Skip to main content
CarrinhoClose Cart

Texto escrito em conjunto no Grupo de Estudos,

“Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem” – Bertold  Brecht

VIOLÊNCIA

Em determinados momentos políticos, é preciso ter uma definição bem clara de alguns conceitos. O que é violência? Violência é tudo que age pela força e vai contra a natureza de um ser. Ou seja, é o uso corporal ou psicológico da força que viola o outro. Violentar é desnaturar o outro, fazer algo realizar um movimento que vai contra a sua natureza.

No nosso caso, tanto político quanto social, há toda uma forma de organização, atitude ou estrutura que faz uma população viver no limite de si mesma, de modo precário, desnaturado, servil. Não podemos deixar de perceber esse estado de coisas como violento. É preciso encarar estas condições.

“Há no Brasil um mito poderoso: o da não violência brasileira” – Marilena Chaui, Sobre a Violência, p. 36

Por acreditar demais no mito do brasil varonil, não conseguíamos enxergar com clareza o nosso verdadeiro país. Mas, olhando por baixo da nossa bandeira verde e amarela não encontramos o que o mito da sociedade brasileira prometia. Debaixo da fina ilusão de sociedade pacífica nos deparamos, em realidade, com uma sociedade pacificada através da violência e do medo.

Não temos coragem de encarar nossas contradições e por isso passamos o tempo todo varrendo-as para baixo do tapete. O que encontramos se abrimos as cortinas do povo cordial? Uma sociedade completamente rasgada ao meio, pior, em mil pedaços, dividida, despedaçada. Uma sociedade onde a violência e a opressão se espalham por todos os cantos.

Somos uma sociedade violenta, não podemos mais negar. Somos um povo desnaturalizado pela truculência de nossas autoridades, pelo descaso de nossas instituições, pela livre espoliação do mercado. Vivemos em uma sociedade que trata seus cidadãos como súditos, ou pior, como objetos. Um corpo social marcado pelos privilégios dos mais ricos e pelo descaso aos mais pobres.

“Legitimada no plano do saber e cristalizada no plano das instituições, a violência é o ar que respiramos, são as ações que praticamos; interiorizada e realizada nas relações pessoais, sociais, econômicas e políticas. Porque somos seus agentes e pacientes não a percebemos, senão quando ultrapassa os limites do costumeiro” – Marilena Chaui, Manifestações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro, p. 242

Onde está a violência?

Como será que enxergamos a violência? Se estamos dizendo: “Ela é estrutural”, será a que a percebemos dessa maneira? Se ela é o ar que respiramos, porque não estamos sufocando? A violência é experienciada de modo distorcido, este é o ponto. O mito verde e amarelo, nosso conhecimento social imaginativo, põe os conflitos sociais sempre na conta do “outro”.

Existem várias maneiras pelas quais a violência passa despercebida enquanto violência:

  • Exclusão: Se o povo brasileiro é definido como pacífico, ordeiro e receptivo, logo, a violência só pode ser cometida por outras pessoas, “pessoas que não tem o brasil no coração”. Correto? Antipatriotas, imigrantes, pessoas que não reconhecem-se na nação. “Nós somos bons”, eles dizem, “eles é que são maus e violentos”. É o velho lema: “Brasil: ame-o ou deixe-o”, a diferença é estigmatizada e varrida para debaixo do tapete ou para fora do país;
  • Distinção: Se, por essência, os brasileiros são cordiais e festivos, então a violência é acidental, algo passageiro, tal como um surto, uma epidemia, uma doença que logo terminará. A essência permanece intocada, o episódio de selvageria é temporário, é sempre pensado como um desvio na normalidade pacífica do país;
  • Jurídico: Se o povo brasileiro ama a paz, a civilidade, a ordem e o progresso, logo, a violência se reduz à criminalidade dos marginais, dos excluídos que querem destruir nossa bela nação. É assim que se tenta justificar a frase: “Bandido bom é bandido morto”. O criminoso só o é por ser antes um marginal, por não ser “homem de bem”, “civil de primeira qualidade”, ou ainda, “rico e branco” – é o que eles gostariam de dizer;
  • Sociológico: Se a bandeira brasileira zela pelo progresso, se o povo brasileiro é trabalhador e batalhador, então a violência é percebida como algo que vem de fora pra dentro, de baixo pra cima, dos outros para nós. Nunca se desconfia que ela se origine do próprio seio familiar, no próprio ambiente de trabalho. Assim, o chefe que assedia é sempre tratado como exceção – “ele é bravo” – e não como fruto das próprias relações de exploração que o permitem ser violento;
  • Inversão do real: “Violentos, nós? Não! É o outro! Sempre o outro! Ele que começou, ele que nos atacou!”. É sempre “a polícia que reage para conter a ferocidade da manifestação”. É sempre a mulher culpada por ter sido estuprada, “afinal, ela pediu”. Inversão absurda! O mito verde e amarelo nos impede de ver o óbvio: o violento é colocado como violentado e o violentado é colocado como violento!

Já não podemos mais aceitar essas maneiras de enxergar a violência. Estamos deixando de perceber onde ela realmente se situa, estamos perdendo o essencial. Dessa maneira, estaremos sempre tapando o Sol com a peneira, porque trataremos como caso específico o que na verdade é sintoma de uma relação doente.

O núcleo da violência

Sr. Garcia

A conclusão é que a violência não é percebida onde ela se origina, isto é, nas suas próprias estruturas internas, em sua própria maneira de funcionar, ali onde ela perpetua a ausência de direitos e desigualdades. No fim das contas, a própria explicação acaba sendo violenta. Nós não conseguimos ver seu funcionamento como algo intrínseco, implicado em nosso modo de vida. É a estrutura da sociedade brasileira que origina a violência.

Não percebemos a tirania que se exerce sobre nós, no rigor das leis, da polícia, das condições de trabalho, moradia e transporte. Não falamos das coerções cotidianas dos opressores que, gradualmente, nos constrangem. Não percebemos a violência do Estado através da polícia, que apesar de não declarar, toma o partido imobiliário, especulativo e higienista. Não percebemos a violência do machismo nem na desigualdade salarial – em números! -, nem em homicídios – em números! – quanto mais as incontáveis pequenas agressões físicas e verbais contra mulheres e LGBT+.

Ainda não encaramos a desigualdade de renda como uma violência indiscutível. O quão absurdo é isso? Ainda estamos discutindo cotas e tentando convencer pessoas que a meritocracia é uma falácia, quando a realidade estrutural da sociedade aparta os negros dos brancos pela renda e mantém as estruturas da escravidão pela força da grana.

Não percebemos a brutalidade da casta política que faz uso próprio da máquina pública através da cooptação e da corrupção. Não notamos a violência para com a população indígena, cada vez mais cerceada em suas terras naturais. Não nos damos conta da violência dos bancos em sua impetuosidade financeira de perdoar ricos e cobrar pobres.

Enfim, a violência, como não a vemos, é mantida exatamente por causa do mito de não violência! Ela é negada no mesmo instante em que está sendo exibida, através de explicações distorcidas. Ela é situada em algum outro lugar, distante, lá longe… Todas as contradições se diluem no imaginário de uma suposta unidade ordeira e pacífica. É só dessa maneira que conseguimos entender a cegueira política das pessoas em nosso país.

“A desigualdade na distribuição da renda – 2% possuem 98% da renda nacional, enquanto 98% possuem 2% dessa renda – não é percebida como forma dissimulada de apartheid social ou como socialmente inaceitável, mas é considerada natural e normal, ao mesmo tempo que explica por que o ‘povo ordeiro e pacífico’ dispenda anualmente fortunas em segurança, isto é, em instrumentos de proteção contra os excluídos da riqueza social, em outras palavras, a sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes sem que isso seja percebido como violência” – Marilena Chaui, Manifestações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro, p. 230

Pacificação e Autoritarismo

Esta estrutura absolutamente absurda e desigual, é ignorada por nossa sociedade. O problema são os outros: os marginais, os estrangeiros, os antinacionalistas, em uma palavra: os opositores. É preciso defender a sociedade deles. Não é irônico? O que põe em risco o país, nesse conceito pífio de democracia, não é a ausência de opositores, mas a existência deles!

“Finalmente, contra o ‘caos’, a classe dominante invoca a necessidade da ‘salvação nacional’. A ‘união da família brasileira’ (isto é, um elemento do espaço privado definido como elemento central do espaço público) e a ‘salvação nacional’ condizem, via de regra, à ‘pacificação nacional’, isto é, aos golpes de Estado e às ditaduras (velhas ou ‘novas’)” – Marilena Chaui, Manifestações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro, p. 267

Alguns dizem que somos um povo sossegado, carnavalesco e progressista. Pois bem, a verdade é que não somos uma sociedade pacífica, mas fomos pacificados à força! Não somos um povo ordeiro e cordial, somos um povo reprimido e acuado. Não temos paz, temos medo.

Um povo que vive em paz porque tem medo de se revoltar, uma população que não faz nada porque teme as consequências, não é uma sociedade pacífica, é uma sociedade aterrorizada, que renova seu pacto com as forças mais abjetas como quem vê o melhor, mas segue fazendo o pior. A ignorância da verdadeira estrutura do nosso país mantém altas as apostas nas figuras mais violentas que possam surgir.

“Graças ao mito da não violência, deixamos na sombra o fato brutal de que vivemos numa sociedade oligárquica, verticalizada, hierarquizada, autoritária e por isso mesmo violenta, que bloqueia a concretização de um sujeito ético e de um sujeito político, isto é, de uma subjetividade e de uma intersubjetividade verdadeiramente éticas e da cidadania verdadeiramente democrática” – Marilena Chaui, Sobre a Violência, p. 48

A confiança de quem pode agir é muito diferente do medo de quem não se atreve a fazer nada e aguarda esperançoso que algo mude. A faixa central em nossa bandeira, “Ordem e Progresso”, coroa uma grande ilusão. Ao menos uma coisa em nosso lábaro estrelado é verdade: o Amor (parte do lema positivista “o Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim) foi removido, isolado, segregado.

De toda essa farsa nós guardamos apenas o autoritarismo que chamamos de Ordem, a coerção que chamamos de Justiça, a opressão que chamamos de Progresso. Trocamos o amor pelo ódio, mas esquecemos de escrever isso no Hino Nacional.

Texto da Série:

Monopolítica:

Sociedade Brasileira

Razao Inadequada

Autor Razao Inadequada

Texto produzido em conjunto com o Grupo de Estudos, um espaço colaborativo de leitura e escrita. Os encontros acontecem semanalmente pela internet às quartas-feiras à noite. Os temas abordados são escolhidos em conjunto com os participantes. Quer fazer parte? Seja um assinante, colabore com o nosso site e receba benefícios.

Mais textos de Razao Inadequada
Subscribe
Notify of
guest
1 Comentário
Inline Feedbacks
View all comments
Athos Avila
Athos Avila
5 anos atrás

Texto muito bom, porém acrescentaria uma análise da reprodução da violência no âmbito familiar e nas formas mais sutis e pouco percebidas como violentas; como por exemplo o pretenso monopólio do conhecimento e do saber nas instituições.