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Costuma-se dizer que Hume é o primeiro grande filósofo ateu, mas isso não é muito preciso. Não há em sua obra um posicionamento claro, o que encontramos é uma postura crítica em relação à religião, tanto a institucionalizada quanto a religião natural dos círculos intelectuais da época. É possível que ele fosse ateu, mas tomando como base a sua filosofia, é mais provável que ele suspendesse o juízo sobre a questão, visto que ela excede largamente os limites daquilo que podemos conhecer.

Há uma anedota curiosa da época em que Hume esteve em Paris como embaixador entre os philosophes enciclopedistas e iluministas. Na casa do materialista Barão de D’Holbach, Hume diz nunca ter conhecido um ateu, ao que D’Holbach responde que ali naquela mesa ele estava entre quinze ateus e três indecisos. Conhecendo Hume, diríamos que é mais fácil imaginá-lo entre os céticos, indecisos por excelência, do que entre os ateus.

A questão é que os ortodoxos de seu tempo não estavam muito preocupados em diferenciar um ateu e um cético. O rótulo de ateu, no entanto, funcionava muito bem para difundir uma má imagem de alguém. Já não levava mais à fogueira, mas atrapalhava bastante a vida social e profissional, como foi o seu caso. Mas essa acusação surge por algum motivo, provavelmente aparece como reação a algum incômodo que o filósofo gerou. 

O que fez Hume para ser considerado ateu? Basicamente, uma refutação bem estruturada das formas argumentativas mais comuns para provar a existência divina! Na filosofia do século XVIII, podemos destacar três argumentos clássicos para provar a existência de Deus: os argumentos ontológico, cosmológico e teleológico. Hume desmonta os dois primeiros já no Tratado da Natureza Humana e o último no seu último livro Diálogos sobre a Religião Natural.


Argumento Ontológico (ou da Perfeição)

Aparece na filosofia de Anselmo, mas é também famoso no pensamento de ninguém mais ninguém menos que Descartes. É um argumento a priori, isto é, independente da experiência, que diz o seguinte: se Deus é perfeito e é a maior coisa que a mente humana pode conceber, então ele deve existir. A mente humana consegue conceber clara e distintamente a perfeição por meio de uma infinidade de graus, portanto um Deus perfeitíssimo não é só possível como necessariamente existente.

Hume, fortemente apoiado no método empírico, mostra que sem a experiência qualquer ideia concernente a fatos é possível, o que não significa que haja fundamento para sustentá-la. Só a experiência limita as nossas suposições e, quando não há experiência possível, a imaginação pode forjar todo tipo de hipóteses, das mais plausíveis às mais absurdas. Nesse caso, o questionamento humeano consistiria simplesmente em buscar na experiência um correlato para a ideia de “perfeição”. Não encontrando, ele sugere que essa ideia seja descartada do campo do conhecimento.

Argumento Cosmológico (ou da Causa Primeira)

Essa argumentação já estava na filosofia de Aristóteles, mas reaparece com força a partir de Aquino. É um argumento a priori apoiado numa experiência vaga de existência e diz o seguinte: já que há um universo em vez de nenhum, é preciso que ele tenha sido causado por algo ou alguém além dele mesmo. Assim, um Deus onipotente surge como causa primeira de toda a existência. Só ele poderia criar tudo ex nihilo, isto é, a partir do nada.

Sabemos que o tema mais famoso da filosofia de Hume é o problema da causalidade: ele basicamente demole a sustentação racional para o raciocínio causal. Hume mostra que não conseguimos deduzir sequer causas e efeitos próximos, o que dizer então da causa que tem como efeito a criação do universo? Se a razão não é capaz de demonstrar relações de causa e efeito entre objetos cotidianos, não pode se permitir falar sobre causas primeiras.

Argumento Teleológico (ou do Desígnio)

Pensamento que leva de Platão a Averróis e continua um dos argumentos mais usados até hoje no pensamento criacionista e do design inteligente. É um argumento a posteriori, apoiado na experiência, que diz: visto que há um ajuste perceptível entre os seres e a natureza, deduz-se que há criação e criador. A natureza é um grande relógio complexo onde tudo é ajustado e Deus é o seu relojoeiro: há olhos para ver e coisas para serem vistas, pulmões para respirar e uma atmosfera composta de uma mistura de gases respiráveis, e por aí vai. 

Contra essa ideia de desígnio, de que Deus fez um universo perfeito para o homem, Hume invoca o princípio da parcimônia, que é base para o pensamento científico. Esse princípio, conhecido também como o da simplicidade ou navalha de Ockham, diz simplesmente que um efeito não pode ter como explicação uma causa mais complexa do que ele. A ciência moderna não se sustenta sem a ideia de que uma causa simples dá conta de explicar uma multiplicidade de efeitos, pois se para cada efeito propusermos um novo desígnio do criador como causa estaremos na verdade apenas disfarçando a ignorância em nome de Deus.

Hume nunca se preocupou em provar que Deus não existe, mas dedicou-se intensamente a mostrar que os argumentos que tentavam dar razão à sua existência não eram consistentes – foi isso que enfureceu os ortodoxos. O filósofo nunca cansou de se defender das injúrias de ateísmo, mas a censura visava qualquer forma de oposição frontal à teologia e a identificava prontamente como ateia. 

Mais preciso do que dizer que Hume foi o primeiro ateu da filosofia, é dizer que ele foi um dos primeiros filósofos a combater de forma organizada os argumentos propostos pelos teólogos. Ele fez isso dentro dos limites da época, sem precisar dizer de suas crenças, tomando cuidado para não despertar a ira dos leitores, usando todo tipo de recursos literários para fazer o livre pensamento avançar a despeito da dificuldade. Se Hume não pretendia negar Deus, fato é que ao menos a religião natural, proposta pelos intelectuais, sofreu um golpe de misericórdia com a sua filosofia.

Texto da Série:

Três Acusações

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Jayro Schmidt
Jayro Schmidt
2 anos atrás

Caro Rafael Lauro: agradeço o envio de tão oportuna página sobre Hume, um tema que não pesa mais – aliás tema sempre pesado não fosse a leveza dos pensadores na elucidação, o que é oportuno nestes dias tão pesados, nos quais a gravidade acaba de vez com a falácia que há um ser superior capaz de reger o bem ou o mal. Como se não soubéssemos dançar à beira do abismo!

MARCO ANTONIO
MARCO ANTONIO
2 anos atrás

Excelentes textos. Levei pra sala de aula. Valeu.

Rickson
Rickson
2 anos atrás

Excelente texto

Flaviana Maia
Flaviana Maia
1 ano atrás

Que texto inteligente e agradável, grata caro autor!