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No intuito de retirar o suporte teológico da política, Espinosa propõe uma leitura crítica da Escrituras Sagradas. Unindo o conhecimento histórico do povo hebreu ao conhecimento filológico do hebraico antigo, o filósofo judeu pôde olhar para os textos religiosos de maneira aguda. A crítica permitiu que ele entendesse como os textos sagrados engendraram o contexto de sua sacralização, ou seja, permitiu lê-los como um livro comum.

Espinosa se comporta como quem pretende desmontar uma máquina a partir de dentro, peça por peça. Ele vê todo tipo de delírios acobertados pelo que pretensamente está escrito na bíblia e se propõe – com toda a seriedade com que faz filosofia – a analisá-la. Quase dá pra ver ele dizendo aos teólogos: “Vocês estão dizendo isso? Tudo bem, vamos lá ver se isso está realmente escrito dessa forma”.  

Já sabemos, Espinosa nunca menospreza, ele tenta compreender. Em se tratando da religião de seu povo, de sua família, de sua história, não poderia ser diferente. Isso não significa, entretanto, que se possa permitir que se molde – “como pedaço de cera”, ele diz – o que está escrito. Uma leitura crítica deve mostrar até onde a interpretação pode ir e, principalmente, onde ela deve parar.

Todo tipo de conflitos religiosos nascem de leituras divergentes sobre detalhes misteriosos. Assim, a leitura das Escrituras deve começar pela análise das falas mais contraditórias possíveis, aquelas que mais geram controvérsias, a dos Profetas e das Profecias.

Profecia ou Revelação é o conhecimento certo de alguma coisa revelado por Deus aos homens. O profeta, por conseguinte, é o que interpreta as coisas que Deus revela para aqueles que dele não podem ter um conhecimento certo e que, por isso, só pela fé as podem partilhar”

– Espinosa, Tratado Teológico Político, I

Qual a diferença entre o conhecimento natural e o conhecimento revelado? Ambos são divinos, pois para Espinosa pode-se dizer Deus ou, simplesmente, Natureza. Ou seja, o conhecimento que se segue da luz natural, de nosso intelecto, é divino porque se debruça sobre a Natureza. O filósofo procura conhecer Deus pela razão. Os profetas hebreus, por sua vez, eram intérpretes de um conhecimento revelado e, portanto, distinto do conhecimento natural.

Ambos os conhecimentos buscam compreender Deus, então a diferença entre eles não é o objeto que apreendem mas a causa que os move. A causa do conhecimento natural é a Razão, na sua capacidade de encontrar medidas, noções comuns entre os diversos modos de expressão da Natureza. Por outro lado, a revelação é um tipo de conhecimento cuja causa é parcial, confusa, é uma imagem que precisa ser decifrada, interpretada. Assim, podemos dizer que o conhecimento revelado parte da Imaginação.

A Profecia é um tipo imaginativo de conhecimento, isto é, um tipo de conhecimento “por ouvir dizer”. O Profeta ouve a voz de Deus e precisa interpretá-la. Ele nunca sabe a causa do que percebe, apenas percebe e precisa dar conta disso. Espinosa não se preocupa em dizer que essa percepção é falsa, esse não é o ponto. Ao contrário, ele parte do princípio de que os Profetas não mentiam ao dizer que ouviam a voz de Deus. Mas isso não nos leva a concluir que as profecias não sejam confusas e não garante que seus efeitos sejam eficazes.

Para entender melhor como funciona a imaginação, podemos retomar um famoso exemplo da segunda parte da Ética. Sabemos que a Terra gira em torno do Sol, mas quando o vemos atravessar o céu ele não deixa de parecer girar em torno de nós. A nossa percepção nos dá imagens que existem de fato. O Sol parece mesmo orbitar em torno da Terra e isso, em si mesmo, não é falso. A imaginação é um tipo de conhecimento, isso não se pode negar, o que não significa que ela seja capaz de conhecer acertadamente as relações.

Para profetizar, não é necessário um pensamento mais perfeito, mas uma imaginação mais viva”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, I, 20

Assim, o que distingue os Profetas dos outros homens não é a sabedoria, não é um conhecimento da natureza, mas uma capacidade de viva imaginação. Os Profetas não são sábios, mas também não são homens comuns. São homens que têm uma força enorme de tomar a imaginação como realidade, que tem uma grande confiança para agir segundo imagens que recebem.

As Profecias são imagens que na mente do Profeta são tão fortes que o incitam a ter fé a ponto de interpretá-las como palavra revelada por Deus. Percebam que o que Espinosa está dizendo é bastante subversivo: a causa primeira da revelação é a natureza da mente do Profeta. Não é uma distinção externa, cuja regra seria um homem escolhido por Deus, mas simplesmente uma singularidade interna à maneira de funcionar da mente.

A revelação surge da mente do Profeta, não por vontade de Deus. Então, a própria ideia de ‘revelação’ perde o seu valor. Deus não revela propriamente nada, é o Profeta que usa a imaginação para interpretar os sinais que recebe. Assim, podemos dizer que as Escrituras são a narrativa imaginária do encontro de determinados homens com o mundo. Assim como as Profecias são as vivências de homens eminentemente imaginativos no seu encontro com o mundo.

Os Profetas não eram dotados de um pensamento mais perfeito, mas do poder de imaginar com mais vivacidade, e os relatos da Escritura provam-no abundamente”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, II, 1

Como exemplo, Espinosa toma a expressão “de Deus” para mostrar como aquilo que costuma-se entender como atos milagrosos de um Deus soberano são simplesmente maneiras de descrever o extraordinário. Assim, tudo o que ultrapassa a compreensão é “de Deus”. É uma maneira superlativa de dar conta do imensurável. A expressão que liga um fato a Deus é apenas uma hipérbole para dar conta do inconcebível.

Mais uma vez, apenas uma operação imaginativa. Não se conhece a causa do trovão, do temporal, atribui-se a Deus. O mesmo vale então para a voz “de Deus”. É a mente do Profeta extraindo uma imagem viva daquilo que percebe e que o justifica a profetizar, isto é, falar o que acontecerá, como os eventos se sucederão, quais as exigências e etc.

Outro argumento: as Profecias sempre necessitam de sinais que as confirmem. Para ser considerada por todo o povo como palavra de Deus, uma predição depende de alguma prova de realidade. Por quê? Porque sem essa prova, a Profecia não passa de um delírio imaginativo. O Profeta não move argumentos racionais, ele não convence senão com outras imagens, como signos de confirmação. Sem eles, suas Profecias não passam de besteiras ilusórias, estórias divertidas.

O entendimento das Profecias como frutos imaginativos nos permite entender o por que das discordâncias entre elas. Os próprios dez mandamentos têm variações na exposição dos diferentes livros do antigo testamento. Muitas histórias mudam completamente entre um livro e outro. Não só na maneira como são contadas, mas nos próprios fatos que são mencionados.

Como podem variar as Profecias? Simples, elas dependem do corpo do Profeta, claro! Se a mente é corpo, as próprias imagens que cada Profeta recebe são apreendidas de maneiras diferentes. Cada um interpreta a experiência dentro de sua singularidade, de acordo com a constituição de seu corpo. Salomão é erudito, Isaías é justo, Moisés é líder; isso graças a um corpo diferente e uma história própria. Não há como as profecias serem as mesmas, ou seja, não há mistério nas divergências proféticas.

Se atentarmos bem, a esse ponto Espinosa implodiu o conhecimento revelado. Ele não passa de viva imaginação, próxima ao delírio, confirmado por signos fortuitos. Sabemos com certeza, portanto, que os Profetas não eram Filósofos. Mas o que eles eram então? Apenas homens delirantes que foram levados a sério? É o caso da maioria dos Profetas que vemos por aí, sim. Mas Espinosa não dirá o mesmo dos Profetas bíblicos, ele dirá que sua superioridade estava em outro ponto que não a sabedoria:

Sob tais considerações, a profecia é inferior ao conhecimento natural, que não tem necessidade de qualquer signo, mas envolve por sua condição, a certeza. Com efeito, essa certeza profética não era certeza matemática, mas somente moral”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, II, 3

Os Profetas são homens de Fé, que agem segundo certezas morais. É por isso que há tantos maus profetas. Moisés já falava (Deuteronômio, 13) dos falsos profetas. Espinosa nunca questiona a boa intenção dos Profetas bíblicos. Ao contrário, ele acredita que eles entraram para a história do povo hebreu por terem sido grandes líderes com senso de bondade e justiça. Sabemos que Espinosa não poderia ter dito o contrário, sua vida estava em risco por muito menos. Mesmo assim, o que de fato interessa, é que Espinosa circunscreve a validade do conhecimento profético. Por mais bem intencionado que seja, ele não garante verdadeiro conhecimento e por isso não deveria ser ovacionado.

Insisto porque acredito ser esse ponto de suma importância; disso, efetivamente, concluirei que a Profecia jamais aumentou a ciência dos Profetas, mas os deixou em suas opiniões preconcebidas, e que, por conseguinte, não estamos obrigados a dar-lhes fé no que se refere a coisas puramente especulativas”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, II, 12

A questão é que os Profetas extrapolam o seu campo de conhecimento quando nos enchem de conselhos e regras universais que nada nos tocam. Espinosa não questiona a força dessas figuras históricas, mas restringe o alcance do seu poder contestando as bases da sua maneira de conhecer. A imaginação nunca fez de ninguém um sábio, ao contrário manteve os homens presos aos seus preconceitos.

O Profeta não é capaz de conhecer Deus pelo entendimento da necessidade. Portanto, a superioridade das Escrituras não está no plano ético nem especulativo, mas no campo moral enquanto história do Estado Hebraico e da Teocracia Mosaica. Assim, o texto bíblico vincula-se não à evidência e razão, mas à imaginação, crença e necessidade de persuasão.

Sabemos como a autoridade profética é tomada de assalto pela Teologia que faz um amplo e impotente uso da imaginação a despeito da razão. A tarefa do Filósofo é restringir o campo de atuação da imaginação, operá-la para fins melhores do que os da Profecia. Assim, o Profeta, mesmo que verdadeiro, não passa de um fanático se comparado com o Sábio.

Tudo o que a malícia humana puder inventar de mau e de absurdo  será permitido sustentar e pôr em prática sob a coberta da Escritura”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, II, 13

Texto da Série:

TeoPolítica

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Daniel Kalebe
Daniel Kalebe
5 anos atrás

“Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo.” – 2 Pedro 1:21

Espinoza falou completamente equivocado sobre um assunto já superado pela própria Escritura.

Celestino Joaquim
Celestino Joaquim
4 anos atrás

Gostei da leitura qie fiz dos textos. Estou mesmo muito grato pelas ideias expostas …

Celestino Joaquim
Celestino Joaquim
4 anos atrás

Gostei das ideias, porém é preciso entender que as Escrituras Sagradas devem ser percebidas a luz da fé.