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O movimento evolutivo seria coisa simples, seria coisa rápida determinar sua direção, se a vida descrevesse uma trajetória única, comparável à de uma bala maciça lançada por um canhão”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 77

Se a vida fosse uma flecha lançada pelo primeiro procarionte que replicou a si próprio, seria fácil traçar a sua rota. Mas as coisas não são tão simples assim. Desde o primeiro organismo, poderíamos dizer que, mais do que uma flecha, a vida explodiu simplesmente para todos os lados! Como uma explosão que espalha estilhaços em todas as direções, podemos definir a evolução como pedaços que se dispersam, sempre se dividindo novamente, chegando cada vez mais longe. O que importa, para Bergson, é entender estas mudanças, estas diferenças.

A evolução realizou-se na verdade por intermédio de milhões de indivíduos em linhas divergentes, cada uma das quais desembocava, por sua vez, em uma encruzilhada de onde irradiavam novas vias e assim por diante, indefinidamente”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 46

Seria fácil compreender a vida se ela seguisse uma direção única pelo espaço: da primeira bactéria ao ser humano com seu cérebro desproporcional. Mas, como dissemos, as coisas não são tão simples assim, e ainda bem. A evolução não queria criar o ser humano. Somos apenas um ponto muito interessante da evolução, e é isso que nos interessa.

O que Bergson está querendo dizer é que não podemos predeterminar para onde a vida vai, muito menos indicar-lhe as melhores direções, predeterminar seus movimentos. Este deslocamento é espontâneo e indeterminado, seus caminhos não estão dados de antemão. Há uma contínua sucessão de formas que mudam constantemente, infinitamente. Por quê? Esta é a pergunta de Bergson, por que a vida não simplesmente se acomoda, estaciona em seu lugar e pára de evoluir?

Neste momento é importante lembrar do percurso filosófico de Bergson. Primeiro é preciso sair dos falsos problemas recolocando a questão do tempo (intuição). Depois, encontrar um monismo, mas chegar em um pluralismo. Bom, chegamos inegavelmente no pluralismo, e é aqui que as coisas ficam realmente interessantes. A vida é um modo de agir sobre a matéria bruta, é uma maneira de organizar a matéria em uma forma diferente. Podemos colocar como duas tendências: a vida elevando a matéria bruta, e a matéria oferecendo resistências que a vida, por sua vez, precisa vencer continuamente. Onde está a origem disso tudo? Esta pergunta ainda não possui resposta, mas podemos responder o porquê da vida se dividir: pelas resistências que a matéria lhe impõe e seu equilíbrio instável.

A resistência da matéria bruta é o obstáculo que foi preciso contornar primeiro”

– Bergson, A Evolução Criadora

Durante muito tempo a própria vida imitou a matéria, e é difícil dizer se determinados acontecimentos químicos já são vitais ou não. Mas todo organismo, de alguma forma, arrasta a matéria para outro lado que não a sua tendência inercial. A vida se encarna na matéria, se apossa dela, lhe oferecendo outras direções. Clinamen epicurista? Talvez. Cada vez que encontra uma resistência, um obstáculo, ela se desvia, o contorna de alguma maneira, faz uma curva.

A vida é tendência e a essência de uma tendência é desenvolver-se em forma de feixe, criando, pelo simples fato de seu crescimento, direções divergentes entre as quais seu elã irá dividir-se”

– Bergson, A Evolução Criadora

A evolução é como um vulcão em erupção, abundância de magma e detritos disparados para todos os lados. O elo comum liga todas elas, umas às outras. É necessário entender estas linhas divergentes da evolução, que não estão dadas de início, mas vão criando soluções para contornar os obstáculos que a resistência da matéria lhe impõe. Tudo se faz por divisões criativas e divergências produtivas. Ao longo deste percurso, um dos pontos em que a evolução chegou foi o ser humano, ela não tinha este objetivo original, mas chegou.

Ou seja, a vida se divide, e a natureza conserva inúmeras dessas divisões, divergências, direções:

As duas tendências que se implicavam reciprocamente sob essa forma rudimentar dissociaram-se ao crescer. Daí provém o mundo das plantas com sua fixidez e a sua insensibilidade, daí provém os animais com sua mobilidade e a sua consciência”

– Bergson, A Evolução Criadora

Não precisamos convocar forças mágicas que guiem os animais para um lado e os vegetais para outros, tudo acontece como uma rio que se divide. Não há nada de estranho nisso, é apenas uma força que ao encontrar uma resistência se divide em duas tendências diferentes. De um lado, procurou-se por uma imobilidade, a capacidade de retirar sua energia da luz solar e dos elementos encontrados na terra; do outro, encontramos a mobilidade e a capacidade de encontrar no ambiente organismos que possuem energia acumulada em suas células.

Um retira o alimento do ar, da água, da terra; o outro retira o alimenta já fixado pelas plantas. Enquanto o primeiro pode recorrer à imobilidade, apenas espalhando suas raízes para baixo e suas folhas para o alto, o segundo precisa mover-se constantemente, procurando por alimento no plano que percorre. Hábitos sedentários e nômades, divergência, diferenciação, dois caminhos a se percorrer, cada reino segue para um lado.

Conforme os animais se desenvolvem, as maneiras apreender o ambiente, através de órgãos sensoriais vão se modificando e algumas vezes convergindo. O olho, por exemplo, aparece mais de uma vez no movimento evolutivo e diversas maneiras de “ver” são encontradas. O cérebro é uma das maneiras de organizar a sensibilidade e a resposta adequada para o ambiente que nos rodeia.

A vida quer existir e durar, se afirmar, mas é limitada e finita, não consegue fazer tudo de uma vez. Ela se vira com o que tem e faz o que pode. Improvisa, dá um jeito. Animais e Vegetais são exemplos disso, o mesmo vale para o Instinto e Inteligência são duas soluções diferentes, mas igualmente elegantes, para os problemas que são colocados para a vida.

Os vertebrados, os mamíferos, os primatas, os homo-sapiens são todos parte de um caminho que a vida seguiu, criando, improvisando, maneiras diferentes de existir. Possuímos, relativamente, os maiores cérebros do reino animal e isso se dá em grande parte por causa do nosso neocórtex. Isso é bom, mas não nos torna melhor do que uma formiga ou uma alga marinha.

A evolução se faz por mudanças gradativas e acumulativas, claro. Mas ela é mais ainda, diz Bergson, ela é diferenciação por divisão. A vida é a grande marcha da duração. Neste processo, ela acumula informações, se conserva e se diferencia. Quanto mais a vida se divide, mais ela se torna possível. Viver é divergir, é multiplicar-se, é aumentar e forças virtuais dentro do atual! Podemos dizer que a vida é a inserção de indeterminação na matéria, é a contingência positiva (não por falta de conhecimento). É potência de duração e diferenciação.

A vida, ela, progride e dura […] Mas, acerca do caminho que iria ser percorrido, o espírito humano nada tem a dizer, pois o caminho foi criado ao mesmo passo que o ato que o percorria, não sendo mais que a direção desse ato ele próprio”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 45

Texto da Série:

Elã Vital

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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1 Comentário
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Leleusk
Leleusk
3 anos atrás

Muito revigorante e belo, e tudo de uma forma orgânica.

Last edited 3 anos atrás by Leleusk