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No Tratado Teológico-Político, Espinosa realiza uma arte interpretativa sem precedentes. Praticamente ninguém antes dele ousou ler os escritos sagrados de maneira crítica. Por muito tempo o texto mais poderoso da história da humanidade permaneceu inquestionado. Muitos questionaram a religião, mas poucos realizaram uma crítica a partir dos textos, desfazendo os mal entendidos desde a raiz.

Vimos como as Profecias não se justificam por expressar algum conhecimento de Deus, ao contrário, elas se apoiam na força que possuem como imagens que inspiram a crença. A história do povo Hebreu mostra como os Profetas dirigiram o povo por sobre as adversidades usando a força persuasiva de sua viva imaginação. Os Profetas e suas Profecias relacionam-se não ao conhecimento racional e sabedoria, mas à imaginação e fé.

A despeito de terem existido Profetas justos, cujos exemplos vemos nas Escrituras, o que Espinosa vê em seu tempo é o uso torpe da religião para justificar interesses ocultos. A capacidade de persuasão profética pode ter sido usada com justiça para guiar um povo de ex-escravos pelo deserto, mas com o passar do tempo tornou-se um instrumento de dominação utilizado para conservar o poder, ampliar a dominação e incitar a obediência.

Uma das expressões desse uso deturpado é unção dos Monarcas: o Rei escolhido por Deus, o Tirano abençoado pelo Sacerdote. Teologia e Política, uma classe apoiando a outra com o intuito de permanecerem ambas no poder. TeoPolítica é a dupla captura de um campo pelo outro, como uma simbiose trágica entre formas de pensar a vida em sociedade.

A questão é que, para justificar a si mesmos como imperadores do povo, eles se apoiam em uma imagem de Deus como majestade da natureza. Mas será que essa ideia de Deus é apropriada? Será que Deus é a suma majestade, o monarca do universo, a autoridade maior de tudo o que existe?

Deus ou a Natureza

Para entender a ilogicidade dessa prática de submissão, é preciso averiguar primeiro se Deus realmente é uma autoridade que comanda a Natureza. Como sabemos, todo o esforço inicial da filosofia espinosana é para mostrar que Deus não comanda a Natureza porque não está fora dela. Deus é a Natureza, é a causa imanente de tudo o que existe.

Na primeira parte da Ética, o De Deo, o filósofo apresenta o seu Deus. A única substância cuja existência deriva de si mesma, Causa Sui. Em uma frase, Deus é aquilo que existe e que faz existir. A célebre fórmula Deus ou a Natureza, Deus sive Natura, estabelece uma ontologia da necessidade, que nos permite identificar aquilo que existe com aquilo que é.

Pensando Deus dessa maneira, não sobra muito espaço para o poder. Tudo o que Deus pode ser ele é em ato. Está tudo aí, em processo de contínua produção. O mundo não é criação contingente de um Deus voluntarioso, caprichoso como um príncipe. Assim, Deus, embora absolutamente infinito, não é uma pessoa transcendente de direitos, nem juiz do universo.

Por governo de Deus entendo a ordem fixa, imutável, da Natureza, ou, dito de outra forma, o encadeamento das coisas naturais; dissemos antes, com efeito, e o mostramos em outro lugar,  que as leis universais da natureza, de acordo com as quais tudo se faz e tudo é determinado, não são outra coisa senão os decretos eternos de Deus que envolvem sempre uma verdade e uma necessidade eternas.”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, III

Enquanto o criacionismo pensa que o possível antecede o real, o determinismo pensa que o possível é o real. O Deus criador é imaginado como todo poderoso em potência, mas não em ato. Ele sempre pode ser mais do que é, surpreender-nos com reviravoltas. Enquanto o Deus-Natureza é justamente aquilo que é. O que Espinosa chama de Deus está no mundo, é tudo o que existe. Ele determina e é determinado, afeta e é afetado, produz e é produzido, a vida se desdobra nele.

Mas porque será que o Deus transcendente, eminente e criador interessa aos Teólogos? Ora, justamente porque é poderoso, por estar fora do mundo nos observando, intervindo quando julga necessário. Basicamente, essa maneira de enxergar Deus é só uma extrapolação da maneira como eles mesmos vivem: “Se o triângulo pudesse falar, diria que Deus é eminentemente triangular” (Carta 56 a Boxel). Os poderosos querem um Deus que justifique suas arbitrariedades.  

A ideia de Deus como Natureza é desenvolvida em sua plenitude na Ética, onde o conteúdo é predominantemente propositivo. Por outro lado, no Tratado Teológico-Político, as questões são outras e o contexto é combativo, embora cuidadoso. Espinosa fala àqueles que estão dispostos a ler a bíblia de maneira crítica. O “caro leitor-filósofo” a que ele se dirige no prefácio do livro são todos aqueles que como ele conhecem bem a religião, mas afastaram-se de seu campo moral.

Nesse sentido, Espinosa precisa enfrentar as questões fundamentais das Escrituras que se opõem à sua ideia de Deus. Ele quer mostrar ao leitor que os textos sagrados não têm nada de contrário ao Deus-Natureza. Proposta ousada, não é? Qualquer um que conheça minimamente o pentateuco poderia contestar o filósofo: “Se Deus não é todo-poderoso como ele pode ter escolhido um povo?”

Os Eleitos

Chegamos à base que sustenta a realeza divina na terra, a lógica dos Eleitos. Conhecemos a história, Deus escolheu o povo hebreu para realizar o seu reino na terra. É assim que está escrito: “o Senhor se afeiçoou aos seus antepassados e os amou, e a vocês, descendentes deles, escolheu entre todas as nações, como hoje se vê” (Deuteronômio, 10:15).

Então, Deus escolhe um povo entre os outros e revela a eles que são os melhores, os eleitos? Espinosa não pode aceitar essas ideias, pois elas contradizem totalmente as suas. Para mostrar que Deus não é um príncipe escolhendo representantes, ele precisa reinterpretar a noção de eleição divina.

O que se deve entender por eleição de Deus: com efeito, como ninguém age senão em conformidade com a ordem pré-determinada da natureza, quer dizer, pelo governo e pelo decreto eterno de Deus, segue-se daí que ninguém escolhe a sua maneira de viver e nada faz a não ser por uma vocação singular de Deus, que elegeu tal indivíduo, de preferência a outros, para tal obra ou tal maneira de viver.”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, III

Espinosa procede substituindo vagarosamente a ideia de eleição pela de vocação, como que substituindo uma pecinha com defeito dentro da máquina. Se tudo está em Deus, se tudo é expressão da potência divina, então aquilo que se diferencia não se diferencia porque Deus o elegeu à parte do resto. A diferença se expressa por vocação, pela capacidade de fazer algo novo a partir da singularidade.

Nesses termos, a eleição é simplesmente uma disposição própria e positiva para algo. Uma espécie de desenvolvimento. Podemos pensar em um grande músico: ao invés de imaginar que Deus quis e o escolheu para aquilo em detrimento de todos os outros que tentaram e não conseguiram, pensamos diferente, o virtuoso é aquele que realiza o encontro entre o seu desejo e a sua vocação, entre a sua singularidade e a realidade.

Espinosa aposta nessa composição entre um auxílio interno e externos dispostos pela Natureza. Deus se expressa em infinitas modalidades diferentes, daí a singularidade e o auxílio interno; e além disso expressa-se na interação, no encontro desses modos, eis o auxílio externo. A conjugação desses dois tempos, como duas afirmações simultâneas, dá a luz à virtude.

Então, o povo dito “eleito” tem qual vocação? Ora, vocação para a política. Espinosa nos dá exemplos de como os judeus conseguiram manter seus laços estreitos apesar dos diversos infortúnios aos quais foram submetidos. A escravidão, a pobreza, o deserto não foram capazes de superar o povo cuja vocação era a política, eis a leitura do filósofo sobre um dos mistérios fundamentais da Bíblia. Isso mostra que quando se fala no ‘povo de Deus’, fala-se simplesmente naqueles que tinham a vocação de realizar-se como povo, de manter-se como sociedade.

As Leis

Espinosa subverte e supera uma primeira leva de contestações. Deus não elege, a não ser que entendamos ‘eleição’ como ‘disposição’ para a grandeza. Mas é claro que há muitas outras questões problemáticas a serem enfrentadas ainda. O Teólogo poderia dizer, por exemplo: “o que dizer da Lei de Deus, dos mandamentos?”. E sustentaria assim a sua opinião de que Deus é Majestade de tudo, legislador de nossas vidas. Ao qual o filósofo responderia:

A palavra lei, entendida absolutamente, aplica-se todas as vezes que os indivíduos, tomados um a um, na totalidade dos seres ou como alguns da mesma espécie, se conformam a uma só e mesma regra de ação bem determinada.  De resto, uma lei depende às vezes de uma necessidade natural, às vezes de uma decisão entre homens.”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, III

Nós usamos a palavra Lei em dois sentidos possíveis: como uma regra da natureza, como a chuva ou a gravidade por exemplo; e como regra humana, acordo entre homens vivendo em sociedade. De um lado, leis naturais necessárias; de outro, acordos provisórios e inventados pelos homens. Percebam que Espinosa sutilmente exclui a ideia de Lei divina. Por quê? É bem simples, Deus é a Natureza, a lei natural é a lei divina.

Espinosa - Os Eleitos e as Leis

Rembrandt

Vejam o que Espinosa está dizendo nas entrelinhas, nós não podemos desobedecer às leis naturais, porque elas são necessárias, logo não podemos desobedecer a Deus, pois Deus é a Natureza. Imaginemos o filósofo dizendo isso aos teólogos em 1670. Toda a comunidade moral depende da obediência a Deus. Afirmar que é impossível ir contra Deus é potencialmente legitimar toda ação como válida. Os moralistas vão à loucura.  

O que interessa a Espinosa é criar um conceito de Lei que seja interessante. Aos poucos, ele acaba deixando a lei natural de lado, dizendo que é pura necessidade, e que por isso mesmo deve ser entendida de outra maneira. Por exemplo, podemos entender e aprender a nos relacionar com a Natureza, mas nunca desobedecê-la. Podemos voar aprendendo como a gravidade funciona, mas nunca poderemos contrariá-la. Podemos fazer uma dieta alimentar, mas nunca parar de comer.

A ideia de que Deus coloca leis é muito rasa. A palavra lei serve melhor para pensar as regras de ação postas pelos homens. Espinosa reservará a palavra Lei para aquilo que pode ser desobedecido, vejam a grandeza subversiva do filósofo. Ao restringir o conceito de legislação para os homens, ele contesta de uma vez por todas a imagem de Deus como Juiz.

Concluímos, portanto, que Deus só é descrito como legislador ou como príncipe e apelidado de justo, misericordioso etc.,  em virtude da maneira de entender do vulgo e pela falta de conhecimentos. Na realidade, Deus age e dirige todas as coisas unicamente pela necessidade de sua natureza e perfeição; os seus decretos, enfim, e as suas munições são verdades eternas envolvem sempre necessidade.”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, IV

O que dizer dos mandamentos? O decálogo, a tábua sagrada recitada para Moisés pelo próprio Deus, segundo os escritos. Apenas leis humanas de forte inspiração divina, dirá Espinosa. “Não matarás” parece uma boa lei para um povo já oprimido pela morte, pela fome, pela pobreza. O mesmo para todos os outros mandamentos, regras úteis postas por homens inspirados, cuja vocação era dirigir o povo. Os Profetas bíblicos são, na opinião do filósofo, homens de viva imaginação dedicados à realização política de uma sociedade justa.

A fórmula final é a seguinte: a lei divina só será divina se não for lei; e a lei só será lei se não for divina. Lei divina é, portanto, um oxímoro operado como simples instrumento político. Os Teólogos, interessados em plantar obediência e colher dominação, jamais aceitarão essa visão. Espinosa, no entanto, não está interessado em convencê-los. Ao contrário, ele quer mostrar aos outros que há maneiras mais interessantes de entender as Escrituras. Ele quer contestar a Teologia para possibilitar a Filosofia. Suspender a obediência para subsidiar a contestação.

Será mero ato de revolta? Absolutamente não. É do interesse de todos nós que a virtude seja para todos e que as leis possam ser desobedecidas, reformula-das, buscadas no interesse de cada situação. Espinosa inocenta Deus e a existência para colocar a legislação em nossas mãos, eis o primeiro passo para a realização de uma democracia radical.

Texto da Série:

TeoPolítica

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Deivid
Deivid
5 anos atrás

Belo texto, libertador! Fico admirado com os escritos de Spinosa, conclui o livro ética e como fiquei maravilhado com a perspectiva. Boa parte estou colocando em prática, tecnicamente ele ensina o evangelho, assim como Jesus, porém cada um nas conjunturas de suas épocas, ambos sofreram as represálias em refutar os preceitos morais, no entanto cada um com sua realidade. Em minha perspectiva Jesus foi um anarquista em refutar as leis, pois a letra mata, refutou o olho por olho dente por dente, assim como salvar uma prostituta, trabalhar nos sábados, mas como o próprio texto a cima diz, eles capturaram… Ler mais >

Mauricio Santos
Mauricio Santos
Reply to  Deivid
5 anos atrás

A matéria é criação de Deus a ética e criação do homem…

Marcos Teles
Marcos Teles
6 meses atrás

O excerto nos revela uma outra perspectiva do “sagrado” posto pelo Homem. Nos impulsiona a tomar uma postura crítica e sem barreiras morais.
O compartilhamento da saberia dos “antigos” fomenta a libertação de um povo, assim como Moisés; embora este o fizesse pela própria benesse, convenientemente.