É lugar-comum na história da filosofia classificar Hume como empirista, colocando-o prontamente ao lado de Locke e Berkeley. Isso não está completamente errado, mas ao fazer isso de forma irrefletida perdemos não apenas as diferenças entre eles – que são bem grandes, diga-se de passagem – mas também a direção principal da filosofia de Hume, que é o ceticismo. Além disso, a melhor maneira de entender o que o filósofo chama de ciência é entendendo a relação entre ceticismo, empirismo e naturalismo em sua filosofia.
O problema fica claro quando tentamos entender a seguinte contradição: como podemos dizer de um filósofo cético que ele é empirista, se por empirismo chamarmos a certeza que advém do observável? Em outras palavras, podemos dizer que o ceticismo enquanto dúvida em relação à toda certeza entra em contradição com aquela certeza proposta pelo empirismo na experiência. De fato, é uma contradição insolúvel, a menos que compreendamos melhor o que é empirismo para Hume.
A ciência da natureza humana proposta por Hume não é exatamente empírica. Hume é enquadrado dentro do empirismo, mas sua maior relevância reside na crítica desse empirismo, tanto quanto do racionalismo. Hume desfaz o sonho cartesiano de uma razão autônoma tanto quanto recusa a confiança cega de Francis Bacon na experiência. O que ele conserva do empirismo é o método: recusar a validade de qualquer teoria que não se submeta à prova da experiência.
A questão é que Hume é cético demais para apostar na experiência de forma dogmática, como se ela fosse capaz de dar todas as respostas. Assim, para ele não há empirismo como sistema definitivo, o que é definitivo em sua filosofia é apenas a investigação. A máxima cética (geralmente referida por zetesis) que recomenda permanecer sempre em investigação quando se busca a verdade é levada muito a sério por Hume. Não há critério último que nos garanta a verdade sobre nada.
Muitos filósofos criticaram em Hume o fato de seu empirismo chegar em aporias que apelavam para soluções que não eram empíricas. O que esses críticos não perceberam é que a filosofia de Hume não é exatamente empírica, pois apoia-se em uma noção determinada de natureza para propor seus conceitos. O empirismo é apenas uma face metódica do ceticismo que se completa apenas com uma noção positiva e determinada de natureza, levando-nos justamente ao campo das ciências naturais.
Uma pergunta pode nos ajudar a entender a posição de Hume em relação ao conhecimento: o que é uma teoria científica? É simplesmente a proposição de princípios gerais que dão conta de explicar um grande número de efeitos verificados na experiência. Mas atenção, entre princípios e efeitos há uma distinção importante a se fazer: o que é efetivamente observável? Reformulando a pergunta, aquilo que propomos como explicação é tão visível quanto os efeitos que buscamos explicar?
Vamos pensar sobre a teoria da gravitação universal proposta por um dos filósofos favoritos de Hume, Isaac Newton. O cientista faz seus experimentos e propõe uma teoria para explicar essa diversidade de efeitos que vai da queda de uma maçã à órbita da Terra em torno do Sol: a gravitação é a força de atração que existe entre todas as partículas com massa no universo.
É claro, vamos à experiência e percebemos que a teoria faz sentido, mas a gravitação, essa “força” em si mesma, à parte de seus efeitos, é observável? E a resposta só pode ser não! Sequer faria sentido falar em “forças” gravitacionais se fôssemos capazes de observar a gravidade atuando à parte de seus efeitos.
Outro exemplo, a teoria atômica: toda matéria é feita de um conjunto de pequenas partes. Isso dá conta de explicar inúmeros fenômenos visíveis, mas os átomos, eles mesmos, não são observáveis. Nem adianta fabricar um microscópio melhor, pois o que torna um objeto visível é a maneira como ele reflete ondas de luz e os átomos são menores do que o comprimento das ondas de luz visíveis.
Temos que lidar com o fato de que os átomos são invisíveis. Então, porque podemos atribuir um grau de certeza maior aos átomos do que aos duendes? Ora, pelo simples fato de que sua teoria permite explicar com precisão uma diversidade enorme de efeitos observáveis. Acaso alguém presenciou o Big Bang? É claro que não, mas a teoria permanece válida porque dá conta de compreender muito do que vemos no universo.
Nestes dois exemplos, temos um conjunto de efeitos que são explicados por princípios propostos, mas nós não somos capazes de observar esses princípios exercendo-se em ato. Ou seja, a ciência retira evidências da experiência, mas uma teoria científica não se reduz à observação e, portanto, a concepção de teoria científica de Newton, Hume e de toda a ciência moderna se resume na seguinte ideia: uma teoria é a explicação causal por termos teóricos propostos como princípios gerais capazes de dar conta de fenômenos observáveis.
A este ponto concluímos algo muito importante: a ciência precisa extrapolar o campo do observável quando propõe teorias. Não há porque desqualificar um pensamento por ser inobservável; isso não é o suficiente e por isso o empirismo não pode ser o único critério para o conhecimento. Não podemos reduzir a ciência natural nem a ciência da natureza humana a um “observacionalismo”. Dito em outras palavras, se colocamos o observável como único critério de certeza, perdemos a maior parte das teorias científicas modernas.
Ao contrário daquilo que esperamos de um empirista, Hume chega a falar em salvar a boa metafísica do jargão misturado à superstição popular com ares de sabedoria. O preconceito com a metafísica é justificado pelos abusos feitos nesse campo, mas injusto, dado que nós sabemos de fato muito pouco e precisamos ultrapassar o visível para conhecer melhor. Quando falamos em hipóteses não é justamente no sentido de proposições especulativas? Conjecturas que partem da pura imaginação e então são submetidas à verificação experimental?
Para Hume, o problema da ciência é o problema do conhecimento humano em um mundo onde nem todos os mecanismos são observáveis. Ele nos alerta para o fato de que as ciências também têm de se elevar acima daquele nível elementar em que nos limitamos a atribuir como causa de um fenômeno outro fenômeno observável. Digamos que a própria ciência aprendeu isso com a filosofia muito antes de reivindicar para si um campo distinto desta.
As hipóteses de Hume acerca da alma humana são tão metafísicas quanto aquelas de Descartes, a diferença está muito menos nas hipóteses do que no método que eles usam para validá-las, ou seja, é aqui que o empirismo aparece, sempre depois, como base de verificação dessas hipóteses. Precisamos ter isso em mente quando vemos Hume apresentar o hábito como teoria satisfatória para o problema da causalidade. O ceticismo não jaz no caminho, pois com o conceito de hábito não temos nada mais do que um conjunto de ideias que resistem ao exame crítico e podem ser satisfatórias. Agora, dizer que são verdadeiras já seria um exagero…
Maravilhoso, obrigado por me apresentar mais um filósofo.
Compreendo o texto, as premissas são boas. Mas foi imprudente considerar a visão de Hume sobre a alma humana, a substância e o Eu como pares às de Descartes, não ? Fazendo isso estamos a invalidar sua investigação mesmo se consideramos o método empirista, pois são como que conclusões a que Hume chega. Por exemplo, quando ele diz que a alma é apenas um efeito do vício observacional está usando o próprio empirismo para afirmá-lo. Estou dizendo que essas hipóteses são consequências do método empirista, e o supõe como condição, logo não faz sentido o empirismo ser tomado como validação
Luiz, obrigado pelo comentário, Eu sustentei ao longo do texto que as hipóteses não são consequência do empirismo, porque a experiência vem sempre depois. O Hábito, por exemplo, é um conceito que vem de uma “natureza” que surge intuitivamente para responder o problema da causalidade. Qualquer sustento dessa hipótese só aparece depois, indutivamente. Desse ponto vista, podemos aproximar Hume e Descartes, mas eu pontuei também o quanto ele desfaz o sonho da razão de Descartes. Basicamente, o que me interessa nessa discussão é sustentar que a rixa racionalismo x empirismo não dá posiciona bem as questões, é um problema que… Ler mais >