O medo é uma tristeza instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida”
– Espinosa, Ética, definição dos afetos, 13
Acima de nós: chefes insensíveis, pais autoritários, ditadores sanguinários, deuses ciumentos e rancorosos; ao nosso lado, inimigos, competidores, policiais com spray de pimenta e cassetetes, assassinos perigosos; abaixo de nós, a massa, o povo, os insurgentes, os revoltados, os estrangeiros, os diferentes. Todos são suspeitos, todos geram o mesmo afeto: medo.
O cenário está dado, e o futuro também, afinal, o sujeito amedrontado de hoje é o corpo dócil de amanhã. A criança assustada de hoje é o bom aluno de amanhã; o empregado precarizado é o funcionário flexível de amanhã; a mulher violentada de hoje é a esposa “bela, recatada e do lar” de amanhã. Vivemos em uma sociedade de constante medo e insegurança.
O medo é o afeto mais comum de nossa vida em sociedade, é ele quem faz a gestão da nossa vida em comum, ele é essencial à estratégia de aceitação das normas e dos bons constumes. Quem teme não questiona, quem teme é facilmente jogado contra um inimigo imaginário. É ele que nos impede de agir, nos joga uns contra os outros, nos cala quando vamos falar.
Por isso podemos dizer que o medo é o afeto (bio)político central do poder para a coesão e estabilização da vida social. Para que o soberano tenha legitimidade ele precisa do medo, ele gerar insegurança, precisa lembrar constantemente que, se não estivesse lá, uma guerra de todos contra todos teria início. O soberano escala os degraus que do pavor e constrói um monumento para si onde diz: “protejo, logo obrigo“.
Este afeto é o fator determinante para estarmos isolados da política. Temos medo, só queremos ficar em nosso canto, protegidos. Temos que comer, trabalhar, pagar contas, não temos tempo para agir de maneira criativa e ousada. O ato político que se constitui com coragem, audácia, ação, naufraga com o peso das ameaças e preocupações. O poder passa a ser imaginado como uma instância superior inacessível e incompreensível que nos salvará e protegerá.
Um povo impotente é um povo apavorado, separado de sua capacidade de agir politicamente. A teatralização da política nos coloca como espectadores pacientes, ansiosos pelo último ato que tanto demora a chegar. A razão maior desta fantasia é a nossa nossa capacidade limitada de produzir novos afetos. E não seria esta a nossa maior razão de impotência? Nos deixarmos aprisionar em um circuito de afetos em que nos parece natural a limitação por todos os lados.
Por isso a proximidade do medo com a esperança. Os dois afetos são parecidos porque estão no campo da impotência. Quem está na esperança e duvida, teme enquanto espera. Quem está no medo e duvida, espera enquanto teme. A esperança está tão perto do medo que não pode ser usada como ferramenta para desarmá-lo, os dois andam sempre unidos, muito próximos um do outro. Mas enquanto a esperança une, o medo desagrega; se os gritos de ordem inspiram, as balas de borracha aterrorizam. Por isso é impossível atuar politicamente fundado apenas na esperança, é muito fácil passar de um para o outro. Porque os dois são frutos das contingências externas e de nossa impotência para atuar sobre elas.
Mas qual é o estado de ser daqueles que vivem neste afeto (bio)político? Qual é a sua maneira de existir? O medo nos leva à servidão e, pior, o escravo se torna tirano de si e dos outros. Quem está inseguro pede por segurança. Por isso, as derivações deste afeto são as piores possíveis: é do medo que nasce a superstição (“Isso só pode ser um castigo de Deus”), a ignorância (“não tem o que fazer, política não tem jeito”), a tirania (“no tempo da ditadura é que era bom”), o ódio (“Morram todos, que tudo se exploda!”).
O moralista está assustado e confunde sua utopia com a conduta ideal e necessária dos homens! A impotência do medo cria fascistas, moralistas, padres, homens da lei da pior estirpe. Desta forma, nasce uma cartilha de como os homens deveriam ser, baseando-se em a prioris impossíveis de serem conquistados.
Obediência a falsos preceitos, servidão voluntária a falsos deuses, tudo isto institui um campo político limitado de tristeza e frustração. Aqueles que defendem mais leis, mais polícia, mais “ordem”, mais bons costumes, são aqueles que confundem a paz com a ausência de guerra, e pior, liberdade com medo generalizado.
Vemos então que existem dois tipos de paz: a paz da liberdade e a paz do medo. São duas concepções completamente diferentes pois fundadas em afetos completamente diferentes. Isso acontece porque a ação política e o medo paralizante simplesmente não combinam, estão colocados em lugares diametralmente opostos. São antíteses plenas.
Então nos perguntamos: como foi que fundamos uma sociedade inteiramente baseada neste sentimento? Não havia outra opção? Não havia nenhum outro afeto disponível? Será que a melhor opção é todos desconfiarmos uns dos outros? Viver se escondendo, se protegendo se armando? Não é possível, deve existir outra possibilidade, outras sociedades que não tenha o medo como fundamento.
Temos medo uns dos outros, não sabemos conversar, decidir, entrar em acordo. Este é o argumento que sempre usam: o povo não sabe decidir, não sabe o que quer. É necessário alguém para mediar os desejos da população. Melhor votar, não é? Votar em alguém preparado. Mas o voto é apenas uma maneira de tercerizar a responsabilidade. Ou melhor, sejamos diretos: o voto é um modo de escolher a quem vamos servir!
Este não é o caminho que mais no interessa. O que é uma ação política plena? É quando tomamos parte, mesmo que em nossa potência singular e limitada, naquilo que nos cabe para operar mudanças concretas. Claro, o bom voto já é um bom começo, mas é possível fazer isso em um conjunto muito mais amplo, nas cidade, nas ruas, nos bairros, em casa, onde vamos, com quem falamos, de quem compramos. Todo o agir político se faz no cotidiano, nas relações diárias. O ato político é para nós a ponta de um iceberg que se eleva acima do medo, da esperança e do ódio! É um desvio por realizações mútuas, de confiança de crescimento recíproco. Toda ação é uma ação em busca de realização plena da potência, é a flor de lótus que emerge de um lodaçal de insegurança e assujeitamento.
O medo é uma estratégia, mas um outro programa político muito mais coerente e conveniente pode ser inspirado em Espinosa e Negri: transformar a tristeza da política em um ato alegre, amoroso, capaz de transformar o medo da servidão (superando até mesmo a esperança) em um ato de constituição de sujeitos políticos que se sentem seguros entre si e em seu agir em conjunto.
Queremos sair do medo, ultrapassar a esperança para, seguindo uma linha reta, chegar na alegria. Sim! A libertação, aos olhos dos dominados, vem de fora; mas aos olhos dos que lutam, vem de sua própria ação no mundo. A alegria cria um campo comum de ações, sem desfazer-se da diferença, sem homogeneizar, sem limitar! Uma política potente nutre-se de alegria e de amor, transvalorando o campo dos afetos e permitindo novos modos de vida!
A paz de quem vive na insegurança de ameaças não permite nascer uma comunidade, na melhor das hipóteses será uma solidão acompanhada. O medo torna o conjunto singular de seres humano em um rebanho e impede a ação política. Para agir precisamos vencer o medo e para vencer o medo, precisamos enfrentá-lo. Eis nossa tarefa mais urgente.
Vocês são muito bons!!! Parabéns pelo site.
Republicou isso em A festa é boa para pensar.
Excelente texto!