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Os Cínicos levam os conselhos de Platão ao limite, esticando-os a tal ponto que eles rasgam e se tornam outros. “Descaracterizar a moeda“, viver conforme o que se diz. Os Cínicos são os filósofos do escândalo, trazendo a filosofia para seus pés, vivendo sem pudores, mendigando, ele levam a filosofia para o meio do povo.

O cinismo é portanto essa espécie de careta que a filosofia faz para si mesma, esse espelho quebrado em que o filósofo é ao mesmo tempo chamado a se ver e a não se reconhecer”

– Foucault, A Coragem da Verdade, p. 238

Zanchi – Diogenes with his lamp – and an owl

Platão disse: o filósofo é aquele que possui uma vida soberana, somente desta forma ele pode encontrar a verdade. Vida soberana? O que ele quis dizer? Ora, a vida soberana é aquela que tem a posse de si mesma, que não se fragmenta, nada escapa de seu exercício e de seu poder. O filósofo vive uma vida soberana quando pertence a si mesmo, e somente desta forma ele pode dar exemplo de si e ajudar os outros. Sêneca faz isso através de suas cartas, onde aconselha aos mais jovens, por exemplo.

Os cínicos concordam com Platão, mas dão uma boa risada. O cínico ri e diz, “Ah, Platão, pobre de ti, não foste longe o suficiente!“. Os filósofos cães acreditam que somente eles têm uma vida soberana, por isso dizem: “Eu sou o rei!”. A arrogância cínica fazem os outros filósofos corarem, mas os cães não arredam o pé: “O filósofo cínico é o único soberano“.

Isso remete diretamente ao encontro entre Diógenes e Alexandre. No auge de sua glória, Alexandre, vai visitar Diógenes, sentado no chão, seminu, tomando sol. Alexandre diz ao sinopense que este poderia pedir-lhe qualquer coisa, ao que o filósofo responde: “Não podes me dar nada, mas gostaria que saísse da frente do sol pois está fazendo sombra“. Alexandre tem poder sobre os outros, Diógenes tem poder sobre si mesmo.

Alexandre teria dito certa vez que se não fosse quem era, gostaria de ser Diógenes. Ao que este teria replicado: “Ora, mas o verdadeiro rei sou eu“. A monarquia de Alexandre é fraca perto da de Diógenes, a realeza do primeiro é externa, a do segundo é em-si. Se aquele vence inimigos com seus exércitos, este vence a si mesmo por seu próprio mérito.

Mas se o filósofo cínico se diz um rei, quem são seus súditos? Ninguém, muito pelo contrário, o Cínico recebe a missão de servir. É um rei do combate corpo a corpo, que está na linha de frente, muito diferente dos reis que fazem guerra de seus palácios. A mesma natureza que faz do filósofo um soberano, o leva a servir aos outros. Os cínicos são médicos, não apenas porque prescrevem remédios, mas porque, em meio à guerra, tem a coragem de colocar a mão nas feridas.

Esta missão cínica toma a forma de um combate. Ela tem um caráter polêmico, belicoso. As medicações que os cínicos propõem são medicações duras”

– Foucault, A Coragem da Verdade, p. 246

Diógenes procurando um homem, por Cornelis de Vos

O combate que esta escola filosófica se propõe são diários, constantes, da mesma forma que um soldado ou um atleta que está sempre preparado. Diógenes, de seu tonel, lutava contra os costumes, “descaracterizava o valor da moeda”, as instituições, a moral, as leis, os vícios. Sua intenção era salvar o que havia de saudável e forte no homem. O que resta de saúde em nós? Nossa maneira de viver nos torna doentes, mas o filósofo cão late para denunciar hábitos e convenções absurdas. E se tudo dá errado, ele morde nossa perna e tenta nos levar para o caminho correto.

Diferente de Epicteto, Platão, Sêneca e vários outros, a filosofia cínica não procura a calma, a paz, o sossego. O deus que descansou no sétimo dia era o dos cristãos, não o de Diógenes. A vida soberana só pode ser verdadeiramente soberana se torna-se militante. Uma resistência ativa, de denúncia. Uma luta em campo aberto, agressivo, contra vários inimigos.

Os cínicos fazem questão de lembrar que você está no mundo, e mesmo se escondendo continua nele. Onde está o prazer da luta, do debate? “Viverás como um militante” implica não se esconder, não deixar-se levar pelos medos e pela mediocridade. Não cair em um conformismo, não render-se, não baixar as armas.

Os ensinamentos cínicos nos ensinam que a filosofia é uma arma, uma ferramenta que desmonta os valores vigentes para criar novos. Tal como nas artes marciais, instrumentos simples se tornam armas fatais na mão de pessoas treinadas. Ação e pensamento tornam-se um só (isso acontece quando se pensa corretamente). Contra todo filósofo de academia falando baixo para surdos, os cínicos gritam no meio da praça até alguém ouvi-lo. Ninguém mergulha no cinismo sem tornar-se um militante, um delator, um filósofo pleno.

Uma vida cuja alteridade deve levar à mudança do mundo, uma vida outra para um mundo outro”

– Foucault, A Coragem da Verdade, p. 253

Texto da Série:

“Descaracterizar a Moeda”

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Vinicius
9 anos atrás

Cinismo é a primazia da prática, talvez. Muito bom!

Eduardo Britto
Eduardo Britto
8 anos atrás

Muito bom o texto Rafael.

Petras
Petras
2 anos atrás

Belo texto, parabéns!

Luiz Brandão
Luiz Brandão
1 ano atrás

“A vida soberana só pode ser verdadeiramente soberana se torna-se militante. Uma resistência ativa, de denúncia. Uma luta em campo aberto, agressivo, contra vários inimigos.”

Cínico pós-moderno: agressivamente conformista; ativamente resignado. Inimigos: seus próprios demônios. Diógenes riria de seus discípulos anarcoposers.

“Contra todo filósofo de academia falando baixo para surdos, os cínicos gritam no meio da praça até alguém ouvi-lo.”

Sim, na praça São Salvador, na praça Roosevelt, em meio a drinks descolados ou com uma Brahma instagramável.