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O primeiro passo da canônica de Epicuro é a afirmação da certeza das sensações, ou seja, elas não nos enganam, mas trazem de modo direto e claro uma mensagem do real. Assim, a teoria do conhecimento epicurista começa com duas afirmações bem simples: as coisas existem e elas nos afetam. As sensações são o produto dessa incidência do mundo sobre nós, cabe apenas prestarmos atenção.

As sensações são o meio pelo qual apreendemos a realidade. Nosso contato direto com o mundo se dá pela via dos sentidos. Para Epicuro, não faz sentido desconfiar das sensações. Em vez de desconfiar dos sentidos como faz Platão, precisamos levar a sério as sensações, pois são elas os indícios do verdadeiro. Se elas são confusas é apenas porque são anteriores à razão.

Assim, podemos dizer que no epicurismo o conhecimento é empírico, isto é, se dá pela experiência. As ideias vêm apenas depois das sensações, que são o material de que dispomos para compreender a natureza. Não há uma ideia precedente à experiência sensível, como gostaria Platão. O que temos à disposição do conhecimento são as sensações: sentir é começar a conhecer.

“Se combates todas as tuas sensações, não terás nada como referência para discernir exatamente aquelas que consideras falsas”

– Epicuro, Máximas Fundamentais

Antes de mais nada, o que possibilita a percepção é o fato de que da superfície dos corpos desprendem-se partículas que carregam semelhanças com aquele corpo. É isso que, muito mais tarde, o maior dos epicuristas romanos, Lucrécio, chamará de simulacros. Dada a semelhança com o corpo original, eles simulam o contato entre os corpos ainda que distantes.

Para Epicuro, todos os sentidos se dão dentro do paradigma do contato. Nós vemos porque partículas de luz tocam nossos olhos. Assim como o odor de uma flor é causado por pequenas partes dela que chegam ao nosso nariz. O som traz a informação de um corpo originário aos nossos ouvidos. A sensação é um contato entre corpos, ou melhor, um movimento atômico resultante de um contato entre corpos.

Em todos os sentidos, a sensação é produzida pela penetração de complexos de átomos que emanam dos corpos. Quando estes simulacros chegam até nós, interagem com nosso corpo, com nossa própria constituição e geram uma sensação. Ou seja, uma sensação é um acontecimento psicológico que depende tanto da constituição física dos corpos exteriores quanto do nosso corpo, de nossa relação com eles e deles conosco e da relação entre a alma e o corpo.

É por meio desta complexa interação entre corpos que Epicuro pode dizer que a sensação é sempre verdadeira, mas que o juízo que fazemos dela pode não ser. Um exemplo, quando ouvimos um som distante, geralmente ele chega distorcido, com eco e outros ruídos. Epicuro mostra que a falsidade não está nessa percepção, mas em julgar que ela se assemelha ao som que é emitido na fonte, pois quando os simulacros atravessam os meios, eles se modificam tanto quanto cada corpo os recebe de forma particular.

Isso não significa que as sensações sejam enganosas, ao contrário, as sensações são sempre verdadeiras, elas são o que são. A possibilidade do erro surge a partir do momento em que começamos a formar juízos sobre aquilo que percebemos. Quando digo que o Sol parece girar em torno da Terra, não estou errado, pois o vejo ir de leste a oeste. No entanto, quando afirmo que o Sol gira em torno da Terra, então erro, pois não tenho uma percepção adequada do que de fato acontece para formular tal juízo.

Percebam a riqueza da teoria do conhecimento epicurista, ela é capaz de separar o que as coisas realmente são da maneira como são percebidas, e isto sem precisar falseá-las! O ganho é evidente: uma psicologia que não desconsidera a maneira como um corpo percebe o seu meio. Em vez de precipitar-se no julgamento de uma sensação, perguntará simplesmente pela validade dela dentro de um determinado pensamento.

Dentro da canônica epicurista não faz sentido dizer das sensações que elas sejam verdadeiras ou falsas, porque são alógos, isto é, anteriores à razão, ao juízo e ao discurso. As sensações são produto de um contato contínuo de um corpo com o meio que o circunda, e dizem respeito apenas a essa relação. Por isso, precisamos considerar que elas são efeitos de uma passividade, de uma receptividade de um corpo em relação a outro.

A sensação é a grande mensageira do real, nos vinculando àquilo que existe e nos guiando entre o que nos agrada e o que nos desagrada. Por isso, não estamos considerando apenas o conhecimento, mas a possibilidade mesma da ética, porque é apenas pela apreensão das sensações que somos capazes guiar nossas práticas em direção aos prazeres.

Texto da Série

Epicuro – Cânonica

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Milton Jose de Faria ( Milton Faria )
Milton Jose de Faria ( Milton Faria )
2 anos atrás

É uma maneira de ter que lembrar nas separações da coisas. Somos obrigados a admitir das possibilidades de como devemos pensar na reflexão.