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Ao ser internado e adquirir pouco a pouco um olhar singular sobre si, o desatino ressurge carregado de perigos! E quanto mais nos aproximamos, maior o medo. Qual medo? Ser contagiado pelos loucos! As pessoas tinham medo de morar perto dos asilos, temiam que o ar contaminado carregasse a loucura até eles. O que fazer então com estes espaços de internamento?

O desatino está novamente presente, mas agora marcado por um indício imaginário da doença atribuído por seus poderes aterrorizantes”

– Foucault, História da Loucura

O Renascimento e a Era clássica não temiam a loucura! Uma convivia e a outra simplesmente a suprimia em seus calabouços sujos. Conforme vai sendo considerada uma doença, a loucura reaparece como perigo, afinal, se os médicos querem curá-la, então é uma doença, e se é uma doença, então pode nos contaminar.

A loucura é uma força que nos afasta da razão. São as forças que já estão em nós, que nos constituem, forças da natureza animal que nos habitam. E mais: a civilização pode fazê-las eclodir em nós! A loucura pertence à civilização, à história, ao progresso que amplia suas manifestações. São incitações que a sociedade nos faz para ir além de nossa natureza, enfim, ela é a prima feia do progresso.

Reparem como habitam lado a lado: a loucura é o outro lado necessário da sociedade (seu sintoma). Um mal que atrapalha o próprio progresso, uma força que resiste à evolução. A loucura que estava fora (nos barcos ou calabouços) agora está dentro! Podemos sentir o seu ar contaminando nossas casas. A loucura volta a habitar todos nós!

Se a civilização corrompe, apenas a natureza pode curar! É necessário uma reforma para diminuir a “contaminação”. Aqui temos as condições de aparecimento da psiquiatria, ela precisa defender a sociedade de si mesma! A psiquiatria é mero efeito daquilo que aparece agora como o Outro em nós! 

Qual é esta nova divisão? Ora, é dos próprios internados que parte a crítica desta mistura. Não se pede a libertação, apenas um isolamento diferente/separado, uma divisão nova, mais apropriada. A mistura é uma injustiça com os presos. Eles não querem estes loucos com eles, porque eles próprios não se veem assim.

Hospital de apestados – Francisco de Goya

É bom lembrar, o internamento procurava resolver uma questão social-econômica: internava-se em massa os vagabundos, mendigos, prostitutas, etc. Mas os internamentos simplesmente não eram capazes de resolver a crise, e por isso esta solução foi colocada em dúvida. 

Deste modo, uma grande massa de internados é libertada. Surgem então duas figuras e dois caminhos: o pobre mandado para fora do internamento, ele é o improdutivo que deve ser reintroduzido no mercado de trabalho como reserva de mão-de-obra (parte necessária do capitalismo); e o louco que se afunda ainda mais no internamento e lá se constitui como objeto de escrutínio.

Em suma: o destino do louco e o do miserável se separam, é o fim dos internamentos em massa! A homogeneidade se torna heterogênea. Agora cada um tem um destino diferente (ou poderíamos dizer, uma prisão diferente): para o Operário, a oficina; para o Criminoso, a prisão; e para o Louco, o hospício.

Por isso, no decorrer do séc XVIII, muita coisa mudou, foram abertas casas exclusivas para os loucos e as instituições de internação massiva começam a diminuir. Então o louco é mais uma vez deslocado, agora para um espaço próprio, criado especialmente para ele.

A loucura não rompeu o círculo do internamento, mas se desloca e começa a tomar suas distâncias”

– Foucault, História da Loucura

É então que finalmente aparece a figura do psiquiatra! Quem é ele? Philippe Pinel na França e William Tuke na Inglaterra, os realizadores do grande gesto de libertação! Pinel e Tuke se tornam os arquétipos da libertação dos loucos, em torno deles se organiza a ideia de loucura/cura e a função médica é introduzida logo após esta “libertação”.

Algo muito importante está acontecendo: a loucura está se tornando autônoma. Enquanto o desatino cai no indiferenciado, a loucura vai para o centro das atenções, ganha os holofotes! Deste modo, ela toma seu assento na percepção no fim do séc XVIII.

Mas fez isso, paradoxalmente, afastando-se e isolando-se ainda mais! Ganhando sua “cela especial”. Elas não são necessariamente melhores, mas são exclusivas, “feitas sob medida”. A era da positividade da loucura se dirá a primeira a perceber a inocência da loucura e a crueldade que é jogá-la na prisão. Neste novo lugar, ela receberá um tratamento especial, neste novo lugar, sua verdade pode aparecer nua e crua; e este novo lugar será a sua nova prisão, que ela poderá chamar de lar.

Texto da Série:

Foucault – História da Loucura

Curso Online baseado nesta série

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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