Skip to main content
CarrinhoClose Cart

Os grandes inimigos de Bergson são aqueles que pensam que tudo está dado, pronto de antemão, não há mais nada o que fazer. Que tal só sentar e esperar então? Esse seria um belo prelúdio para o niilismo passivo. Ou porque os cálculos nos dirão, ou porque o sentido de tudo já está traçado em fórmulas complexas. O futuro é difícil e raro, diz Bergson, mas não está fechado nem traçado.

Se Bergson quer abrir os sentidos da existência, precisa começar por combater aqueles que querem fechá-lo. No caso aqui nossos inimigos são o mecanicismo e o finalismo. O mecanicismo afirma que tudo pode ser calculado, que a linguagem do mundo é a matemática e tudo pode cair sob sua jurisdição. 2+3=5, ponto final, segue o baile. Já o finalismo afirma que uma coisa existe para alguma coisa. O cordeiro para o lobo, a grama para a zebra, os frutos para nós comermos, etc, etc…

Mecanicismo

As explicações mecanicistas, dizíamos, são válidas para os sistemas que nosso pensamento destaca artificialmente do todo. […] A essência das explicações mecânicas, com efeito, reside em considerar o porvir e o passado como calculáveis em função do presente e pretender assim que tudo está dado”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 36

Cai-se assim na ideia de um universo fechado e cíclico, estacionário, eterno, no qual o tempo não mais importa, pode ser tratado da mesma maneira que o espaço, tudo pode ser calculado. O mecanicismo faz apostas altas, dá all in na primeira rodada: “tudo está determinado e é determinável pelas leis da matemática, posso calcular o que quiser”. É pegar ou largar, queremos pagar para ver? Se a aposta é alta, o risco o é igualmente! Qualquer grão de poeira que saísse de sua trajetória prevista já seria uma ameaça ao seu sistema.

Em vão nos acenam com a perspectiva de uma matemática universal; não podemos sacrificar a experiência às exigências de um sistema. É por isso que recusamos o mecanicismo radical”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 37

Dadas certas condições, um presente, uma situação, podemos calcular outra, este seria o mecanicismo em sua prática cotidiana. Seu grande sonho? Uma Teoria do Tudo com apenas uma fórmula: passado e futuro colonizados a partir multiplicações e divisões. Ora, onde está seu calcanhar de Aquiles? O perigo do mecanicismo é não encarar as brechas por onde o novo nasce. Não escapamos do mecanicismo, sabemos disso, mas uma postura mecanicista nos leva sempre para o mesmo, para o previsível, para o determinado. Queremos criar, dentro do mecanicismo, encontrando suas brechas. A vida faz isso, ela encontra caminhos que nenhum matemático encontraria.

Essa realidade é sem dúvida criadora, ou seja, produtora de efeitos nos quais se dilata e supera a si mesma”

– Bergson, A Evolução Criadora

É claro que o mecanicismo é real, é claro que a vida se dá dentro dele, mas ela vai além! O esforço com que a vida procura manter-se na existência é uma força que a faz durar e se diferenciar. A vida é a capacidade de se diferenciar levada ao extremo. Por isso a vida é qualitativamente diferente da matéria, mesmo estando nela; por isso um ser vivo é diferente de uma pedra, mesmo se constituindo basicamente de carbono, oxigênio e hidrogênio. A vida é a maneira cada vez mais complexa com a qual a matéria flui.

Uma biologia puramente mecanicista irá se empenhar para fazer coincidir a adaptação passiva de uma matéria inerte, que sofre a influência do meio, e a adaptação ativa de um organismo, que tira dessa influência o proveito apropriado”

– Bergson, A Evolução Criadora

O mecanicismo é real, ele apenas não pode dar conta da vida como um todo, da mesma maneira que uma certa quantidade de fotos num álbum não não conta da história de uma família. Mas então, para onde seguir? Como dar conta da vida e sua complexidade? Como a vida existe cede lugar a para quê a vida existe?

– Fabian Oefner

Finalismo

Caímos quase imperceptivelmente no finalismo. Afinal, é fácil dizer que o olho existe para ver! Mas seria um erro dos mais clássicos. Trocar o efeito pela causa. É fácil cair no finalismo, somos levados a ele quase sem querer. Qual a finalidade do olho? Ver! Qual a finalidade das pernas? Andar. Qual a finalidade do pulmão? Respirar. Tudo está escrito, tudo segue seu caminho em direção a um ponto final. O ser humano estava predestinado a existir. Assim como todos os animais e plantas estão aqui para nos servir. A finalidade reina, manda, organiza.

Mas é igualmente inaceitável um finalismo radical! Não podemos sair de um erro para entrar no outro! Se não podemos dizer que a vida caiba no mecanicismo, isso nos leva diretamente para a tentação de um finalismo subjacente. Se explicamos a vida por uma finalismo antropomórfico, “O universo existe para nós existirmos“, “A vida existe para se encaixar em um molde no futuro distante“, então tornamos o finalismo estreito demais, pequeno, até mesmo ridículo. Ficamos novamente presos! Como se houvesse um design inteligente e que definisse nossa direção, como se houvesse um lugar para o qual nos encaminhamos (mesmo que às vezes por linhas tortas). Isso vale individualmente, coletivamente e ontologicamente. No finalismo tudo está dado, e não podemos nos desviar. Novamente estamos presos em conceitos estreitos demais.

A doutrina da finalidade, sob sua forma extrema, tal como a encontramos em Leibniz, por exemplo, implica que as coisas e os seres não façam mais que realizar um programa já traçado”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 37

Mas se tudo já está traçado, e não há como escapar, novamente o tempo perde seu valor. É tudo uma questão de esperar sentado que uma hora chegaremos. O finalismo é um fatalismo, um caminho que percorreremos queiramos ou não. “É tudo uma questão de tempo até chegarmos” faz do próprio tempo uma questão inútil. Todo imprevisto será engolido pelo finalismo: “mais uma maneira de chegar até lá“, dirão eles, “todos os caminhos levam a Roma“.

Assim como no mecanicismo, o “tudo está dado” nos espreita. É apenas uma outra maneira de dizer que Deus escreve certo por linhas tortas. Tudo está em um futuro que um dia alcançaremos, uma luz brilha lá na frente. O passado mecânico e determinado foi substituído pela atração do porvir.

Bergson abomina este pensamento escatológico, mas se deixará levar pelo finalismo, com outro objetivo. Ele não se deixará seduzir e não cairá em um finalismo tradicional e antropomórfico como o conhecemos. A vida não segue numa direção com um objetivo claro, não há um modelo que falta realizar-se. Mas o filósofo francês se deixará levar pela ideia. Se ampliarmos a ideia de um finalismo, abarcando a vida como um todo, o veremos de fundo atuando em seu mais digno esplendor, superando toda resistência que se lhe opõe.

Mecanicismo e finalismo, portanto, não são aqui mais do que vistas exteriores tomadas de nossa conduta. Extraem desta última a intelectualidade. Mas nossa conduta desliza entre os dois e estende-se mais longe. Isso não quer dizer, mais uma vez, que a ação livre seja a ação caprichosa, irracional”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 42

Enquanto o mecanicismo vê apenas posições no plano, o finalismo vê apenas um plano maior. Tudo não passa de besteira, dirá Bergson, maneiras tortas de resolver o problema da vida. Ilusões que a inteligência nos coloca, por ser instrumento da vida, sua serva, e não possuir a capacidade de ver além.

Bergson não quer cair nessas duas armadilhas: A primeira seria tratar a vida como menor que as leis da Física e da Química, sua escrava, sua subordinada. A vida é uma curva, mas a Física e a Química a tratam como se fosse pequenas retas que a compõe, perdendo sua natureza original. A vida não é mera adaptação ao meio, ela é mais que isso. Mas a vida também não é finalismo externo, ponto onde o múltiplo encontra o uno. A primeira cai numa inércia que vem de trás e a segunda rende-se à força de atração que tem na frente. Nenhuma das duas são boas respostas.

O mecanicismo nunca concretizará seu projeto de poder (tudo calcular). Já o finalismo, como dissemos, precisa ser repensado e invertido: não é o universo que dá sentido ao indivíduo, mas o indivíduo que se abre ao todo, criando e dando sentido. A vida não existe sem direção, mas certamente não há meta. Há tendências, mas não há ponto final, há finalidades que se fazem num processo.

Qual a finalidade que a própria vida se coloca? Um esforço para superar tudo que se lhe opõe, para dar conta disso das mais variadas maneiras possíveis. A vida é a própria capacidade de diferenciar-se de maneira cada vez mais criativa. Quando cai o pano do mecanicismo e do finalismo, podemos ver o que havia por trás: puros movimentos de divergência e diferenciação.

A realidade aparece-nos como um jorro ininterrupto de novidades”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 42

Texto da Série:

Elã Vital

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
7 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
silvana
silvana
4 anos atrás

Pensa num texto incrível ??? Maravilha de conhecimento compartilhado que vocês realizam….Amo muito! Parabéns pelo trabalho de vocês. Esses textos nos levam a uma profundidade de reflexão muito proveitosa.

FRANCISCO ALVES DE MEDEIROS NETO
FRANCISCO ALVES DE MEDEIROS NETO
4 anos atrás

acho que a vida tem um pouco de mecanicismo e de finalismo. ou seja, de doutrina filosófica e de diversas finalidades.

Régis
Régis
4 anos atrás

Textos que trazem muitos subsídios para reflexão. Obrigado!

Lilian
Lilian
4 anos atrás

Chega a ser poético: “Qual a finalidade que a própria vida se coloca? Um esforço para superar tudo que se lhe opõe, para dar conta disso das mais variadas maneiras possíveis.” Foge do mecanicismo e do finalismo extremo, sem negá-los, mas buscando fundamentos e apontando uma direção para novos saberes. Não há ponto final. Obrigada por compartilhar suas impressões sobre esses temas tão importantes. #gratidão

Leonardo Scotti Darós
Leonardo Scotti Darós
4 anos atrás

Mais um texto para ler e pensar muito. Parabéns.

Jorge
Jorge
4 anos atrás

Na minha opinião, esse questionamento jamais terá uma resposta definitiva. Por exemplo: Em um primeiro momento, eu acredito que foi por minha livre e espontânea vontade que eu digitei no Google: Mecanicismo. Eu sei que foram os algoritmos de pesquisa do Google que me direcionaram para a sua página e muitas outras. Eu também acredito em um primeiro momento que foi meu livre-arbítrio que me fez clicar no seu link. Entretanto, após uma reflexão, eu percebo que eu não teria pesquisado por Mecanicismo se não tivesse ouvido falar disso em um jogo de video-game. Não teria escolhido o seu link… Ler mais >

Paulo Roberto da
Paulo Roberto da
Reply to  Jorge
2 anos atrás

monstruoso. Passa depois em determinismo e behavorismo, kkkkk