precisa de um tempo para ser digerida. Precisamos perceber aqui contra quem Stirner está em luta: contra o humanismo, o niilismo reativo que domina tudo em seu tempo. Stirner luta contra a falsa liberdade! Sua intenção é demolir a psicologia fundada em conceitos metafísicos que escravizam o homem.

Homem não é uma essência da qual somos predicados! “Homem” é apenas uma palavra! Nossos humanistas ainda são pessoas devotas! Os Direitos Humanos são nosso novo mandamento sagrado. Deste jeito é fácil ser ateu, apenas trocamos Deus por Homem e pronto. Mas nós, quando falamos do Egoísta, não criamos um novo ideal, fundamos nossa causa sobre nada, sobre este eu transitório, que de tudo procura se apropriar. Nada é sagrado para o egoísta! Sua missão não é realizar essência alguma

De que adianta matar Deus se ainda velamos seu corpo através de outros ideais supostamente laicos? O Estado, o Bem, a Moral, o Homem são ainda representações do divino, são frutos da Revolução Burguesa, ainda escondem um cheiro de adoração. Para matar a divindade no homem é preciso não só matar Deus, mas também o próprio Homem, que foi feito à sua imagem e semelhança. Nem Deus nem mestre, apenas o nada criador!

A psicologia, segunda as acusações de Stirner, está neste mesmo caldo idealista. Por isso é preciso repensá-la profundamente, fundar uma contra-história da psicologia, para torná-la novamente perigosa. A psicologia está ainda no campo da moral, ela está presa em preconceitos pietistas, impotentes.

Temos aqui duas concepções: na primeira nós buscamos algo que não está em nós, ou talvez em nosso interior mais profundo. Desta forma, buscamos uma verdade escondida, que precisa ser descoberto através de uma catarse, uma revelação. Nos olhamos no espelho e perguntamos: “quem sou eu”, para encontrar algo de verdadeiro, de eterno, puro. Já o Único, por sua vez, tem em mãos a sua própria vida, ele faz de sua vida a sua propriedade para usá-la com bem a entender. Em vez de procurar um outro Eu, ele procura um Eu afirmador, capaz de usufruir sua vida como lhe convém, esbanjando aquilo que possui. Traçando círculos éticos por onde possa circular.

O homem moderno está preso em imagens, em sonhos, em ilusões. Se julga muito superior ao homem religioso, mas ainda se debate no mesmo campo, com as mesmas questões, apenas lhe dá nomes diferentes. Queremos encontrar uma psicologia que destrua estes Ídolos e abra novos caminhos para o Eu-proprietário, Singular, Único.

Um homem não está ‘destinado’ a nada, não tem nenhuma ‘missão’ particular, nenhuma ‘destinação’, tampouco como uma planta ou um animal a tem. A flor não obedece a missão de se aperfeiçoar, mas emprega todas as suas forças para gozar e consumir o mundo o melhor que ela pode, ou seja absorve tanta seiva da terra, tanto ar da atmosfera, tanta luz do sol quanto pode receber e guardar”

– Max Stirner, O Único e Sua Propriedade, p. 421

Esta é a primeira tarefa de Stirner: talvez o homem tenha uma missão, ou sinta isso profundamente, nutrindo esta esperança, mas o Único não deve nada  a ninguém e não veio a este mundo para cumprir um objetivo maior. Não nos descreveremos como escravos de Destino, Karma, Missão, nada… Somos aquilo que podemos tomar para nós, aquilo que podemos instaurar: somos singularidades apropriadoras.

Cada um usa em cada momento toda a força que possui”

– Max Stirner, O Único e Sua Propriedade, p. 421

– Ivo Stoyanov

Para fundar uma psicologia do Único, não podemos dizer a um ser humano o que ele é, podemos apenas encontrar o menor caminho entre ele e sua propriedade, entre ele e as suas conexões possíveis. Este seria o objetivo de uma verdadeira psicologia egoísta: encontre sua propriedade! É absolutamente necessário fundar para si sua própria propriedade.

Isso vale para pensamentos, objetos, posturas, valores, relações, habilidades, memórias. Tudo que gira em torno de nós, que está sob nosso poder, é nossa propriedade. Cada um deve usar toda a força que possui para construir para si sua propriedade, edificar sua morada, erigir uma maneira autêntica de afetar e ser afetado. Da mesma maneira que Deleuze diria “Encontre seu corpo sem órgãos“, Stirner dirá: “encontre sua propriedade, é imprescindível fazê-lo”.

Eis a psicologia… uma apropriação, um domínio, uma posse, uma vontade de chamar de “meu” a mais coisas. Onde estão os Espectros que nos assombravam? Foram todos exorcizados pelo egoísmo… Onde estão as Imagens que antes dobravam nossos joelhos e exigiam nossa obediência? Foram enterradas em cova coletiva, sem lápide. Não somos espíritos! Não somos homens (este é feita à imagem e semelhança de deus). Não somos sujeitos! Somos uma singularidade apropriadora.

A psicologia tradicional e a religião estão muito próximas então, este é o perigo para Stirner! Psiké do grego, significa Espírito, Alma. Como poderia a psicologia dar ao homem sua liberdade tão ansiada se o escraviza de antemão? Como poderia ela encontrar caminhos para singularizar os seres humanos se logo de saída os considera sujeitos iguais? O adestramento assume várias formas: Deus, Povo, Estado, Família, Razão, Liberdade, Humanidade. Mas e se nada disso for nossa causa? A diferença do outro não é a nossa diferença.

O adestramento sempre esteve na ordem do dia, o ‘formar’ os homens para serem morais, racionais, devotos, humanos etc. Esses esforços fracassam, em razão da indomável singularidade do eu, à natureza própria de cada uma, ao egoísmo”

– Max Stirner, O Único e Sua Propriedade, p. 428

Dito isso, Stirner responderá: a única coisa da qual temos algum conhecimento, somos nós mesmos, como indivíduos. É essa singularidade devemos cultivar, encontrar nela suas extravagâncias, suas reentrâncias. Desdobrá-la para dentro e para fora. Por isso, a causa do Único não é a de mais ninguém! Só dele, exclusivamente dele! Ele se associa pela diferença, encontra aliados naquilo que eles têm de excepcional. Stirner não sai do niilismo negativo para cair no reativo! A morte de Deus exige imediatamente a morte do homem e da moral! É a transvaloração em ato, sem pedir licença!

Não que isso seja fácil, sabemos bem, a singularidade ofende o homem vulgar. Mas Stirner encontra uma psicologia completamente laica, ateia, exterminadora de superstições. Se não há deus, então só há objetos! Múltiplos objetos! Por todos os lados! Objetos singulares (não parciais). Se não há inconsciente, então existe apenas maquinações, um Eu que procura realizar conexões entre objetos, e chamar de seu a mais coisas, sejam ideias, vivências, terrenos, habilidades. Que cada um se aproprie daquilo que achar necessário.

Diríamos, então, o completo oposto da psicanálise: não falta objeto, não há buraco nem falta, isso é efeito do homem perder de vista o seu egoísmo e dedicar-se a causas que não são as suas. O que falta é a propriedade, ligar-se ao que é seu! E se falta, nós as criaremos, tomaremos esta responsabilidade em nossas próprias mãos. Usando das mais diversas estratégias que se fizerem necessárias. A falta não é um buraco (os objetos são reais), é o espaço entre nós e nossa propriedade.

Enfim, somos todos coisas, objetos entre objetos. A psicologia stirneriana exige este materialismo absoluto, inflexível. O importante é entender como cada um articulará esta objetividade absoluta. O egoísta como aquele perito na arte de juntar e desjuntar, aproximar e separar. Como o único circula entre suas propriedades, como as encadeia? Isso dirá o quanto ele é dono de si ou objeto para outro. Um objeto é aquilo que fazemos dele, como nos utilizamos dele. O Único faz vários usos de si mesmo, ele não se limita a ser uma coisa só, ele se escava e acha novos modos de vida. Seu corpo faz essa triagem porque não pode e não quer ser adestrado.

Da mesma forma que Nietzsche diz: “Torna-te quem tu és!“, o Único não procura a si mesmo como se estivesse perdido! Ele está em posse de suas forças simplesmente para fazer uso delas, gastá-las, . Não há mais medo da vida, pelo contrário, há um esbanjamento: apenas o verdadeiro egoísta pode esbanjar! Não queremos mais saber de como perdurar, encontrar a vida eterna, mas como gastá-la da melhor maneira, como consumi-la!

Deleuze e Guattari dizem que o homem moderno não consome, porque está preso a imagens, ele vive na representação. Ora, isso não vale para o Único, ele não procura ser algo que não é, ele não está preso a partidos ou gêneros, não se ilude com modelos de vida, não vive nostálgico nem esperançoso. Ele está na tangente, ele procura aliados em vez de seguidores.

Para o egoísta, só a sua história tem valor, porque ele só pretende desenvolver-se a si próprio, e não a ideia de humanidade, não o plano de Deus, não os desígnios da providência, não a liberdade etc. Não vê em si um instrumento da ideia nem um receptáculo de Deus, não reconhece nenhuma vocação, não lhe passa pela cabeça dar a mínima contribuição para o progresso da humanidade: vive sua vida até o fim sem se preocupar em saber se é bom ou mau para a humanidade”

– Max Stirner, O Único e Sua Propriedade, p. 471

Stirner não funda uma psicologia focada no Ego que traria uma tripartição (Id-Ego-Superego), não cria uma teoria fundada nas estruturas do Eu, nas personalidades, nos arquétipos. Seu objetivo é maior, ele quer uma psicologia baseada na associação-apropriadora, liga de egoístas. Uma psicologia perdulária que consome a si própria no ato de viver, esbanjar e expandir a vida. O egoísta quer desenvolver a si próprio, não uma ideia abstrata de si próprio e para isso fará as conexões necessárias.

Da mesma forma que Foucault pediu por uma vida não-fascista, o Único quer tirar de si o Estado, A Nação, as religiões, os dogmatismos; de si e também dos outros, enfim, de todas relações. Em toda e qualquer instituição onde o indivíduo for dissolvido, castrado, normalizado, o egoísta lutará com todas as suas forças. O indivíduo regular, medíocre, antiquado, gregário, fiel seguidor das leis e dos bons costumes, é o antípoda do Único. O Crepúsculo de todos os Ídolos será a Aurora do Egoísta!

Só um mandamento teria Stirner: que cada um leve seu egoísmo ao máximo, esgote seu egoísmo e o leve às últimas consequências! O Único não tem vocação e não quer contribuir para nada que não possa satisfazer a sua singularidade e nisso que tudo acontece, as mais exuberantes criações e ligações. Transformando sua vida em um rizoma, ela cresce para os lado, não em direção a um objetivo transcendente. Ele não procura desenvolver-se, melhorar, evoluir. Seu objetivo é afirmar-se enquanto Único, singularidade de forças em relação de apropriação contínua e obstinada.

Não há conceito que sirva para me dar expressão, nada do que me apresentam como minha essência me esgota; são apenas nomes […] Sou proprietário do meu poder, e sou-o ao reconhecer-me como único. No único, o próprio proprietário regressa ao nada criador de onde proveio. Todo o ser superior acima de mim, seja ele Deus seja o homem, enfraquece o sentimento de minha unicidade e empalidece apenas diante do sol desta consciência. Se minha causa for a causa de mim, o único, ela se assentará em seu criador mortal e perecível, que a si próprio se consome”

– Stirner, O Único e a sua Propriedade, p. 472

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Vinícius Alves de Moraes
6 anos atrás

Pela primeira vez eu discordo de alguma colocação do Blog. Acho que existe algumas argumentações bem equivocadas. Pela primeira vez discordo da opinião do Rafael. RSrSrrs E já de cara.. SRRSrrs.. eu descordo dos fundamentos, dos princípios básicos fundadores desse pensamento.
Gostaria de debater o assunto. Abraço grande.

Libertino
Libertino
Reply to  Vinícius Alves de Moraes
6 anos atrás

Diga seu ponto de vista… fiquei curioso agora rsrs

Vinícius Alves de Moraes
Reply to  Libertino
6 anos atrás

Compartilho das ideias de Yung que o Inconsciente seria uma forma primitiva de consciente. é a consciência animal, esta ligado diretamente aos instintos. Creio que a maior parte das psicologias aceitem essa ideia. Creio que ate a psicanalise contemporânea, Freudiana e Lacaniana já aceitem bem isso. Então cai por água abaixo a afirmação: “Stirner precisa deste ponto de partida. E é a partir dele que delimitamos uma fronteira; se começássemos por Deus, o Homem, o Inconsciente, já estaríamos alienados do processo, já estaríamos presos em coisas que não somos nós próprios.” Creio firmemente que somos um ser com elementos inconsciente… Ler mais >

Pedro Silva
Pedro Silva
6 anos atrás

Muito foda

Libertino
Libertino
6 anos atrás

Qual a diferença entre o Egoísta de Stirner e o Super Homem de Nietzsche ?

Vinícius Alves de Moraes
6 anos atrás

Compartilho das ideias de Yung que o Inconsciente seria uma forma primitiva de consciente. é a consciência animal, esta ligado diretamente aos instintos. Creio que a maior parte das psicologias aceitem essa ideia. Creio que ate a psicanalise contemporânea, Freudiana e Lacaniana já aceitem bem isso. Então cai por água abaixo a afirmação: “Stirner precisa deste ponto de partida. E é a partir dele que delimitamos uma fronteira; se começássemos por Deus, o Homem, o Inconsciente, já estaríamos alienados do processo, já estaríamos presos em coisas que não somos nós próprios.” Creio firmemente que somos um ser com elementos inconsciente… Ler mais >