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Bergson Cone da memória

O plano P é o presente. O cone ASB é todo o passado de um ser vivo. O vértice do cone, ponto S, é o passado que toca o presente, se atualizando.

Seria possível explicar geometricamente o virtual e o atual? Sim, Bergson o faz com a figura do Cone da Memória. O tempo é dinâmico e fluente, então seria praticamente impossível descrevê-lo em uma imagem espacial, mas é possível uma aproximação didática, cujo único objetivo é deixar mais claro a maneira pela qual a memória toca a ação, o passado toca o presente.

Muito bem, já vimos em textos anteriores: o presente não é, porque é efêmero, passa. Já o passado simplesmente é, ele dura, continua existindo por completo. Nós somos simultaneamente atuais e virtuais, presente e passado, aquilo que passa e aquilo que dura. Tanto somos quanto estamos sendo, tudo ao mesmo tempo. Mas então é necessário explicar a atualização! Porque o virtual é algo que se atualiza em nós? Se somos feitos destas oscilações do passado puro para o presente puro, como isso acontece?

Imaginem um cone de base AB e vértice S como sendo o nosso passado, ele é uma figura volumétrica, tridimensional. Dentro dele estão todas as nossas lembranças, tudo aquilo que vivemos e experienciamos. Toda a nossa vida, todas as situações, de todas as experiências, estão contidas dentro deste espaço, ele é aquilo que somos, e infla conforme vivemos e acumulamos momentos. O vértice do cone toca o plano P. Toda ação se desenrola neste plano. É nele que nossa imagem se encontra com o mundo. Podemos pensar o plano de imanência bergsoniano como a luz pura, fluxos de imagens que se entrecortam e interpenetram.

O cone da memória toca o presente com a sua ponta. Este ponto S é o problema que Bergson quer resolver em seu livro! Como o passado toca o presente? Se ele é passado, como ele pode nos influenciar, agir? Por isso podemos dizer (e esta frase sempre soa confusa) que o virtual é real, mas não existe no atual. O virtual é uma força que pode atualizar-se, ele cria tendências, nos joga para além dos automatismos e determinismos. O ponto S é a ligação entre o plano atual e o cone do passado que somos nós.

Dentro do cone temos memórias mais dispersas e afastadas que estão na base AB, já as memórias mais próximas do ponto S são mais fáceis de serem acessadas. Somos um poço de memórias, a base AB é o passado puro, infinitamente dilatado, não possui imagem. Conforme nos aproximamos do vértice do cone, o passado puro se contrai em lembrança que se atualiza. O momento de máxima contração da memória é o momento em que o passado encontra o presente, o espírito toca a matéria e se torna ação.

Se eu representar por um cone SAB a totalidade das lembranças acumuladas em minha memória, a base AB, assentada no passado, permanece imóvel, enquanto o vértice S, que figura a todo momento meu presente, avança sem cessar, e sem cessar também toca o plano móvel P de minha representação atual do universo. Em S concentra-se a imagem do corpo; e, fazendo parte do plano P, essa imagem limita-se a receber e a desenvolver as ações emanadas de todas as imagens de que se compõe o plano”

– Bergson, Matéria e Memória, p. 179

Mas atualização não significa que o cone desapareça. Há sempre um intercâmbio, pois toda ação retorna como mais duração para um corpo que corta a realidade. Fazemos este percurso entre o passado e o presente, entre as lembranças e a ação prática. Conforme o presente assim exija, nós podemos mergulhar mais fundo em nossas memórias. Ou não, porque algumas ações não exigem profundidade e o hábito motor superficial já dá conta do recado.

A essência da ideia geral, com efeito, é mover-se incessantemente entre a esfera da ação e a da memória pura. […] Em S está a percepção atual que tenho de meu corpo, ou seja, de um certo equilíbrio sensório-motor. Sobre a superfície da base AB estarão dispostas, se quiserem, minhas lembranças em sua totalidade”

– Bergson, Matéria e Memória, p. 189

Por exemplo: tocar piano contrai a memória de muitas maneiras, exige que muitas partes sejam convocadas a habitarem o atual. O presente convida o passado a atualizar-se, e o passado pressiona o presente em determinados sentidos. Uma música é um sinal, um apelo, e é toda nossa existência que responde ao chamado. Isso é a memória atualizada. Memória é um caminho que se faz, uma tendência, um movimento. Cada lembrança atualiza um caminho. O hábito é a memória do que fazemos todo dia, uma highway. Mas existem trilhas dentro de nós, que pouco exploramos. Cada espaço do cone, cada contração, é uma maneira de se conduzir, uma maneira de se mover.

Para que uma lembrança reapareça à consciência, é preciso com efeito que ela desça das alturas da memória pura até o ponto preciso onde se realiza a ação. Em outras palavras, é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida”

– Bergson, Matéria e Memória, p. 178

O cone está virado para baixo, ele é a expansão do universo, mas para dentro. Um universo que se dobra infinitamente dentro de nós. Atualizar uma lembrança é desdobrar-se, abrir uma parte de nós, desenrolar o novelo emaranhado de nosso ser. Tocar bem um instrumento musical é mais que possuir habilidade com os dedos! Exige muito mais do que velocidade em reproduzir escalas. Tocamos com toda a nossa existência! Dar uma boa aula de filosofia é atualizar o cone da memória: exige que várias partes do nosso ser sejam convidadas a habitar o momento atual. Caso contrário damos a aula de maneira mecânica, pobre e monótona.

Tendemos a dispersar-nos em AB à medida que nos liberamos mais de nosso estado sensorial e motor para viver a vida do sonho; tendemos a concentrar-nos em S à medida que nos ligamos mais firmemente à realidade presente, respondendo através de reações motoras a excitações sensoriais. Na verdade, o eu normal não fica jamais em nenhuma das posições extremas; ele se move entre elas, adota sucessivamente as posições representadas pelas seções intermediárias, ou, em outras palavras, dá a suas representações o suficiente de imagem e o suficiente de ideia para que elas possam contribuir utilmente para a ação presente”

– Bergson, Matéria e Memória, p. 191

Bergson fala de um equilíbrio necessário entre as lembranças, o mundo dos sonhos, e o presente, um mundo determinista e fechado. Toda ação se enriquece de passado, então é ela que dá o tom da nossa vida, daquilo que somos, e dos caminhos que percorremos, caso contrário seríamos apenas máquinas de calcular. Ou, como diz Nietzsche, “não somos aparelhos de objetivar e registrar, com as entranhas congeladas”. Não! É todo o nosso ser que grita quando age, todo ele, misto de passado, presente e criação de futuro. Todas as percepções que nos entram nos tocam de maneira mais ou menos profunda, atualizando certas parte de nosso ser.

O equilíbrio é importantíssimo! Ele está entre aquilo que deve e não deve ser contraído na hora da ação. Hesitação demais pode significar perder uma chance, entretanto, não pensar e não refletir convocando nossa memória pode resultar numa atitude impulsiva e imprudente. Há toda uma firmeza necessária entre aquilo que devemos trazer para a consciência e aquilo que queremos manter no esquecimento. As duas são essenciais.

O que caracteriza o homem de ação é a prontidão com que convoca em auxílio de uma situação dada todas as lembranças a ela relacionadas; mas é também a barreira insuperável que encontram nele, ao se apresentarem ao limiar da consciência, as lembranças inúteis ou indiferentes. Viver no presente puro, responder a uma excitação através de uma reação imediata que a prolonga, é próprio de um animal inferior: o homem que procede assim é um impulsivo. Mas não está melhor adaptado à ação aquele que vive no passado por mero prazer, e no qual as lembranças emergem à luz da consciência sem proveito para a situação atual: este não é mais um impulsivo, mas um sonhador”

– Bergson, Matéria e Memória, p. 179

O cone representa muito bem aquilo que somos! Cada subjetividade que dura pode ser pensada por esta figura, cada vida pode ser representada didaticamente através desta forma geométrica. Se o plano é bidimensional, o cone é tridimensional, mostrando a riqueza que nos constitui. Por que o plano é bidimensional e o cone é tridimensional? Porque somos mais que o presente, nós possuímos volume, nós crescemos mais e mais conforme dura nossa existência.

Vemos esse cone acima (ou talvez abaixo) de nós, com as milhares de lembranças que se nos apresentam e constituem? Não! O céu está nublado, a fumaça da cidade, e sua vida prática, nos impede de ver as estrelas. Estamos condenados a fechar os olhos para a memória e seguir maquinalmente em frente. Tudo que é urgente nos fecha a possibilidade de uma ação criativa. Bergson nos aconselharia a fugir das exigências da vida prática para podermos olhar calmamente o céu. Apenas assim veremos que por trás da poluição da vida cotidiana se escondem milhões e milhões de estrelas. A memória se abre para nós como uma galáxia, cheia de mundos e vidas.

Texto da Série:

Memória

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Igor Silva
Igor Silva
4 anos atrás

Agradeço pelo toque vital da noite que o texto em mim proporcionou, Rafael. Um abraço.

jose eustaquio tiradentes da silva
jose eustaquio tiradentes da silva
4 anos atrás

Bom dia, vou me inteirar melhor sobre o assunto ou método

jose eustaquio tiradentes da silva
jose eustaquio tiradentes da silva
4 anos atrás

Vou me inteirar melhor do conteúdo

jose eustaquio tiradentes da silva
jose eustaquio tiradentes da silva
4 anos atrás

irei me inteirar melhor sobre o conteúdo. Me parece muito útil

jose eustaquio tiradentes da silva
jose eustaquio tiradentes da silva
4 anos atrás

Vou me inteirar melhor sobre o assunto

volmir
volmir
3 anos atrás

Parabéns pelo texto. Linguagem simples, mas sem perder a complexidade do pensamento de Bergson. Me ajudou bastante.