O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado”
– Foucault, Vigiar e Punir
“Quem fará a história dos exames?”, pergunta-se Foucault. Ele é, para o pensador francês, a apoteose da vigilância e da punição, sua ferramenta mais refinada. Por isso adquire tanta importância entre as técnicas disciplinares e conquista lugar de destaque dentro de nossa sociedade. Absolutamente todos os dispositivos de disciplina se utilizam do Exame. Através dele todo sujeito se torna objeto a ser conhecido, por isso vigiado, normalizado, e, portanto, passível de ser punido.
A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível”
– Foucault, Vigiar e Punir
Este é o ponto máximo do controle normalizante, a mistura do olhar e da sanção; é através dele que o indivíduo se mostra nu para o olho do poder e se exibe como objeto indivisível (atômico) da ação do poder. “Estou aqui, sou isso, façam o que quiser de mim”, diz o sujeito através do exame. Nele se encontra a “verdade” do indivíduo. Dele, três características emergem:
O Exame inverte definitivamente a visibilidade do poder: sim, se antes o poder brilhava na forma do Rei e o súdito ficava na sombra de sua majestosidade, agora o poder se esconde através do exame e faz brilhar aquele sobre quem atua. É o fato de ser visto e avaliado que faz do sujeito um instrumento do poder, em constante aperfeiçoamento.
É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar”
– Foucault, Vigiar e Punir
A Visibilidade se torna uma obrigação, condição do poder, o exame tira o sujeito das sombras, não há nada mais que ele possa esconder. Lembremos: a visibilidade é uma armadilha, e agora temos plenas condições de entender o porquê. O olhar do poder mede o indivíduo, o caracteriza, o hierarquiza e agora pode puni-lo para que se encaixe mais e melhor em determinada posição.
“Mostre-se para mim, mostre o que você aprendeu”. O Exame insere o sujeito numa rede de informações e documentos: através do exame o sujeito se mostra como objeto e se torna números e medidas. A individualidade, em todas as suas minúcias e detalhes, se torna um número, medidas, registros, acumulação documental.
Do registro individualizante nasce o indivíduo descritível, analisável. E as ciências do homem, diz Foucault, nascem aí. Através do Exame é possível descrever o indivíduo e compará-lo aos demais; caracterizá-lo em grupos, coletivos e verificar os desvios dos “desajustados”.
O Exame leva a um ponto limite, onde permaneceremos eternamente: cada história, cada indivíduo, se torna um caso. É possível olhar para seu passado, para sua história, para cada fato e dizer “Eis a verdade deste sujeito, aí está a resposta”. Esta honra histórica, dada antes somente aos reis e realizadores de grandes feitos, se torna agora parte do cotidiano.
De agora em diante, todo ser humano terá sua vida esmiuçada, pormenorizada, detalhada, violentada por processos de marcação, classificação e objetificação. E pior, desejará se mostrar, ansiará por ser visto, sonhará com o olhar dos outros sobre ele. Diversos dispositivos serão criados para que o sujeito possa mostrar-se mais e melhor em todas as atividades do seu cotidiano. Ele será avaliado por isso, receberá reações.
As redes sociais são o perfeito exemplo deste acontecimento. Mas o mesmo acontece em vários outros campos também. Desde o nascimento do exame, nossos passos são seguidos por câmeras, laudos, fichas, identificações, documentos, prontuários, provas, apurações, análises. Qualquer cadastro exige e-mail, endereço, RG, CPF. Observação contínua, profunda, vigilante, incansável.
Todas estas tecnologias de formação do homem, ou melhor, disciplinarização, foram se desenvolvendo a partir do fim do século XVIII, por isso hoje adquirem ainda mais sutilezas. E aqui vemos até que ponto nos submetemos ao poder. Todos querem ser alguém, todos são influenciadores, seguidos ou perseguidos, mas sempre observados. Todos querem se mostrar, indicar, dar dicas, explicar, ter fãs. Nos colocamos à mostra para sentirmos que existimos.
Ao mesmo tempo em que se homogeneíza, se individualiza. Somos únicos, mas somos todos iguais. Não se trata de uma contradição, é exatamente isso: se analisa indivíduo por indivíduo para colocá-los dentro de uma linha de normalidade e semelhança. Eis o homem moderno.
O exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória. Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de poder para o qual a diferença individual é pertinente”
– Foucault, Vigiar e Punir