O homem moderno foi batizado pelos iluministas como ser de direitos universais, mas também deveres absolutos. A razão soberana como modo moral e político de conduzir a nova sociedade surgia como a grande promessa de libertação do homem enquanto ideia a se realizar na história. Como poderíamos imaginar o longo terror que tal ímpeto iria causar no século XX?
À religião do homem, já formulada pelos doutores alemães, ainda faltavam apóstolos e mártires.”
Camus, O Homem Revoltado, O Terror Individual
Seja na Alemanha desmoralizada, seja na Rússia niilista, fato é que após o século das luzes seguiram-se tempos de assustadora escuridão. Os novos valores passaram a justificar cada vez mais velhos abusos. Mais do que nunca as ideias soltaram-se da terra, abandonaram os corpos, tornaram-se universais e acabaram legitimando qualquer ação, incluindo as sanguinárias. Desta maneira, a revolta perdeu-se em um tipo terrorista de revolução, uma busca pela realização da totalidade na história.
Unidade e Totalidade
É preciso matar toda liberdade para conquistar o Império, e o Império um dia será a liberdade. O caminho da unidade passa então pela totalidade”
Camus, O Homem Revoltado, Totalidade e Julgamento
Sabemos que toda revolta reivindica alguma unidade. Em seu movimento aparentemente negativo, de recusa, o revoltado afirma um limite, traça uma fronteira para instituir uma relação mais justa com o mundo. Essa unidade desejada pelo revoltado a despeito da situação do mundo é semelhante à nostalgia a que o absurdo nos constrangia. Não há como saber o que há para além do abismo entre nossa razão e o mundo e, no entanto, continuamos imaginando mesmo assim. Não há como saber se alcançaremos o objetivo de nossa revolta, continuamos revoltados mesmo assim.
Não há problema na unidade, contanto que ela seja singular. A consciência da revolta enquanto experiência individual é o que garante que ela não se torne total. É possível que, em seu caminho, o revoltado encontre outros como ele, reclamando uma unidade similar, criando coletivos, lutando em nome de valores comuns. A beleza da revolta está justamente em transformar o sofrimento individual em luta conjunta. Porém, ao perder de vista a originária singularidade de sua vontade de unidade, o revoltado pode facilmente se transformar em mártir, disposto a matar e morrer em nome de sua causa.
Quando a revolta é curvada à história, sua consciência é afrouxada. Ela perde o campo subjetivo, esquece da multiplicidade de perspectivas e valores que, inclusive, é a condição de possibilidade da revolta. O desejo de unidade alça voo e se torna desejo de totalidade, planando sobre a cabeça de todos, julgando qualquer um a despeito de suas diferenças. Quando isso acontece, o uso da vida como objeto descartável torna-se possível. A perda da noção de singularidade e multiplicidade resulta na percepção de uma vida como bem quantitativo, contábil, útil. Está posta à mesa para que os ditadores se sentem.
Aspirando ao universal, [a inteligência contemporânea] acumula as mutilações do homem. A totalidade não é a unidade. […] A reivindicação da Cidade Universal não se mantém nessa revolução senão rejeitando dois terços do mundo e o prodigioso legado dos séculos, negando, em favor da história, a natureza e a beleza, suprimindo no homem sua força de paixão, de dúvida, de felicidade, de invenção singular, numa palavra, sua grandeza.”
Camus, O Homem Revoltado, Totalidade e Julgamento
A universalidade só pode ser realizada à base de uma prática de terror, pois para se realizar precisa suprimir tudo o que não se ajusta. O mais frequente meio para uniformizar o mundo é o militarismo. A marcha fúnebre dos exércitos é o preço da realização do absoluto.
O que é Terrorismo?
Uma subjetividade interminável imposta aos outros como objetividade: é a definição filosófica do terror”
Camus, O Homem Revoltado, Totalidade e Julgamento
Em verdade, é muito simples. Trata-se, numa alusão a Nietzsche, da prática de imposição de fatos onde não existem senão interpretações. A revolta metafísica matou Deus, mas a história reviveu sua maneira de valorar, criando outra vez um tribunal em face do qual todos somos culpados. “Em nome da inocência geral, voltamos à culpabilidade de todos”.
Em um mundo pleno de sentidos possíveis, o terrorismo é muito mais frequente do que imaginamos, pois está em qualquer lugar onde se imponha um único modo de pensar ou uma única maneira de viver. Quando se deposita em uma ideia todo o peso do mundo o resultado é desastroso. As mais variadas formas de violência escalam rapidamente, pois estão isentas de justificar-se, ou melhor, estão justificadas de antemão.
Em seu tempo, Camus escolhe dois exemplos polêmicos de terror para analisar: o nazismo e o stalinismo. Opostos da perspectiva da revolta, principalmente no que concerne a suas intenções, mas unidos no resultado: o terror de Estado. A esquerda francesa não perdoou Camus por tratar em mesma chave os dois regimes e pensar que ambos tinham como base uma lógica totalitária.
Ao denunciar os campos de concentração soviéticos com o mesmo ímpeto com o qual denunciara os nazistas, Camus foi considerado um traidor. No entanto, vemos o real partido ao qual Camus se inscreve aparecer cada vez mais em seus escritos. Enquanto o terror for o meio para alcançar o êxito da revolução, o filósofo se colocará do outro lado. Onde houver o lado da morte, justificada por uma ideia qualquer, imposta a todos, Camus tomará o partido da vida.
Terrorismo Irracional
O fascismo é, na verdade, o desprezo”
Camus, O Homem Revoltado, Terror Irracional
O terrorismo em sua forma irracional, que podemos chamar simplesmente de fascismo, é o exemplo mais extremo de revolta que deu errado. O caráter irracional se dá quando a totalidade se desliga da forma à qual estava vinculada anteriormente, a do ser humano. Não é uma luta universal, é justamente o contrário, é a busca supremacista de uma casta ou raça. Paradoxalmente, o nazismo busca realizar uma totalidade que não pertence a todos.
Que racionalidade existe em afirmar a superioridade da raça? Qual a coerência da ideia de nação? Não há sustentação, é apenas um delírio paranoico-fascista, nos termos de Deleuze e Guattari. A máquina revolucionária se torna máquina suicidária. Não há custo alto demais para um supremacista, infligir a morte torna-se tarefa banal e cotidiana, como uma faxina que se faz na própria casa.
Em tais extremos, a revolta simplesmente deixa de existir, pois, para Camus, não há legitimidade na revolta se em sua origem não houver a sensibilidade com a morte. Revoltar-se é insuflar a vida de mais possibilidades, é o absoluto contrário de qualquer espécie de terrorismo levado às últimas consequências. Luta-se, é verdade, mas pela vida e não em nome da morte.
Para Camus, o nazi-fascismo é fruto da afirmação absoluta. Afirmar qualquer meio para atingir um objetivo é o jeito mais rápido de se tornar um terrorista irracional. Ele nos mostra como isso foi colhido de forma maliciosa na obra de Nietzsche e usado como munição ideológica durante alguns dos anos mais sombrios da humanidade. O sim de Nietzsche é pela vida, e a afirmação da vida não justifica a morte. Este sim jamais justificaria o assassinato, a guerra ou as câmaras de gás.
Sem dúvida, conhecem-se filosofias que foram traduzidas, e traídas, no decurso da história. Mas, até Nietzsche e o nacional socialismo, não havia exemplo de que todo um pensamento, iluminado pela nobreza e pelo sofrimento de uma alma excepcional, tivesse sido ilustrado aos olhos do mundo por um desfile de mentiras e pelo terrível amontoado de cadáveres dos campos de concentração”
Camus, O Homem Revoltado, A Afirmação Absoluta
O nazismo é o maior exemplo de terrorismo irracional, pois é uma força cega, poder em estado bruto, dirigido a qualquer facção minimamente diversa, identificada como o “inimigo”. Uma conduta sem limites onde o assassino nem se sente mais culpado, pois cria a culpabilidade na vítima. Ao final, Hitler perdendo a guerra, aceita morrer pois julga que o povo alemão, se não é capaz de vencer, não deve viver. Quem busca a totalidade acaba julgando inclusive os seus eleitos.
Terrorismo Racional
Aqui a questão é muito mais delicada. Hegel descreveu racionalmente o movimento dialético da história em direção ao absoluto. Mas é Marx quem toma o bastão e propõe essa teoria – com diferenças consideráveis, é verdade – na prática social. O marxismo permanece hegeliano na maneira pela qual entende o movimento da história, isto é, por mais materialista que seja, continua sendo dialética.
Qual é o problema? Mais uma vez o da totalidade, a ideia que há um todo a se realizar. O fim da história não é um valor, é um dogma, um princípio arbitrário que acaba justificando o terrorismo. Qualquer ação pode ser justificada pelo porvir, pelo futuro melhor que o movimento dialético-histórico nos promete. A ação presente perde o peso, ela não precisa responder por si, pois sua legitimidade vem do futuro.
Se a única esperança do niilismo reside no fato de que milhões de escravos possam um dia constituir uma humanidade emancipada para sempre, a história não passa de um sonho desesperado. […] A verdadeira paixão do século XX é a servidão”
Camus, O Homem Revoltado, Totalidade e Julgamento
Mesmo criticando, Camus nos lembra que a grandeza do marxismo é sua base ética. A vontade de uma sociedade justa está no coração da revolta. Nesse sentido, não há como o comparar com o terrorismo irracional. Entretanto, o que Camus não suporta é o que chama de “messianismo utópico contestável”. A profecia revolucionária, por mais que parta de uma análise econômica brilhante, não deixa de ser profética.
A profecia marxista reside na afirmação de que não haverá mais classes após a revolução. Baseado no entendimento dialético do antagonismo entre capital e luta de classes, ele pode afirmar “a destruição da burguesia e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”. Em face desse futuro garantido, o que é o sofrimento, o assassinato, o terrorismo? Na perspectiva da profecia nada importa.
Marx, tal como dissemos de Nietzsche, jamais poderia ter imaginado determinados usos de sua filosofia, mas, independente disso, eles ocorreram mesmo assim, e em partes graças a ela. Para Camus, os abusos cometidos pelos sovietes na metade do século XX caracterizam esse tipo racional de terror, na medida em que, embasados em uma racionalidade total, permitiam-se esmagar qualquer opositor, qualquer pensamento diferente. O autoritarismo tomou as rédeas da revolução. A contradição é que todo revolucionário é um revoltado, mas é também um policial que se volta contra a revolta.
Um único líder, um único povo significa um único senhor e milhões de escravos. Os intermediários políticos que, em todas as sociedades são salvaguardas da liberdade desaparecem, dando lugar a um Jeová de botas, que reina sobre multidões silenciosas ou, o que dá no mesmo, limitadas a gritar palavras de ordem”
Camus, O Homem Revoltado, O Terrorismo de Estado