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A obra de Hume é extensa, mas a resposta para a pergunta “o que é filosofia?” talvez esteja nas primeiras linhas que escreveu por volta dos 20 anos de idade: a introdução do Tratado da Natureza Humana. Nessa introdução, encontramos três analogias que resumem bem a filosofia de Hume. 

Logo nas primeiras linhas, Hume diz que nada é mais natural do que começar um livro depreciando os sistemas dos outros filósofos e passando a um elogio ao próprio sistema. Mas, continua ele, somos ignorantes “nas mais importantes questões que podem enfrentar o tribunal da razão humana”. Então, como podemos começar um livro de filosofia senão dando um passo para trás?

Essa primeira analogia do tribunal da razão ficou famosa na filosofia de Kant, mas já estava presente em Francis Bacon, Pierre Bayle e, como vimos, em Hume. Levar a razão ao tribunal significa exigir dela as provas daquilo que pretende afirmar. Sentada no banco do réu, a razão foi  intimada a apresentar evidências de suas elucubrações metafísicas. 

Temos uma primeira definição da filosofia humana como a percepção da fragilidade da razão e a consequente necessidade de encontrar um direito, uma jurisdição própria ao pensamento. Em vez de um auto elogio, a filosofia precisa começar com as perguntas: até onde o pensamento pode ir? Qual é o limite que precisa ser respeitado para que a filosofia seja respeitada? Quando é que o filósofo precisa parar de perguntar?

No tribunal, olhamos para a razão, para a filosofia apoiada nela e o que vemos? Hume diz: uma grande bagunça onde “não há objeto de discussão sobre o qual os estudiosos não manifestem opiniões contrárias”. Entre os filósofos, nada escapa à controvérsia, é sempre possível encontrar uma opinião contrária que se diz detentora da verdade. Nesse momento do texto, surge a segunda analogia:

“Em meio a todo esse alvoroço, não é a razão que conquista os louros, mas a eloquência; e ninguém precisa ter receio de não encontrar seguidores para suas hipóteses, por mais extravagantes que elas sejam, se for hábil o bastante para pintá-las em cores atraentes. A vitória não é alcançada pelos combatentes que manejam o chuço e a espada, mas pelos corneteiros, tamborileiros e demais músicos do exército”

– Hume, Tratado da Natureza Humana, Introdução

A analogia da filosofia como um exército composto de combatentes e corneteiros ilustra um princípio do ceticismo grego chamado diaphonia, algo em constante desacordo entre todos aqueles que pensam, algo que se manifesta como uma espécie de dissonância própria ao discurso, impedindo-o de tornar-se universal, uniforme, progressivo ou coerente.

É bom lembrar que Hume é um filósofo cético e suspeita sempre da capacidade de fundar um conhecimento indubitável acerca de qualquer coisa. Mesmo assim, precisamos saber como discernir os verdadeiros filósofos daqueles que só fazem barulho. Pitágoras com os números, Platão com as ideias, Epicuro com os átomos… afinal, quem tem razão?

É impossível responder a essa pergunta, mas uma coisa é necessária: discernir o que é filosofia do que é simplesmente barulho. A segunda analogia nos leva a uma segunda característica da filosofia para Hume: recuperar o pensamento filosófico do prejuízo causado pelo desacordo. Pensar é difícil, mas há como diferenciar o pensamento bem pensado do seu duplo, baixo, feito sem rigor.

Assim, o ceticismo não leva a um nivelamento por baixo, que considera igualmente corretos ou incorretos todos os pensamentos. É preciso defender a filosofia, as pessoas se afastam dela (especialmente da metafísica) porque além de difícil, ela é sempre questionável. Mas talvez resida aí a sua verdadeira riqueza. Assim, não podemos deixar de lado um pensamento por ser difícil ou pelas tensões que sofre, ao contrário, precisamos exaltar aqueles que conseguem formular conceitos frente a essa dificuldade.

Recuperar a filosofia começa por perceber que todo conhecimento se relaciona com um sujeito que lhe antecede e, por isso mesmo, não pode deixar de ser também o próprio objeto desse conhecimento. Aqui está o resultado do passo para trás que nos referimos anteriormente: antes de mais nada, Hume pretende fazer uma ciência da ciência, uma teoria do conhecimento, uma epistemologia.

É evidente que todas as ciências têm uma relação, maior ou menor, com a natureza humana; e, por mais que alguma dentre elas possa parecer se afastar dessa natureza, a ela sempre retornará por um caminho ou outro. […] Em consequência disso, nós não somos simplesmente os seres que raciocinam, mas também os objetos acerca dos quais raciocinamos”

– Hume, Tratado da Natureza Humana, Introdução

O Tratado da Natureza Humana é o ato inaugural da epistemologia moderna, porque Hume percebe que o conhecimento não se estrutura sobre o nada, ele se constrói sobre uma natureza que o antecede, a natureza humana. A filosofia natural, as ciências matemáticas e a filosofia moral são frutos de uma maneira humana de conhecer. Então, se queremos pensar melhor e viver melhor, precisamos antes de mais nada investigar a natureza humana.

Para Hume, a filosofia começa com a epistemologia, porque antes de conhecer precisa sempre responder aos critérios do que é o próprio conhecimento. Afinal, como poderíamos responder a qualquer pergunta sem antes nos perguntar quais são as respostas que consideramos interessantes, que respondem aos critérios daquilo que chamamos de conhecimento? Aqui surge a terceira analogia:

Eis, pois, o único recurso capaz de conduzir nossas investigações filosóficas ao sucesso: abandonar o método moroso e entediante que seguimos até agora e, ao invés de tomar, vez por outra, um castelo ou aldeia na fronteira, marchar diretamente para a capital ou centro destas ciências, para a própria natureza humana”

– Hume, Tratado da Natureza Humana, Introdução

Estivemos por muito tempo falando do conhecimento sem perguntar sobre aquele que conhece. Estivemos conquistando as fronteiras, chegou a hora de marchar à capital. A filosofia deve começar com o mapeamento daquilo de que a mente dispõe, descobrir quais são os limites do que pode fazer com esse material para só depois avançar em direção à ética, política, religião e etc. 

Fazer filosofia é perguntar o que é conhecer e a resposta a essa pergunta sempre nos levará a uma noção de natureza humana. É por isso que podemos chamar a filosofia de ciência da natureza humana, isto é, um conhecimento sobre a maneira específica como o ser humano pensa. Para isso, não basta simplesmente detectar as fraquezas do entendimento humano, pois funcionando bem ou mal, o fato é que funciona. A questão primordial é saber: como funciona?

Assim, para responder aos critérios de uma filosofia como ciência da natureza humana, o filósofo precisa começar pelas seguintes perguntas: quais são os materiais de que a mente dispõe para pensar? Como ela organiza esses materiais? Quais são as dificuldades que ela enfrenta nesse processo? São essas perguntas que levarão Hume a adotar o empirismo enquanto método capaz de dar respostas satisfatórias. No entanto, a resposta à pergunta sobre a filosofia não pode ser simplesmente empírica, pois ela é mais do que isso, é uma reflexão geral sobre o ato de conhecer. 

Conclusão: na introdução do Tratado da Natureza Humana, por meio de três analogias, Hume assim responde à pergunta “O que é filosofia?”: a razão, levada ao tribunal, precisa confessar o desacordo perpétuo de seus combatentes e aceitar uma reflexão sobre a maneira humana de conhecer como ponto de partida para se tornar boa filosofia.

Texto da Série:

O que é Filosofia?

Texto da Série:

Investigação sobre o Entendimento Humano

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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