É louvável e revolucionária a pergunta de Deleuze sobre a filosofia de Espinosa: “O que pode o corpo?”. Sim, Deleuze e suas magníficas interpretações! Mas há um outro caminho, mais fiel à letra do pensador holandês, e igualmente radical: “O que pode a mente para moderar e refrear os afetos?” ou, de maneira mais sintética, simplesmente: “O que pode a mente?”. Ora, a resposta inicial é absurdamente simples:
O homem pensa” – Espinosa, Ética II, ax. 2
Simples de dizer não significa simples de compreender, pois automaticamente precisamos perguntar “o que é pensar?”. Bom, pensar é, antes de mais nada, traçar relações, fazer conexões entre as coisas. Estas conexões podem ser muito qualificadas e explicar muito bem a conexão das coisas entre si e conosco, mas o mais provável é que elas comecem sendo muito pobres e confusas.
De qualquer maneira, a mente formula ideias do seu corpo em relação, e em seguida a mente articula estas ideias entre si. Primeiro pensamos um corpo sentido (a mente é ideia de seu corpo em ato), e em seguida pensamos estes pensamentos (fazemos ideias das ideias).
Mas tudo começa de uma maneira extremamente vaga. Por onde começamos? Pela imaginação!
Quando a mente humana considera os corpos exteriores por meio das ideias das afecções de seu próprio corpo, dizemos que ela imagina” – Espinosa, Ética II, prop 26, dem
Bom, então a primeira resposta para o que pode o pensamento é: imaginar.
Temos ideias das afecções dos corpos exteriores sobre o nosso corpo. Isto forma uma marca, uma impressão, uma imagem. Este é o nosso primeiro material de trabalho: as imagens que nascem a partir dos efeitos no nosso corpo.
Esta é a primeira capacidade humana do pensamento, o primeiro esforço de organização do pensamento. Imaginar é começar a aprender sobre o mundo. Temos que começar por algum lugar e começamos por aqui. É assim que nascem as primeiras relações.
Mas as relações entre as coisas só nascem porque, afinal, não somos uma instantaneidade. Somos marcados pelas coisas que acontecem com a gente.
Quando uma parte fluida do corpo humano é determinada, por um corpo exterior, a se chocar, um grande número de vezes, com uma parte mole, a parte fluida modifica a superfície da parte mole e nela imprime como que traços do corpo exterior que a impele” – Espinosa, Ética II, 5º postulado da Pequena Física
Eis Espinosa explicando como a imaginação nos imprime seus traços! Ele diz, muito simplesmente, que o nosso corpo fica marcados pelos encontros que faz. Espinosa não era um neurólogo em um laboratório, e as descobertas sobre o cérebro só viriam séculos depois. Mas ele acerta em cheio. A memória é como uma tatuagem, é a marca do encontro do nosso corpo com outros corpos. Em outras palavras, algo dos encontros sempre permanece em nós! Somos afetados pelas coisas, e guardamos estas afecções.
Deste modo, o postulado nos permite dizer:
Se o corpo humano foi, uma vez, afetado, simultaneamente, por dois ou mais corpos, sempre que, mais tarde, a mente imaginar um desses corpos, imediatamente se recordará também dos outros” – Espinosa, Ética II, prop. 18
Com a imaginação e a memória, a mente já tem a capacidade de traçar relações! A memória é a marca da concatenação das afecções em nós: “toda vez que eu fui naquele lugar, foi ruim”, “toda vez que eu bebi isso, foi bom”, “todas as vezes que eu vi aquela pessoa, eu me diverti”, “todas as vezes que eu falei daquele assunto, eu me senti desconfortável”.
Ou seja, estamos falando aqui dos efeitos das afecções no corpo-mente. A memória é a guardiã mental dos efeitos no corpo. E a mente começa a associar as coisas pensando em alegrias e tristezas! Simples assim! Deste modo, conhecer um corpo é conhecer que associações ele realizou.
Claro que não é tão simples assim, e a psicanálise sabe bem! Há coisas que não podem ser ditas, há coisas que não sabemos que queremos dizer, há conteúdos latentes que não se tornam manifestos da noite pro dia. Mas a questão aqui é: a mente pensa, ela imagina seu corpo, guarda as afecções pelas quais passou e começa a associar coisas.
Quem se recorda de uma coisa com a qual, uma vez, se deleitou, deseja desfrutá-la sob as mesmas circunstâncias sob as quais, da primeira vez, com ela se deleitou” – Espinosa, Ética III, prop. 36
Freud talvez chamasse isto de processo primário, que produz um “traço mnêmico”, uma via privilegiada de descarga da tensão. Mas Skinner talvez reconhecesse isso como a primeira menção de seu conceito de reforço positivo. De qualquer maneira, o corpo fica marcado por uma coisa com a qual se deleitou, ele concatena o que ele fez, onde fez, o que aconteceu e etc.
Para Espinosa, isto é pensar. É imaginar a partir desta bagagem de imagens que recebemos ao longo da vida, é tomar decisões baseadas no passado. É lembrar para prever o provável como consequência. Aliás, a palavra palpite vem daí: palpitação. O coração dizendo, informando! A mente está mergulhada nos afetos.
Até aí tudo bem, vimos a potência da imaginação. Qual o problema? Apenas um, somos Modos! Ou seja, começamos formando ideias muito confusas, que não correspondem direito à realidade e não informam da melhor maneira o que vai acontecer e como podemos agir.
As coisas nos afetaram, sim, e isso aconteceu necessariamente, óbvio. Mas não é necessariamente que as coisas são assim, o mundo interior pode ser muito confuso e não corresponder exatamente ao mundo exterior. É possível ter várias perspectivas sobre o mundo, e algumas delas são muito limitadas.
Cada um passará de um pensamento a outro, dependendo de como o hábito tiver ordenado, em seu corpo, as imagens das coisas” – Espinosa, Ética II, prop. 18, esc
Um corpo, de sua perspectiva, vê e sente o mundo daquela maneira, não tem como fugir, porque afeta e é afetado de uma maneira particular. Mas será que estamos fadados a esta perspectiva?
Aqui, precisamos quebrar com as marcas e as cicatrizes que carregamos. Não podemos ficar apenas nelas, precisamos ir além. Espinosa nos mostra que o pensamento imaginativo pode ser muito inadequado, mas que se organizado com calma e atenção, ele pode encontrar ideias adequadas sobre nosso corpo e sua relação com o mundo. Isso nos leva para a segunda parte do texto, onde as ideias inadequadas começam a se tornar ideias adequadas.