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Há vários motivos para incluir Nietzsche na história da psicologia. O próprio filósofo escreveu pouco antes de seu colapso mental que “antes de mim não havia sequer psicologia” (Ecce Homo). Para ele, todos aqueles que diziam estudar o homem se baseavam em considerações metafísicas de origem platônica e posteriormente cristã, mas sem nunca parar para pensar se estas próprias ideias tinham alguma consistência. O caminho dos filósofos ascéticos leva a becos sem saída e posturas niilistas (veja aqui)

Para dar conta destes problemas, Nietzsche sugere retornar aos problemas fundamentais, demolindo o arcabouço teórico da metafísica alemã, da teologia cristã e do utilitarismo inglês. Ao longo de toda a obra nietzschiana cabe a pergunta “O que é psicologia?“. Enfim, o primeiro trabalho do filósofo-psicólogo então é desconstruir as ilusões criadas na unidade do homem, que Nietzsche chama acertadamente de atomismo anímico.

Demócrito (460 a.C.) já havia postulado o átomo como algo indivisível, indestrutível, imperecível. A-tomo, do grego, aquilo que não pode ser dividido. Esta sedução da linguagem nos leva por um caminho enganoso que foi seguido posteriormente por Platão, pela teologia, Descartes, Kant e Schopenhauer. Contudo, “a unidade da palavra não garante a unidade da coisa” (Humano Demasiado Humano). Só porque temos uma palavra que indica algo, isso não se dá necessariamente.

O atomismo psíquico é o conceito de que há algo de imutável em nós, uma essência constante, fixa, que não é afetada pelo devir. O atomismo psíquico é a âncora das teorias metafísicas que necessitam de um pouco de fixidez, um pouco de Parmênides, um pouco de eternidade. Sem ele, o “Penso, logo existo”, estaria perdido, a alma platônica se perderia no rio de Heráclito, no fogo da transitoriedade. A alma precisa permanecer inabalável, impávida frente à existência fugidia. Esta é a ânsia daqueles que desprezam este mundo e procuram por algo de sólido fora dele.

Mas o mundo é um mar de forças, por trás do átomo encontramos várias outras partículas relacionando-se umas com as outras; a crença na unidade não passa de uma busca por um porto seguro, um ponto de apoio onde se fixar. Já sabemos: a imobilidade mata a vida! Platão pensou encontrar este lugar no mundo das ideias, do qual nosso mundo seria apenas uma cópia imperfeita e perecível. O cristianismo, cópia vulgar do platonismo, persiste neste fóssil metafísico da unidade, céu e terra. Os metafísicos são incapazes de ver que toda essência eterna é ilusão. Precisamos voltar a Heráclito e dizer que o rio que entramos pela segunda vez não é o mesmo que o primeiro porque suas águas já são outras, mas principalmente, nós mesmos já somos outros também.

Todas estas ideias se repetem quando falamos do homem. Buscamos algo de essencial e eterno no ser humano, algo que resista às forças tanto internas quanto externas e que sobreviva ao movimento. Ainda estamos em núpcias com a imobilidade. Esta ilusão se dá principalmente na palavra “Eu”. Mas esta noção é completamente aleatória, uma mentira útil, servindo apenas na medida em que serve ao próprio homem. O Eu é ferramenta de responsabilização e culpabilização! Sem um “Eu-estruturado” toda nosso ideal de homem se perde na neblina do caos.

A alma é um jogo de forças, um mar agitado num embate furioso onde uma onda se sobrepõe à outra. Nossa consciência é apenas um subconjunto, a última e mais recente parte, que se manifesta nessa dança corporal de impulsos. Várias partes do nosso processamento cerebral escapam à nossa consciência, várias condições corporais nos passam despercebido, a mente consciente é uma janela reduzida demais para chamar de “alma”! Se do átomo só encontramos seu movimento e sua força, Nietzsche nos propõe chamar o corpo de um grande conjunto de vontades, afetos, impulsos e sensações:

Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como ‘alma mortal’, ‘alma como pluralidade do sujeito’, ‘alma como estrutura social de impulsos e afetos’ querem ter, de agora em diante, direito de cidadania”

– Nietzsche, Além do Bem e do Mal, § 12

Se o mundo externo não possui unidade por si só, mas é uma criação do homem para suportar o infinito devir da existência, o mesmo deve ser aplicado ao homem! Sim, a multiplicidade de forças do mundo é a mesma pluralidade de forças internas que movem o ser humano. E os dois não constituem nada mais que uma unidade transitória, um rio no qual temos a ilusão de entrarmos duas vezes. O corpo é um ponto de incidência de vários impulsos! A multiplicidade de quereres não permite pensar em um indivíduo.

Deste modo, palavras como essência, alma, unidade, eu, passariam a ser apenas palavras, simplesmente palavras, criações que nos utilizamos sabendo que são mentiras, porque por debaixo desse “Eu”, pré-suposto platônico, se escondem milhares de outros “Eus”, que também querem e desejam e se empurram na busca para crescer, se afirmar e saciar suas vontades.

Podemos trocar a palavra alma por inúmeras outras, depois de destituí-la de seus pressupostos metafísicos. Espinosa, por exemplo, substituiu-a por conatus, que do latim significa esforço. Não se trata mais de uma essência última, a verdade do que somos, mas sim de um grau de potência, a capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo. Ao nos relacionarmos, portanto, nossa essência muda, não somos que éramos há dez anos atrás, e não seremos os mesmos no futuro.

Está desfeita a unidade de Descartes ao dizer “penso, logo existo”, porque o próprio “eu” se multiplica por detrás de si. Schopenhauer também afirmou a unidade do sujeito no “Eu quero”, mas ele não pode ignorar a pergunta “quem quer?”, Nietzsche nos ajuda a responder: queremos sempre no plural! A ideia de ter várias almas é deslumbrante, poético demais para não ser filosofia. Se a vida é perspectivismo, por que não pensar assim? A filosofia nasce do corpo atravessado por inúmeros impulsos, o pensamento nasce do corpo, sempre no plural. Um corpo que filosofa, que interpreta, que cria valores, que se transforma no próprio ato de afirmar-se. De agora em diante, todo pensamento deve passar pelo crivo do corpo e seus múltiplos impulsos, para ser capaz de gerar a diferença em si.

A vida é movimento, e determinadas ideias procuram dissimular o andamento do rio, secá-lo. Nosso corpo, e consequentemente nossa mente, é um rio que vive dos fluxos que o atravessam. A vida é um rio que ganha velocidade enquanto encontra os fluxos certos. O objetivo de Nietzsche ao postular várias almas é também trazer a opção de novas possibilidades, outras interpretações, que afirmem a vida por si própria sem recorrer a “céu”, “inferno” e outras existências para validar a nossa realidade. Precisamos encontrar nossas corredeiras, nossas cachoeiras, nossas águas calmas.

Assim falava alguém de si para si, em uma caminhada ao sol da manhã: alguém em quem não somente o espírito, mas também o coração sempre se transforma de novo e que, ao contrário dos metafísicos, se sente feliz por albergar em si, não ‘uma alma imortal’, mas muitas almas mortais

– Nietzsche, Humano Demasiado Humano II, §17

 

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Bruno Bueno
10 anos atrás

Quanto mais leio Nietzsche, menor minha vontade de conversar com as pessoas desta geração…

Rafael Ribeiro Dias da Silva
Rafael Ribeiro Dias da Silva
Reply to  Bruno Bueno
7 anos atrás

Eu também, estou com esse sentimento agora, sinto cada vez menos vontade me socializar.

Heitor Borges
Reply to  Bruno Bueno
6 anos atrás

Falou tudo Bruno, e eu tenho certeza que isso não é deliberação sua, é uma repulsa que surge sem você perceber.

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Reply to  Bruno Bueno
5 anos atrás

Bruno, Nietzsche disse: Carcaça tu tremes? Tremerias ainda mais se soubesse pra onde te levo…. pra solidão.

Elayne de Araujo
Elayne de Araujo
10 anos atrás

Ainda mais aqueles que se dizem:” nietzschiano”. muito não fizeram a leitura de suas obras :).

Lucas
Lucas
9 anos atrás

“A alma humana é um abismo, eu é que sei” (Fernando Pessoa – Álvaro de Campos).

Renato Garcia de Aro
7 anos atrás

Olá, pessoal.
Fiquei com uma dúvida quando foi citado o rio de Heráclito. Pois me lembro de ter lido que Parmênides o refutava co m a observação de que se o rio não é o mesmo é porque existe uma unidade imutável que torna possível o reconhecimento de uma mudança em seu estado.
Diante disso, gostaria de saber o que vocês pensam a respeito?

Abs.