Em 1656, Luis XIV inaugura o Hospital Geral em Paris. E por toda a Europa começa a ocorrer o que Foucault chamou de A Grande Internação: uma enorme massa de indivíduos das mais diferentes categorias passa a ser considerada um inconveniente para a cidade e é jogada em grandes depósitos de pessoas.
Neste processo, vemos o louco sumir da paisagem, ele também é internado, junto com uma massa homogênea anônima. Mas na verdade, a internação é um gesto heterogêneo e complexo. Junto com o louco estão profanadores, libertinos, devassos, prostitutas, mendigos, desempregados.
É todo um conjunto de pessoas que é considerada “desajustada”. Mas desde já é possível notar uma coisa importante: não há médicos no corpo de funcionários, o hospital geral é um lugar muito mais jurídico do que médico. Ele é uma linha que divide o normal e o anormal, o “certo” e o “errado”. Em suma, a internação é política, econômica, moral, social, religiosa; tudo, menos médica.
Isso quer dizer que o critério que dá coerência às internações é o negativo. É internado todo aquele que não é normal, que apresenta algum desequilíbrio, alguma diferença que o impede de se encaixar em um modelo.
Qual seria o a priori da história para tal acontecimento? Foucault encontra tanto um gesto político, quanto um gesto teórico.
Na primeira metade do século XVII, Descartes funda o racionalismo, aproximando a loucura do sonho e do erro. Ele se pergunta: “Como podemos ter certeza das coisas?” (inaugurando a dúvida metódica que o levaria a dizer: penso logo existo”). Afinal, podemos estar sendo enganados por um gênio maligno, estarmos sonhando, podemos ser loucos e não sabermos. Mas Descartes responde: “Mas eu sei que estou pensando, eu sei que duvido, eu sei que através do meu pensamento racional eu não sou louco”.
Descartes bane a loucura com a luz da razão, expulsa o erro com o pensamento racional. Resultado: a loucura perde sua positividade e começa a ser submetida pelo discurso da razão. Se o fundamento da minha existência é o pensar, penso logo existo, então quem se distancia do pensamento racional, de certa maneira, é menos, existe menos. É aqui o ponto em que a razão começa a dominar a loucura.
Político
O segundo acontecimento é o fim dos Leprosários e o abandono das suas estruturas arquitetônicas. A Grande Internação reativa a antiga prática dos leprosários: isolamento. Se na idade média os leprosos precisavam ser excluídos para não contaminarem os sãos, agora o pensamento é exatamente o mesmo, mas com outros tipos de “contaminadores”: pobres, vagabundos, presidiários, cabeças alienadas assumirão o papel abandonado pelo lazarento.
Assim, a partir de 1650 a loucura esteve ligada aos internamentos, este era seu lugar natural. Ela deixa de ser uma ligação com outra coisa, outro pensamento, outro mundo, para fazer de nós algo menor: alienados, desarrazoados, insanos, mentecaptos.
A partir do século XVII, aproximadamente, constitui-se a sociedade industrial e a existência de tais pessoas não foi mais tolerada. Em resposta às exigências da sociedade industrial, criaram-se, quase simultaneamente, na França e na Inglaterra, grandes estabelecimentos para interná-los”
– Foucault, Ditos e Escritos, p. 261
Conclusão: O internamento foi um recurso retirado da soberania (calabouços) e da igreja (leprosários) para isolar as irregularidades encontradas pela sociedade burguesa-industrial em ascensão. A separação é moral e não médica! A loucura é um problema porque ela é improdutiva!
O interessante é notar como Foucault faz este movimento da percepção da loucura ligando-a a todo um contexto intelectual e político. A loucura não é algo separado da realidade, a percepção de sua realidade é diretamente afetada pelo momento histórico no qual ela se encontra. E, infelizmente, naquele momento, ela era vista como um inconveniente que deveria sumir da visão da sociedade.
Me lembrou uma frase que carrego comigo todos os dias: “Se minhas loucuras tivessem explicações não seriam loucuras”. Amo os textos e os podcasts de vocês. É tão bom poder ouvir e ler sobre filosofia de uma forma mais descontraída, porém sem perder o conteúdo. Obrigada!
Muito bom, Rafael!💚