Não é a dor que me entristece/ É não ter uma saída, nem medida na paixão” – Lenine
O tema das paixões está muito próximo do tema da servidão. A Paixão é uma ação que não é realizada por nós, deste modo, seu efeito é causado principalmente por forças de fora. Sendo assim, a paixão só pode ser o contrário da ação.
Mas o que é uma paixão? A paixão acontece quando somos a causa inadequada de um afeto. É quando uma modificação necessária em nós (pela ordem de causas e efeitos) é causada por algo exterior a nós. Na paixão as modificações acontecem sem a nossa aprovação prévia, elas vêm de fora, muitas vezes sem aviso prévio.
Então a Paixão é uma força de fora que se impõe sobre nós. Mas isso não precisa ser necessariamente ruim, afinal, ela também pode ser boa, é uma questão de sorte, simplesmente não sabemos o que o destino nos reserva. O que é mais importante é que as paixões não estão sob nosso controle, estamos à mercê delas. Por isso a chamamos de Fortuna, Ordem Comum da Natureza.
Há uma proposição na quarta parte da Ética extremamente importante para explicar isso:
Não existe, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular relativamente à qual não exista outra mais potente e mais forte. Dada uma coisa qualquer, existe uma outra, mais potente, pela qual a primeira pode ser destruída”
– Espinosa, Ética IV, axioma
Talvez este seja o axioma mais cinza de toda a ética. Espinosa está nos condenando com um único axioma: somos pequenos, há sempre algo maior que a gente e que pode nos destruir.
Este único axioma desdobra todo um existencialismo espinosista. Sim, isso existe, porque do ponto de vista de Deus, tudo faz sentido, tudo segue sua ordem necessária, tudo acontece perfeitamente; mas nós não somos Deus, nós somos modos frágeis e finitos.
Este axioma é uma espécie de condenação tácita: as paixões existem e nós as vivenciaremos. Se por este axioma a servidão é necessária e, portanto, as paixões também, então pode ser interessante conseguir uma boa descrição da nossa condição, e Espinosa faz isso, uma definição das paixões à maneira dos geômetras:
A força e a expansão de uma paixão qualquer, assim como sua perseverança no existir, são definidas não pela potência com que nos esforçamos por perseverar no existir, mas pela potência, considerada em comparação com a nossa, da causa exterior”
– Espinosa, Ética IV, prop 5
Fórmula: Paixão = Força Interna < Força Externa
A servidão é a medida da desproporção. Sendo assim, quanto maior a força de fora e quanto menor a nossa força de resistência, maior será a paixão. Ela é o braço de ferro entre nós e o mundo. A paixão é a força d’água que nos arrasta, ultrapassando nossa resistência de não ser levado pela correnteza. Enfim, a servidão é um embate de forças.
Tudo se desdobra a partir desse entendimento. Eis a nossa condenação, podemos ser o quanto forte quisermos, mas nunca seremos como Deus, somos finitos, não há escapatória. O modo é esta coisa eternamente limitada por outra maior.
O que Espinosa diz é muito simples: os modos estão condenados à fragilidade do existir. Não sabem como vieram à vida, se esforçam para resistir, mas o resultado final está decidido, e eles vão perder. Somos frágeis, delicados, vulneráveis, muitas vezes nossa vida está por um fio e nem sabemos. Afinal, podemos deixar de existir a qualquer momento, basta haver uma pequena contradição interna, basta uma artéria se romper, uma garganta engasgar, uma queda mais forte.
Quando dizem que: “Deus é o Alfa e o Ômega”, é verdade. E nós somos algo pequeno e delicado no meio disso tudo, pequenas formas de vida em um grão de areia girando em torno do Sol. Não sabemos de onde viemos, quem somos, nem para onde vamos. Só sabemos que estamos aqui e nossa estadia é efêmera.
Pelo que foi dito, fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro, ignorantes de nossa sorte e de nosso destino”
– Espinosa, Ética III, prop 59, esc
O modelo do arrasto explica muito bem o que queremos dizer. A Servidão é a força d’água nos levando pra cachoeira, as paixões são os efeitos infelizmente necessários deste arrasto. Queremos sair do ponto A e ir para o ponto B, mas as paixões nos carregam para o ponto C. Nos esforçamos para subir ao cume, mas a neve da avalanche nos leva para o vale; votamos no candidato X para ser presidente, mas a eleição elege o candidato Y. Apontamos o barco para o norte, mas a força do vento nos leva para o leste. Nos esforçamos para terminar aquele curso, mas as circunstâncias nos obrigam a adiar nossos planos indefinidamente.
Conclusão, a servidão é a nossa condenação, não somos os autores de nossa própria vida. Fazemos parte de uma conjuntura muito maior que nós e estamos condenados a esta posição. Espinosa está dizendo que teremos eternamente muita dificuldade em sermos a causa de nós mesmos. Estaremos sempre obrigados a viver no excesso ou na falta dos encontros mal sucedidos. Não somos especiais, não somos escolhidos por Deus, as coisas não necessariamente estão indo para um lugar melhor.
Mas Espinosa escreve a Ética porque se recusa a permanecer neste estado, e chama uma aliada valiosa para virar o jogo: a Razão.
Obrigada por esse texto. Estava precisando. A Razão, uma aliada.