Do final do século XVIII ao começo do século XIX, procura-se por uma nova maneira de punir. A antiga é ultrapassada, dispendiosa, cruel, inútil e desumana. É necessário encontrar toda uma nova forma do poder. Afirmar-se: o antigo é espalhafatoso, escandaloso, arbitrário, bárbaro. Não somos bárbaros cruéis, somos humanos, demasiadamente humanos, somos seres iluminados pela razão.
Os Juristas Reformadores se encarregaram de encontrar para cada crime o castigo que lhe convém:
- Ser tão pouco arbitrário quanto possível: a punição deve seguir o mais rapidamente e naturalmente possível o crime cometido, é a forma de causa e efeito. Um imediatamente deve derivar do outro, de modo transparente e irrepreensível. É imprescindível que a pena pareça uma necessidade direta do crime;
- Esse jogo de forças é feito de inúmeros sinais, medidas, critérios: a força da infração receberá seu contraposto igual, apenas o necessário para sinalizar a impossibilidade do crime ser vantajoso, uma representação oposta, nulificante. Os sinais devem tornar o crime menos atraente, a ponto de suprimi-lo;
- A pena, quando necessária, envolve sempre uma modulação temporal. Uma punição só funciona se termina; e só funciona se, ao terminar, o culpado não mais cometer o ato delituoso;
- O culpado é apenas um dos alvos da punição, pois o castigo interessa sobremaneira aos outros, aos possíveis infratores, àqueles tentados a quebrar a lei também;
- O apenado é um exemplo, serve de lição, é a imagem da força e da moralidade pública. Sua visão é a garantia de que a lei sempre prevalecerá e de que a sociedade se encontra segura contra seus antagonistas;
- O crime aparece, então, como a maior das desgraças, a grande humilhação. O malfeitor é aquele que se afastou da luz da civilização, tornou-se um monstro, um inimigo, um decaído.
Podemos ver que há aí uma clara mudança em relação ao século anterior. A pedagogia da punição toma o lugar da festa do suplício. Anteriormente, o criminoso era propriedade e alvo do poder do Rei. Agora, é um bem social, ou seja, um objeto de apropriação comum e exemplo para a sociedade. Há todo um interesse coletivo na pena do condenado.
Ao longo de seus estudos, Foucault define sete possíveis maneiras de punir:
- Difamar: a opinião pública aparece como o modelo ideal de punição, pois o julgamento aconteceria de maneira coletiva, participando assim do campo social e psicológico. Não há tribunais, nem códigos. A sociedade estabelecida é capaz de constranger o indivíduo que quebrou uma lei. Um povo que quase não precisa de uma legislação, tão pleno e seguro de si;
- Retaliar: é o famoso “olho por olho, dente por dente”, lei do Talião: aqui se faz, aqui se paga. A pena é uma punição na exata medida do dano causado. Há uma graduação. As dores físicas são punidas com castigos físicos; as monetárias, com multas; a vagabundagem, com trabalho forçado, e assim por diante. É um puro e simples contra ataque da sociedade ao criminoso;
- Escravizar: é uma maneira de forçar o indivíduo ao contrato social. Paradoxalmente, é a imersão coercitiva do sujeito na sociedade. Ele trabalhará e será prestativo para o corpo social, mesmo que à força. Reabilitação imposta à revelia entre o indivíduo e a sociedade;
- Excluir: exilar, expulsar, colocar para fora. Impedir que o indivíduo frequente os lugares comunitários ou sagrados. Apagar seu lugar de nascimento, queimar sua história, sua memória, sua existência;
- Compensar: fazer o indivíduo ressarcir o dano que causou, devolver algo, exigir reparação, converter o dano causado em dívida a ser paga;
- Marcar: fazer uma cicatriz, deixar no corpo um sinal, uma marca, apontando a todos o ato que cometeu no passado, deixando à vista que seu delito foi percebido e vingado pelo poder;
- Encarcerar: sempre colocada como a última das alternativas, é simplesmente tirar o indivíduo do meio social, mas sem expulsá-lo. Pelo contrário, interiorizando-o ainda mais profundamente em suas instituições.
Essas táticas penais são maneiras pelas quais o poder incide sobre o indivíduo. Vimos que a razão iluminista procura desesperadamente por novos pesos e medidas para seus castigos e punições. Nesta busca incansável, a prisão quase nunca aparece como uma opção. Ela é sem graça, não realiza os sonhos iluministas dos juristas. Ela simplesmente não fazia parte do sistema penal antes das grandes reformas de 1780 a 1820.
Ora, eis o problema: depois de bem pouco tempo, a detenção se tornou a forma essencial de castigo”
– Foucault, Vigiar e Punir
Estranho, né? A procura da Razão Esclarecida era por pesos e medidas proporcionais ao delito, sinais, representações, efeitos. Por que nada disso aconteceu? Por que se instituiu, após a revogação dos suplícios, todo um sistema de arquiteturas fechadas e isoladas? A variedade, a modelação, a graduação das penas foi substituída muito rapidamente pela monotonia e uniformidade da detenção.
Em pouco tempo, todos os delitos imagináveis eram punidos de uma única e melancólica maneira: reclusão. Adeus às maravilhas punitivas imaginadas pelos reformadores! Todos estes sonhos foram logo substituídos pela prática e enfadonha realidade da prisão. Por quê? Isso é o que mais impressiona Foucault, afinal, esta tática simplesmente não fazia parte dos planos dos reformadores.
Aqui vemos a necessidade imperiosa da genealogia. Não é de dentro da reforma penal que nascem as prisões, elas incidem de fora, chegam sem serem chamadas! São penetras! Vão chegando de mansinho, se metem sem serem percebidas. Forçam sua entrada no campo das punições. Quem chamou a prisão para a festa das punições? A genealogia foucaultiana é a tentativa de resposta.
Primeira hipótese: A cela. Inicialmente instrumento religioso, ela se torna parte de uma estratégia econômica e moral. Qual a função da cela? Ora, para o religioso, isolar-se, fazer penitência; para o Rei, a masmorra serve para encontrar de pronto aquele que procura, um preso político, talvez. Ou seja, a cela é a garantia de domínio temporal e espacial do outro.
O cárcere mostra a superioridade de um regulamento, de uma ordem, sobre um indivíduo. É uma maneira de organizar seus encontros, sua rotina, sua vida. Para os religiosos, o isolamento era uma maneira de quebrar com as “más influências” do exterior, redescobrir-se, reformar-se. A cela é espaço de exceção, penitência, espaço entre dois mundos, espaço de transformação.
O encarceramento, com a finalidade de transformação da alma e do comportamento, faz sua entrada no sistema das leis civis”
– Foucault, Vigiar e Punir
O que é a cela da prisão? Máquina de modificar espíritos. Através deste novo espaço, deste isolamento do mundo real, deve ser feito um trabalho sobre a alma do detento, buscando modificar algo de mais profundo que simplesmente a restituição de seu delito. E durante todo o tempo de detenção no espaço isolado, ele será observado. Tudo será anotado. Deus está vendo.
A pena começa por ser aplicada no corpo, nos gestos, nos hábitos, na rotina, durando o tempo necessário para se atingir a alma. Começa a era da correção de caráter, ortopedia do espírito! É o fim do suplício excruciante do corpo marcado. Sai o corpo ritualizado, entra o corpo regulado no espaço e no tempo. É o começo dos exercícios, das “transformações incorporais”.
O ritual de soberania, que ao menos era rápido, é substituído pela requalificação do indivíduo, que afunda nas instituições de controle. O súdito do rei vira o indivíduo de direitos suspensos, e se torna o delinquente a se requalificar. O criminoso esmagado através do suplício dá lugar ao indivíduo recolocado, renascido, repactuado com a sociedade, mas agora submetido.
Sim, sobre todo o aparato legal da justiça incide sub-repticiamente a prisão: ortopedia dos gestos e hábitos. Treinamento dos corpos, coerção dos indivíduos. Junto com o sujeito de direitos, vemos pouco a pouco aparecer um indivíduo assujeitado. Junto com o indivíduo restabelecido, vemos o aparecimento dos reflexos de submissão. Junto com a cela da prisão, nasce a vigilância. Junto com o “sujeito da razão iluminista”, nasce o homem disciplinado e obediente.
Ótima análise! “Máquina de modificar espíritos”, bem pensado.