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As afirmações de Espinosa o levaram a ser excomungado, sua honestidade filosófica era maior que as leis de sua sinagoga. Mas isso não é de surpreender, seu pensamento ia de encontro a tudo que se passava em sua época, suas ideias viram de cabeça para baixo o que se pensa sobre religião, política e filosofia.

Na primeira parte da Ética, Espinosa explica como as interpretações religiosas não deveriam ser consideradas literalmente, a bíblia é escrita numa linguagem fantasiosa, a religião é uma tentativa de explicação para aplacar a angústia da falta de conhecimento, o medo da morte, e funciona mais como uma arma política que como uma porta para verdades ocultas. Deus não é um velho barbudo, nem nada com mínimas características humanas, Ele é o mundo (veja aqui), a própria natureza. O Todo-Poderoso não é um Juiz, não está acima de nós, nos julgando, ele é a substância do universo que se expressa nos atributos: pensamento e extensão.

Antes de Espinosa, podemos citar dois filósofos que julgaram responder à questão mente-corpo. Platão definiu a mente, ou alma [Psykhé], como “o piloto do navio”, dando preferência para a alma que devia guiar o corpo. Aristóteles definia o corpo como órganon da alma, mero instrumento no seu aperfeiçoamento, dando preferência e supremacia para esta e não àquele.

Todo sistema cristão e posteriormente a filosofia de Descartes foram influenciados por esse pensamento. A alma como guia do corpo, sua mestra e condutora. O corpo como “morada da alma”, algo perecível, até mesmo sujo, descartável, pecador, inferior. Desta forma, a consciência estava salva e a religião cristã também. Ainda hoje estas ideias correspondem à visão da maioria das pessoas.

Para Espinosa, isso não passa de um pretexto para julgar as paixões e o corpo como coisas que tiram a natureza de seu curso natural, desequilibrando-a (veja aqui). Não, se Deus é a única substância, então pensamento e extensão são atributos de uma única e mesma coisa. Mente e corpo são um só: modificações de uma mesma substância que se mostra ora como mental, ora como material. A filosofia de Espinosa pode ser definida como um monismo irrestrito.

“O pensamento é um atributo de Deus, ou seja, Deus é uma coisa pensante” Espinosa, Ética II, prop 1

“A extensão é um atributo de Deus, ou seja, Deus é uma coisa extensa” – Espinosa, Ética II, prop 2

Espinosa pretende responder à pergunta “o que pode o corpo?” (veja aqui), mas nós aqui nos perguntamos: o que pode a mente? Como é possível e para que serve a mente? Através da definição de Espinosa do conceito de conatus podemos chegar à resposta. Tudo que existe quer manter-se em si mesmo, e realiza um esforço nesta direção. O objetivo do corpo é continuar existindo, ele é natureza (mesmo aparentemente separado dela através da pele) e procura manter sua forma própria. Cada corpo é singular e define sua causa interna de existência, rompendo com causas exteriores ou finalismos de qualquer tipo. A mente consciente também é conatus, apenas uma ferramenta do ser para preservar-se.

Nathalie Maquet

Vemos então que a alma, ou mente, não está acima do corpo, como previra Platão e Aristóteles, nem mesmo fora do corpo, como afirmou Descartes e os ensinamentos cristãos; mas sim é parte e busca existir, a mente é a potência de pensar de um corpo que tem uma potência de agir. Cada um expressando um atributo determinado. Esta filosofia parece muito mais fiel à realidade do que as justificativas metafísicas da glândula pineal de Descartes.

A ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas”

– Espinosa, Ética II, prop 7

A potência de Deus é igual à sua potência de pensar. O mesmo pode ser dito de nós, modificações dos atributos divinos, a potência de nosso corpo é simultaneamente a nossa potência de pensar. Deus não produz de maneira desordenada, há uma correspondência entre os atributos, há uma igualdade porque a mesma substância se expressa de diversas maneiras. Não há superioridade da alma sobre o corpo como imaginaram vários pensadores antes de Espinosa. Mente e alma são ativos ou passivos juntos, estão em igualdade de condições sem que haja a possibilidade de um reinar sobre o outro.

O que, primeiramente, constitui o ser atual da mente humana não é senão a ideia de uma coisa singular existente em ato”

– Espinosa, Ética II, prop 11

Todas as informações que a mente recebe vêm dos estímulos corporais. Tudo que a mente sabe, ela sabe através de um corpo que é afetado, que existe em ato. Ou seja, o que é percebido na mente humana é exclusivamente o que acontece com o corpo. A mente é ideia do corpo, o pensamento só acontece por força dos corpos que nos afetam. Não poderíamos ser, como gostariam alguns, cabeças flutuantes, almas incorpóreas. Precisamos estar mergulhados na vida, plenamente. A modificação no nosso corpo corresponde a uma modificação na alma.

Quanto mais um corpo é capaz, em comparação com outros, de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, ou de padecer simultaneamente de um número maior de coisas, tanto mais sua mente é capaz, em comparação com outras, de perceber, simultaneamente, um número maior de coisas”

– Espinosa, Ética II, prop 13, esc

A mente conhece seu corpo através das ideias das afecções dele. E ao mesmo tempo em que tem ideias deste corpo, tem simultaneamente ideias destas ideias. Mas estas ideias envolvem a natureza do nosso corpo e do corpo externo. Por isso não podemos conhecer adequadamente os corpos exteriores, suas essências, porque sabemos apenas dos efeitos que estes corpos nos causam. O conhecimento que temos é definido por Espinosa como de primeiro gênero, ou imaginativo. Este conhecimento é inadequado porque tem acesso ao mundo exterior apenas através de seu corpo, ou seja, o conhecimento dos objetos se mistura com o estado de nosso próprio corpo.

Nathalie Maquet

Conforme a Ética de Espinosa se desenvolve, ele nos indica o modo mais adequado de sair do primeiro gênero do conhecimento e entrar no segundo, o racional, que só é possível com as noções comuns. A intenção é sair da imperfeição das ideias confusas para entrar nas ideias que exprimam o máximo possível nossa essência. O objetivo de Espinosa é alcançar o conhecimento adequado de nosso corpo e dos corpos que nos cercam, e com isso pôr fim à ignorância, à miséria humana, sua servidão, seus medos, suas superstições que negam o prazer e a felicidade.

O caminho para a razão acontece apenas com as experiências do corpo, pelos encontros que convêm e que nos preenchem de alegria. A união mente-corpo se torna clara quando o corpo não é mais afetado de tristeza. Quanto mais triste estamos, pior nossa capacidade de pensar e pior nossa capacidade de agir. Podemos concluir que a mente pode pensar tanto quanto o corpo pode agir, um vale tanto quanto o outro. Mente e corpo sofrem variações simultaneamente. A capacidade de pensar envolve a capacidade de agir, os dois com o fim único de alcançar a liberdade, a felicidade, a virtude e a beatitude. Em Espinosa, mente e corpo seguem juntos, duas retas paralelas que se encontram no infinito.

A teoria da potência, segundo a qual as ações e paixões do corpo são paralelas às ações e paixões da alma, forma uma visão ética do mundo. A substituição da moral pela ética é a consequência do paralelismo, e manifesta sua verdadeira significação”

– Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 176

Texto da Série:

 

Ética

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Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Milena Klinke
Milena Klinke
11 anos atrás

Muito bem escrito, muito bem colocado! Aeee, parabéns!!!:)

Rafael Lauro
Admin
Reply to  Milena Klinke
11 anos atrás

Também achei! Já disse pra ele, mas repito, muito bem escrito! Essa série tem futuro!

Ijaelson
Ijaelson
Reply to  Rafael Lauro
11 anos atrás

Parabéns, pelo trabalho muito bem escrito, mostrando uma visão coerente sobre a relação de mente e corpo.

jorio eduardo maia
Reply to  Ijaelson
11 anos atrás

Embora negasse a diferença entre mente e corpo , não obstante Spinoza afirmou que “a mente não poderia ser totalmente destruída com a morte do corpo,”
A mente é a ideia do corpo, mas Deus tem a ideia de si mesmo e de tudo que produz. Portanto, tem ideia da nossa mente. Então algo da nossa mente está associado a essência eterna e infinita de Deus e este algo permanece.

jorio eduardo maia
Reply to  Rafael Trindade
11 anos atrás

Exato, quanto melhor conhecermos a natureza, mais conheceremos a Deus, pois a mente tem ideias pelas quais “percebe seu corpo, percebe a si mesma e os corpos exteriores e portanto tem a ideia da essência eterna e infinita de Deus”. Ou seja a mente percebe que tudo para existir precisa de Deus e sabe que existe em Deus. A mente tem a intuição e a vivência da eternidade, pois sabe que a essência eterna e infinita de Deus envolve existência necessária. Sendo assim, algo da nossa mente, que pertence também à essência de Deus, permanecerá,, ou seja podemos nos conceber… Ler mais >

Marlene f Vargas
Marlene f Vargas
Reply to  Milena Klinke
7 anos atrás

SalveEspinosa eu amo sua Filosofia acredito nessa inteligência.

Juliana
Juliana
11 anos atrás

Muito bom o texto 🙂

Cleiton Oliveira
Reply to  Rafael Trindade
8 anos atrás

em que, propriamente,consiste a inovação de Espinoza a respeito do tema corpo e alma? me responde rafael trindade por favor preciso da ersposta para amanha

Pietra Izabela
10 anos atrás

Olá Rafael! Gostaria de parabeniza-lo pelo texto. Estou querendo utilizar algumas das referencias que você utilizou na elaboração de uma resposta para a faculdade (sou caloura rs), porém não as encontro na net kk poderia me ajudar? Agradeço desde já!

Karina
Karina
9 anos atrás

Ameeeei, me salvou!

Thays Lima
Thays Lima
8 anos atrás

Arrasou! Muito bem escrito. Parabéns!

luana
7 anos atrás

Texto interessante e bem escrito…

vinicius williams
vinicius williams
7 anos atrás

Ótimo trabalho, parabéns.

welly
welly
7 anos atrás

eu amei mais tem como vc me explicar aq

welly
welly
Reply to  welly
7 anos atrás

eu amei