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Nos textos anteriores, vimos dois momentos do conceito de Eterno Retorno. O primeiro deles, o Cosmológico, abria uma nova possibilidade de experimentação que levou diretamente ao segundo, o Ético, que fazia uma intervenção à vida decadente clamando a urgência do pensamento seletivo. Entretanto, é em Zaratustra que encontraremos a maior aceleração do conceito na obra de Nietzsche.

O Eterno Retorno articula “Assim Falou Zaratustra”, aparecendo em todas as quatro partes e é uma das chaves para a boa compreensão do livro todo. O próprio Zaratustra só estará preparado e só formulará o conceito com toda a afirmação de que é capaz no final do livro. Assim, ele descerá a montanha para anunciar a boa-nova, se perderá, será vencido pelo pensamento uma primeira vez e voltará para reclusão, descendo uma última vez antes de cantar o canto ébrio da eternidade. Mas será o Eterno Retorno do Mesmo tão pesado assim?

Podes dar a ti mesmo teu mal e teu bem e erguer tua vontade acima de ti como uma lei? Podes ser de ti mesmo juiz e vingador de tua lei?”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Primeira parte, Do caminho do criador

Eis uma das necessidades da afirmação: Ser para si mesmo a própria medida! Zaratustra interroga seus ouvintes para atestar que eles não estão prontos.

Tens de querer queimar em tua própria chama: como te renovarias se antes não te tornasses cinzas? ”

Assim Falou Zaratustra, Primeira parte, Do caminho do Criador

Como vimos, o Eterno Retorno é um conceito que tem a potência de levar o homem às últimas consequências de seus atos. Mas não será ainda suficiente se não houver uma generosa dose de afirmação. A primeira contestação da plena afirmação será a ideia de Mal.

Assassinatos, roubos, guerras, infortúnios demais! Isso repetido infinitas vezes? “Por Deus, não! ” é o que diriam os homens. Pois é o cerne desta ideia que devemos atacar para enxergar no Eterno Retorno a maior das bênçãos. Nietzsche diz, “sabe o que é para o homem o mal? O acaso, o incerto e o súbito”. Encontrar uma essência para o Mal, justificar a dor e buscar a abolição do sofrimento não passam de maneiras de se submeter ao próprio mal, à dor e ao sofrimento. Já que estes são indissociáveis da existência. Para superar o Mal, aprendemos com Zaratustra, dizei Sim.

Redimir o que passou e transmutar todo ‘Foi’ em ‘Assim eu quis! ’ – Apenas isso seria para mim redenção”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Segunda parte, Da redenção

Querer liberta, diz ele. Mas o que ainda aprisiona a vontade dos homens? Querer outra coisa que não o que é. Todo “Foi” aprisiona. É um enigma, um fragmento, um horrível acaso. Transformar o “assim foi” em “assim em quis” leva a experimentar um instante imenso, onde a vontade se une à necessidade.

– Melissa McCracken

Afirmar o acontecido como o único curso possível das coisas. Suspender o julgamento sobre a existência para melhor agir. A moral nunca leva à ação. Mesmo assim, para alguns, o eterno retorno será o mais pesado dos pesos, enquanto para outros será uma verdadeira possibilidade de tornar-se leve. Estes amam a vida o suficiente para não desejar outra coisa que não ela.

Não é fácil ser um afirmador, muito menos um criador. Assim, o próprio Zaratustra chega à metade de sua história retornando à caverna. “Meus frutos estão maduros, mas eu não estou”. Para que serve um pensamento que não leva à ação, que não causa uma ruptura, que não inaugura um novo modo de vida? Assim, chega o Camelo, aquele que carrega a vida como um fardo nos ombros:

Pesadas são, para ele, terra e vida; e assim quer o espírito de gravidade! Mas quem quiser ficar mais leve, tornando-se pássaro, tem de amar a si mesmo: – é o que ensino eu”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Terceira Parte, Do espírito de gravidade

Aqui chegamos à questão central. “Aprender a se amar. Entre todas as artes, é antes a mais sutil, a mais astuciosa, a derradeira e mais paciente”. Carregamos de berço pesados valores, “bem e mal”, nos dizem. A vida é um fardo. Corre, foge! E assim carregamos “em duros ombros e por ásperas montanhas”.

Mas apenas o homem é um fardo para si mesmo! Isso porque carrega nos ombros muitas coisas alheias. Tal como camelo, põe-se de joelhos e deixa que o carreguem bastante”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Terceira parte, Do espírito de gravidade

Ora, o Camelo só não suporta um peso, o do Eterno Retorno. Pois o essencial desse pensamento é aprender a não morrer em vida. Fazer da existência algo que valha a pena se repetir infinitas vezes depende disso: de um amor incondicional à existência. Se devemos correr, é das bocas que só escarram. Se devemos fugir, é daqueles que se contentam com tudo. De um lado abolir o juízo, de outro criar e brandir seus próprios valores.

’Este – é o meu caminho, – qual é o vosso?’ assim respondi aos que perguntavam pelo “caminho”. Pois o “caminho” – não existe!”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Terceira parte, Do espírito de gravidade

Surge o Leão. Para ir além de si mesmo, o homem deve aprender a não se curvar, a recusar o peso dos valores impostos de agora. Sair da Moral em direção à Ética (veja aqui) implica a recusa como primeiro momento de afirmação. Afirmação de si. Querer a si mesmo.

Querer liberta: pois querer é criar: assim ensino eu. E somente para criar deveis aprender”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Terceira parte, Das velhas e novas tábuas

Para que o Eterno Retorno tenha toda a potência de que é capaz, esta ideia de querer libertador é fundamental. O tipo de vontade que cultivarmos será a medida final para nos tornar servos ou senhores deste pensamento. Só quem é capaz de dizer ‘Sim! ’ é capaz de tornar leve o maior dos pesos. Só quem é capaz de afirmar essa força de criação que somos nós, poderá dançar a música da eternidade! Assim, chegamos à ideia mais potente de querer, de amor, de afirmação:

A dor também é um prazer, a maldição também é uma bênção, a noite também é um sol – ide embora, ou aprendereis: um sábio também é um tolo. Dissestes alguma vez Sim a um só prazer? Oh, meus amigos, então dissestes também Sim a todo sofrimento. Todas as coisas são encadeadas, emaranhadas, enamoradas, – e, se um dia quisestes duas vezes o que houve uma vez, se algum dia dissestes ‘tu me agrada, felicidade! Vem, instante’, então, quisestes que tudo voltasse!”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Quarta Parte, O canto ébrio

O encadeamento necessário de todas as coisas faz com que um sim a um único instante se torne um sim a toda a eternidade, eis a conclusão de Zaratustra! Nietzsche ao final da vida, dirá também:

Se nossa alma, uma única vez, vibrou e ressoou de alegria como uma corda, todas as eternidades colaboraram em determinar este único fato – e neste único instante de afirmação, toda a eternidade se encontra aprovada, resgatada, justificada, afirmada. ”

Nietzsche, Fragmentos Póstumos

De nada vale uma afirmação parcial. Amor-fati é o único fundamento possível para o Eterno Retorno. Afirmação incondicional à vida, ela mesma, sem recortes, excertos, negações. A afirmação de cada aflição, de cada dor, deve ter a mesma intensidade da afirmação de cada alegria, cada júbilo, cada amor. A vida se liga diretamente àquilo que pode, à sua potência, quando deixa de pensar em outros mundos, quando para de desejar outro curso para o que foi, quando finalmente aprende a enxergar como belo o necessário nas coisas.

Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, emaranhado, enamorado, oh, assim amais vós o mundo, – vós, eternos, o amais eternamente e a todo tempo: e também a dor dizeis: passa, mas retorna. Pois todo prazer quer – eternidade!”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Quarta Parte, O canto ébrio

Zaratustra, ao lado de seus animais, canta a alegria ao final de sua jornada. Deixa sua caverna atrás de si. Faz um apelo à afirmação. Ele vê o homem preso ao cotidiano de sua vida medíocre. O pensamento do Eterno Retorno tomado em toda sua potência destrói o homem cansado e o leva à ação! Eis o que sempre esperamos, um pensamento que mudasse nossas vidas! Surge uma nova ética, e agora a busca pela melhor maneira de viver engloba a busca pela eternidade. O Eterno Retorno procura dar livre curso à vontade criadora, à Vontade de Potência que somos nós.

Vós, homens superiores, aprendei, pois, o prazer quer a eternidade – o prazer quer de todas as coisas a eternidade, quer profunda, profunda eternidade! ”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra.

Texto da Série:

Eterno Retorno

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Marcos Vinicius (Maark)
Marcos Vinicius (Maark)
7 anos atrás

Eu realmente estava com saudades desse tipo de texto.
Maravilhoso e esclarecedor. Um tremendo apoio para maior compreensão desse livro que é (talvez) o mais difícil de Nietzsche.

Rodrigo
Rodrigo
7 anos atrás

Eu entendo que o eterno retorno pode ser entendido como um critério ético, a idéia por trás dele é ter um critério para agir e amar esta vida como ela é, já que um critério baseado no alem mundo o que faria seria desvalorizar este mundo. Pois bem tudo isso soa bonito, acho que o eterno retorno só seria um critério interessante para alguém que tem as oportunidades de agir conforme ele, é dizer no caso um ser que nascesse sei lá numa sociedade do tipo democrático, mas em relação as pessoas que não podem ter essa liberdade? Por exemplo… Ler mais >

Raul Rosa
Raul Rosa
7 anos atrás

Fantástico.

Kenia Eleutério da Silva
Kenia Eleutério da Silva
7 anos atrás

Entendi os textos como algo que retorna, mas que temos as eternas e inúmeras possibilidades de mudar com nossos atos tais retornos, tais tendências…não necessariamente uma repetição ao pé da letra…eternamente, mas a possibilidade de criar repetições cada vez melhores mudando as escolhas…perdoem-me se entendi errado. Em química pela Lei da Conservação da massa – “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” – Como se estivéssemos “aprisionados na eternidade”, mas como na matemática em uma “análise combinatória”, poderíamos modificar de inúmeras formas diferentes estes retornos eternos.

Marcelo
Marcelo
3 anos atrás

Simplesmente amei, e também me ajudou bastante a compreender um livro chamado occe homo.