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A partir do século XVII, parece-me que a palavra ‘polícia’ vai começar a adquirir um significado profundamente diferente. Creio que podemos resumi-lo, grosso modo, da seguinte maneira. A partir do século XVII, vai-se começar a chamar de ‘polícia’ o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado”

– Foucault, Segurança Território População, p. 421

Sonho liberal: crescimento econômico e progresso ilimitado, mas sem desordem, claro. Ou seja, o imperativo de crescimento infinito oscila entre as incitações econômicas ao gozo, mas com as medidas necessárias para evitar a explosão da desmedida. E assim, nasce o Estado de Polícia. 

A polícia não pode ser dissociada de uma política que é uma política de concorrência comercial no interior da Europa”

– Foucault, Segurança Território População, p. 455

O Estado de polícia faz parte da Governamentalidade, que é uma nova arte de governar que nasce com a Biopolítica. Qual o objetivo? Fazer um bom uso das forças, da maneira não disruptiva. Como fazer as forças crescerem ao máximo sem gerar a desordem? O Estado de Polícia é um complexo estratégico que aparece para garantir a lei e a ordem. Para manter a ordem externa, o exército e os diplomatas. Já para manter a ordem e a produção internas, nasce toda uma aparelhagem de vigilância. 

A questão da biopolítica, se não é mais a intervenção no mercado livre, será a criação das condições para que os sujeitos livres, egoístas e interessados, sejam capazes de circular, comprar e vender:

  • Questões demográficas: proporção de nascimentos e óbitos, reprodução e fecundidade, velhice, morte;
  • Questão de Saúde Pública: Enfermidade endêmicas, sua duração, intensidade, extensão, quais enfermidades retiram o indivíduo do mercado de trabalho;
  • Relações climáticas: como a cidade é urbanizada, quais as relações com o sanitarismo a disposição das áreas de trabalho, descanso, lazer;
  • Relações entre os indivíduos e o poder: qual o acesso dos indivíduos ao poder, suas condições de intervenção;
  • As relações dos indivíduos com o conhecimento: quais as ideias que circulam, a opinião pública, as ideologias, o senso comum;.
  • Relações entre os indivíduos entre eles mesmos: relações de cooperação, concorrência, animosidades, intolerâncias;
  • Relações dos indivíduos consigo mesmos: como se sentem, o que pensam de si, quais seus objetivos e interesses.

O Estado de Polícia é a tentativa de unir duas coisas: Um Estado submetido à economia e uma População composta de indivíduos supostamente livres. Isso acontece através de técnicas e procedimentos destinados a conduzir a conduta dos homens. O indivíduo é cooptado pelo Estado, através da polícia, para fortalecê-lo.

A polícia é o contraponto de um personagem que veremos mais para frente, a população. Ela tem, como principal ocupação a organização, garantindo a continuidade da política da competição e da concorrência. Ou seja, cabe a ela zelar cuidadosamente da Religião, dos Costumes, da Saúde, dos meios de subsistência, da tranquilidade pública, do cuidado com os edifícios, praças e os caminhos, ciências e artes, comércio, operários.

A polícia é uma instituição do bem público, da moralidade, dos bons costumes, e, dito de maneira mais direta possível, garantidora da boa circulação do mercado. Ela educa, reeduca, corrige, assiste socialmente, dá condições de saúde, oferece oportunidades de reinserção, oferece proteção e garantias sociais, atividades culturais. 

A polícia é o conjunto das intervenções e dos meios que garantem que viver, melhor que viver, coexistir, será efetivamente útil à constituição, ao aumento das forças do Estado. Temos portanto com a polícia um círculo que, partindo do Estado como poder de intervenção racional e calculado sobre os indivíduos, vai retornar ao Estado como conjunto de forças crescentes ou a se fazer crescer – mas que vai passar pelo quê? Ora, pela vida dos indivíduos, que vai agora, como simples vida, ser preciosa para o Estado” – Foucault, Segurança Território População, p.438

Foucault mostrará ao longo de sua obra que a Governamentalidade fazem a Pastoral Cristã e Estado de Polícia buscarem a mesma coisa: manutenção do status quo. A primeira está do lado da condução das almas e da mentalidade dos indivíduos, o outro está na estrutura de condução e organização do movimento das populações. Por isso, veremos como a ideia de Polícia está integralmente relacionada com a ideia de salvação, Obediência e Verdade.

Salvação do Estado

A salvação será, claro, a do próprio Estado, dos poderes constituídos. Pode parecer estranho (hoje não tanto), mas em nome da “Ordem e do Progresso”, tudo é válido, inclusive um Golpe de Estado. Este é o momento em que, paradoxalmente, para salvar-se o Estado de Direito é preciso abolir o Estado de Direito. O Estado busca a sua própria salvação e a faz confundir-se com a salvação da população. 

Obediência às Leis

À polícia, ao poder, cabe fazer cumprir a lei e prevenir-se das rebeliões. A obediência garante a condução e portanto a salvação. A população deve aceitar as condições nas quais está inserida, acatar. A lei existe para levá-las para um lugar melhor. 

Mas a obediência pode ser quebrada por revoltas e insatisfações. O que fazer? Ora, para a Biopolítica é mais importante prevenir do que remediar. É simples: quais os principais fatores de revolta? A fome (barriga) e a cabeça (certos pensamentos). 

Ou seja, é imprescindível que a indigência e a pobreza sejam ao menos suportáveis. Em segundo lugar, o descontentamento, uma opinião desfavorável do soberano. Se as rebeliões têm causa, também têm remédios. O pão e circo fazem bem estas funções. Com a barriga cheia e a cabeça distraída por outros pensamentos, pode-se aceitar praticamente qualquer coisa. 

Produção de Verdade

O governo produz a sua própria verdade, sua própria narrativa. Ele a fabrica e veicula das mais diversas maneiras. O objetivo é ao mesmo tempo conhecer os elementos necessários para a manutenção do Estado e desenvolver as verdades necessárias para que esta força não seja ameaçada pelos outros. A verdade passa a ser a imposição de uma opinião, uma única, a sua.

O Estado não pode ser dissociado do conjunto de práticas que fizeram efetivamente que ele se tornasse uma maneira da governar, uma maneira de agir, uma maneira também de se relacionar com o governo”

– Foucault, Segurança Território População, p. 369

A nova arte de governar consiste em manipular, distribuir e estabelecer espaços de competição e concorrência. Mas o espaço de concorrência, liberdade liberal, deve ser preenchido por individualidades que estejam dispostas a fazer parte deste tipo de liberdade. Por isso Estado de Policial e Pastoral se articulam intimamente na Governamentalidade. Trata-se tanto de uma incitação à competição, ao lucro, ao crescimento econômico e ao mesmo tempo uma regulação para impedir a desordem e a desobediência.

Texto da Série:

Biopolítica

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Alguém
Alguém
4 anos atrás

Ótima reflexão. Foucault permanece atual como sempre. Tenho feitos reflexões das politicas atuais e as teias de conexões que vão se construindo e se revelando aos novos olhos!

Ricardo
Ricardo
4 anos atrás

Sensacional

LUCIANO
LUCIANO
3 anos atrás

obrigado, Rafael, pelo texto