Não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária”
– Foucault, Para uma Vida Não Fascista
Este talvez seja um dos conselhos, uma das estratégias mais importantes para uma vida não fascista! Prestem atenção na constatação simples: A alegria é maior que a tristeza! A alegria move mais do que a tristeza! E portanto, nos leva mais longe. Não poderia haver conselho mais espinosista que este! Dizer que a militância necessita de ódio, de ressentimento é uma das coisas mais perigosas que poderíamos fazer! E Foucault nunca se deixou levar por um militantismo decadente e derrotista.
É possível ter um pensamento político que não seja da ordem da descrição triste: é assim, e você está vendo que não tem graça! O pessimismo de direita consiste em dizer: veja como os homens são filhos-da-puta. O pessimismo de esquerda diz: veja como o poder é nojento! Podemos escapar destes pessimismo sem cair na promessa revolucionária, no anúncio do entardecer ou da aurora? Eu creio que é isso que está em jogo atualmente”
– Foucault, Ditos e escritos V
É necessário mudar de estratégia. Nietzsche dizia: o grande perigo é o nojo ou a compaixão pelo homem. Os dois deságuam no imobilismo. Não falaremos nunca a favor do pensamento estanque, preso, impotente. Queremos outros caminhos. É preciso ser militante, claro! Tanto no campo da micro quando da macropolítica. Ora, por que não? Nós sabemos que tudo está perdido, claro, e as coisas são muito mais complicadas do que imaginávamos em um primeiro momento, mas isso não significa que não podemos encarar o fascismo com ânimo e coragem. Se conseguirmos fazer tudo isso com um sorriso no rosto, esta poderá ser doravante uma poderosa arma intelectual.
Podemos ser realistas e dizer “a realidade é mais dura do que pensávamos“, mas não cairemos no ressentimento hobbesiano do “homem como lobo do homem”. O ser humano não pode ser definido simplesmente com um bando de filhos da puta. Porque isso seria condenar toda a realidade e cair em uma paranoia totalizante e unitária. Certamente existem pessoas das quais queremos a mais absoluta distância. Isso significa: a vida é a arte de encontrar distâncias. O riso oferece esta possibilidade.
Qual o valor desta verdade? O filósofo que ri é capaz de encontrar as soluções mais criativas. O filósofo que gargalha possui então uma das vidas mais potentes! O riso abre para aquilo que não era esperado, ele encontra brechas. Há um riso alegre que mostra um ânimo para enfrentar ativa e expansivamente. O riso é o selo de nossa vontade: queremos estar lá, estamos felizes, é assim que buscamos de viver. Precisamos criar ouvidos para ouvir mais atentamente a leveza daqueles que levam suas lutas para o cotidiano com alegria!
Sabemos disso desde o tempo de Diógenes, que ria na cara de Platão que dizia idiotices sobre o tal “reino das ideias”! Sabemos disso desde Demócrito, alegre com o turbilhão de Átomos, pureza da natureza, que continuamente criava e recriava o mundo. Riso não é loucura, é excesso de sabedoria. Epicuro sabia disso, Espinosa sabia disso, Nietzsche sabia muito bem disso. Até Camus, com seu Sísifo condenado constatou essa obviedade.
Nós também cremos, juntamente com Foucault, que é isso que está em jogo atualmente. Ele nunca mostrou-se um amargo pessimista que sonhava em dinamitar o planeta, muito menos Deleuze e Guattari. Por quê? Simplesmente porque estavam ligados demais à realidade, mesmo em seus momentos mais difíceis. A filosofia se esforça para mostrar que a alegria e o riso mostram caminhos para viver de outra forma, se articulando pela diferença e contaminando horizontalmente. Procurar espaços de invenção de liberdades!
Há aí uma dupla afirmação. Não se nega o mundo, vive-se nele, e não se nega nossa atuação, afirma-se ela em um mundo, mesmo que destroçado, mesmo que em frangalhos. Este militante está distante do militante que carrega uma verdade universal! Muito distante do revolucionário-pastor, com suas ladainhas penduradas em um estandarte, bradando que aquele é o único caminho. O sim do conformista, que tudo aceita, não é o nosso; o sim do militante triste, que tudo recusa para seguir apenas um único caminho, também não nos pertence; procuramos por um Sim que, afirmado plenamente, muda toda uma relação de forças! Contamina toda uma vida!
Talvez a amizade seja uma das grandes armas contra o fascismo. Na amizade encontramos os pré-requisitos básicos: potências que se somam em um processo de diferenciação e não de colonização; uma horizontalidade que se faz por ajuda mútua e não por poder ou hierarquia; uma das alegrias mais puras, que a simples presença do outro traz; uma criação que não se deixa capturar por representações e imagens. A amizade possui a bonita a capacidade de ser generosa, ágil e recusar com criatividade uma vida assujeitada. Buscamos esta estética da existência, ela é necessariamente alegre, ou ao menos aponta para isso.
O enfrentamento requer inteligência, sutileza, ânimo de sobra e uma boa dose de humor. Aquele que procura uma vida não fascista precisa ser retirado das milícias teleológicas, da militância teológica e ser atirado na revolta, na insurreição, na insubmissão, no inacabado! O militante triste não é causa de si, é o eterno efeito de poderes; o militante alegre encontra uma ligação estreita entre o pensamento e a realidade, o trabalho sobre si mesmo é também um trabalho de transformação da realidade.
O militante deve buscar o exuberante devir! O militante abre o porvir! Ele afirma a afirmação e quer o eterno retorno da diferença! A grande alegria do militante é agir e ele faz isso por essência, por pura expressão de seu devir-revolucionário. É algo que acontece pura e simplesmente, não necessita nem mesmo de muito esforço. Quantos militantes alegres nós conhecemos que se reconhecem pelo riso fácil e pela postura ativa? Infelizmente poucos…
Conclusão: como dizia o poeta, “É melhor ser alegre que ser triste”
Tenho ficado bastante interessado em introduzir-me no pensamento de Foucault (especialmente sobre essa discussão para uma vida não fascista). À que livro devo dirigir-me? Que sugerem-me?
Opa, tudo bem, Paulo?
Pois é, esse assunto é muito interessante! Olha, no Foucault eu indicaria a parte ética dele, no Deleuze, o mais indicado é o Anti-Édipo, apesar de ser um livro difícil
Tem também, talvez seja o melhor primeiro passo: Para uma vida não fascista, coletânea de artigos da editora autêntica.
Oi! Antes de iniciar a fase ética, indicaria o capítulo “A trajetória de Michel Foucault” do livro “Foucault Simplesmente” de Salma Muchail só para ter uma visão geral e beeeeem sucinta da trajetória dele.
Para a fase ética (fase do Cuidado de Si) sugiro o início: “Hermenêutica do sujeito” que são textos correspondentes às transcrições das palestras de Foucault no Collège de France.
Excelente texto. Precisamos ser alegres em tempos de golpe. Obrigada
Rafael, parabéns. Seu espaço é sensacional. Descobri apenas hoje e estou muito encantada.
Tocado por esse texto. Fazia tempo que ele estava aberto na aba do meu navegador, buscando um momento para ser lido e foi lido de fato num momento em que precisava justamente dessa reflexão. Desconheço uma sensação melhor do que quando pensamentos se conectam com o nosso estado pessoal e vc sente uma corrente aconchegante de ideias vir com muita liberdade. O dilema entre a cobrança por uma positividade constante é tóxica, ser triste não é preferível, mas tem sido difícil demais não se abater no ponto que estamos (12/08/2020), esse texto vai me ajudar a encontrar o equilíbrio por… Ler mais >
Tocado por esse texto. Fazia tempo que ele estava aberto na aba do meu navegador, buscando um momento para ser lido e foi lido de fato num momento em que precisava justamente dessa reflexão. Desconheço uma sensação melhor do que quando pensamentos se conectam com o nosso estado pessoal e vc sente uma corrente aconchegante de ideias vir com muita liberdade (fruição, talvez), senti esse prazer depois de ler. O dilema entre a cobrança por uma positividade constante é tóxica, ser triste não é preferível também, mas tem sido difícil demais não se abater no ponto que estamos, num ano… Ler mais >
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