Em geral, costuma-se pensar a revolta como um movimento negativo, puramente opositivo, desprovido de qualquer caráter afirmativo. Sendo a própria “luta” um sinal de que se está “contra” algo. Entretanto, essa não é senão a primeira e mais superficial camada de qualquer insubmissão. O conceito de revolta que Camus propõe como complemento ao absurdo vai além da negação:
Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim desde o seu primeiro movimento.” – Camus, O Homem Revoltado
O revoltado diz simultaneamente sim e não. Por trás de sua recusa está a descoberta de um limite que se afirma. Daí a necessidade de pensarmos um conceito mais amplo, uma noção de revolta que seja capaz de perceber o sentido que uma recusa é capaz de criar. O escravo quebra as correntes em nome de uma nova vida, levado não pelo sabor de negar o outro, mas pela necessidade de afirmar-se.
Nem toda negação é negadora da vida, nem toda afirmação é afirmadora. Dizemos isso sem correr riscos de cair em contradição. A filosofia não iria muito longe se ficasse presa aos nomes. Afirmação e negação não são exatamente opostos – são complementares! Aprender onde colocar o sim e o não é a tarefa de qualquer pensamento saudável.
Não podemos deixar de lembrar Nietzsche e o leão de Zaratustra, segunda metamorfose do espírito, momento de rugir em face de todo dever. Lembramos também de Stirner, que diferencia a recusa adulta daquela rebeldia adolescente, justamente pelo conhecimento dos próprios limites. No entanto, é bom lembrar, Camus tece duras críticas a ambos os autores, apontando os perigos da afirmação absoluta que eles buscam.
Há em toda revolta uma adesão integral a uma certa parte de si mesmo. Um limite se apresenta e então trata-se de aprender a respeitá-lo, mais do que isso, impô-lo, se necessário. Não faltam exemplos para mostrar que levantar-se contra algo é também levantar-se por algo. A revolta metafísica, contra Deus, se faz em nome de uma vida imanente. A revolta contra os Reis se faz em nome da igualdade de direitos.
Nem todo valor acarreta a revolta, mas toda revolta invoca tacitamente um valor”– Camus, O Homem Revoltado
O que Camus elucida é muito importante: a revolta é um grande movimento de criação de valores. A revolta não ocorre sem o sentimento de que se tem razão, de que os próprios valores foram injustiçados, de que é preciso reparar algo que foi lesado. É apenas dessa maneira que podemos compreender a força que uma rebelião tem: etimologicamente, re-bellio é reavivar um estado bélico, retornar à guerra. Isso não exige menos do que novos valores.
Muitas vezes, um novo valor requer que se atualizem as relações, ainda que à força. Às vezes isso envolve o tudo ou nada: “antes morrer de pé do que viver de joelhos”. Não é uma grande surpresa e, no entanto, os reacionários estão sempre de queixo caído perguntando a necessidade de tanta inquietação. É simples, não há valor estático que dê conta da vida. Somos todos revolucionários, a diferença é que alguns se conformam com mais facilidade.
A revolta de um fala por todos, por mais que não haja concordância, pois não é essa a questão. Para Camus, é da natureza humana não aceitar a condição de rebaixamento, seja na forma metafísica de um mundo decaído, seja na forma da submissão aos tiranos. Mas a primeira e fundamental recusa é dirigida à morte. Não há conservadorismo frente à própria morte. A necessidade de morrer converte-se em revolta como maneira de viver. Em termos filosóficos clássicos, o homem é um animal revoltado.
A menos que se fuja à realidade, seria necessário que nela encontrássemos nossos valores. Longe do sagrado e de seus valores absolutos, pode-se encontrar uma regra de conduta? Esta é a pergunta formulada pela revolta.” – Camus, O Homem Revoltado
Quando não se escolhe saltar, fugindo do absurdo, só resta o encarar de frente. Mas não se faz isso em plena aceitação, ao contrário, é pela revolta que tocamos o chão, mesmo que este insista em fugir de nossos pés. A ausência de sentido da vida e a urgência imposta pela morte despertam no homem a revolta. Se somos apenas o estranho fruto de um lance de moeda cujas faces são vida e morte, podemos dizer que só nos resta a revolta.
É claro que não paramos aí, a morte é apenas a primeira das recusas. Por mais que se tenha a vida, a consciência da situação em que ela se encontra nos leva à imediata indignação. A desigualdade, a tirania, a violência, a morte banal, são os índices caóticos que só podem ter uma resposta: a revolta. A baixeza, a ignorância, a superstição, a intolerância, são as posturas de homens abomináveis. Mais uma vez, não temos escolha, apenas a revolta tem chance de criar sentido.
Se vivemos em um mundo injusto, se somos nostálgicos de uma ordenação, então a única postura coerente é a revolta. O dia-a-dia, momento a momento, de nossas vidas é absurdo. O ir e vir cotidiano não contém nenhum sentido. Se estamos perdidos, a revolta é um norte, ela apresenta uma trilha onde afirmamos algum sentido possível. A revolta é um motivo, um movente, uma causa motriz.
É difícil compreender porque somos tão submissos, ou pior, como lutamos pela servidão, como já diziam La Boétie, Espinosa, Reich e como bem lembravam Deleuze e Guattari. Camus nos apresenta um grande fator que interdita a revolta: o sagrado. A tradição imposta por um mito fundador impede a tomada de consciência que a noção de revolta exige. Sagrado e revolta são dois universos em oposição.
O verdadeiro drama do pensamento revoltado finalmente se revela. Para existir, o homem deve revoltar-se, mas sua revolta deve respeitar o limite que ela descobre em si própria e no qual os homens, ao se unirem, começam a existir. O pensamento revoltado não pode, portanto, privar-se da memória: ele é uma tensão perpétua.” – Camus, O Homem Revoltado
Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual; a partir do momento da revolta, é aventura de todos. É colocando limites e encontrando medidas que descobrimos o que há de comum entre nós e os outros. Não deixaremos de ser estrangeiros em um mundo imenso, mas ao menos conheceremos o pequeno território de nossos desejos. A revolta não se confunde com a tristeza. Ao contrário, é a partir dela que aprendemos a cantar nossos valores.
A solidariedade se fundamenta na revolta, e se são ultrapassados seus limites, não é mais revolta, mas assassinato consentido. Sem um fundamento transcendente, declaramos um novo amor à vida, então não podemos estender a rebeldia para além de alguns limites. O assassinato não pode ser a regra de conduta da revolta, pois ao consentir com a morte, negamos o princípio, a base de toda revolta, que é a vida.
Assim, Camus busca na história – entre os desobedientes e insubmissos – as diversas faces que a revolta assumiu. Da metafísica à revolução, uma primeira evidência se destaca para além de toda a dúvida, a existência está condicionada à revolta, enquanto criadora de um sentido até então ausente. Um sentido, por sua vez, é o que cria uma comunidade e coloca as ideias no mundo. Em termos cartesianos, o revoltado diz: “Eu me revolto, logo existimos”
Particularmente conheço a revolta desde sempre. No princípio rebeldia adolescente, porém com o tempo acabei descobrindo a causa de fato: minha identidade e meus direitos. (que foram roubados muito cedo). Existe um valor pelo qual luto, um valor essencial.
Ironicamente a luta pode ser uma coisa ilusória, já que o processo exige mais é que aceitemos o que somos e assim construindo alguma paz e o mais importante: uma lucidez progressiva. Por mais árdua a vida pode se constituir em uma grande aventura.
Excelente texto. Ótimo tema.
Isso me lembra de Dylan Thomas, tem uma frase dele que eu amo fortemente:
“Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.”
Eu recomendo a você que vá em fúria e ódio, vá em revolta até que a luz apague.