A melancolia (podemos chamá-la de depressão), juntamente com a flutuação de ânimo (que podemos chamar talvez de ansiedade) são os grandes males do nosso século! Sim, porque como afetos (bio)políticos, podemos dizer que estão esparramados em nossa sociedade de modo amplo, inegável. Fomos engolidos pela tristeza, mastigados pelo medo, digeridos pelo ódio. Tudo o que resta é a melancolia…
Nossa proposta nessa série é entender de que maneira estes afetos se tornam modos de vida, a maneira como eles se comunicam e de que modo eles fundam micro e macropolíticas. Há, diz Safatle, um circuito dos afetos, nós diríamos: todo afeto é (bio)político. Sim, a melancolia pode ser uma proposta de governo, infelizmente.
Na tradição, os médicos gregos diziam que a saúde e a doença do corpo eram reguladas por quatro humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Esta divisão, iniciada por Hipócrates, ficou conhecida como Teoria Humoral, sendo a bílis negra, fria e seca, responsável pelos estados de melancolia, altamente idealistas e fechados em si mesmos. Na melancolia nos recolhemos, criamos outros mundos, nos afastamos deste e, por fim, nos afastamos de nós mesmos.
Para compreender os afetos, Espinosa se pergunta primeiramente o que pode o corpo? Ora, nós já sabemos, o corpo é um grau de potência, uma capacidade de afetar e ser afetado, ele é a transição constante para uma maior ou menor perfeição. Então, continua o filósofo holandês, o que podem os afetos? Aonde eles nos levam? E de que maneira podemos lidar com eles? Sobre a Melancolia, responde Espinosa:
O contentamento nunca é excessivo, mas sempre bom, enquanto, inversamente, a melancolia é sempre má“
– Espinosa, Ética IV, prop. 42
Primeiro diagnóstico evidente: a melancolia é sempre má! Na melancolia a potência de agir do corpo inteiro é refreada! Não apenas uma parte, mas todo ele! Por inteiro, por completo. Se somos uma capacidade de afetar e ser afetado, maneiras de expressão da potência de existir, então na melancolia toda esta potência está impedida. Este afeto é um desdobramento da tristeza, que diminui a nossa potência de pensar e de agir. Na tristeza, algo se perde, na melancolia, algo se consolida. Sendo assim, entendemos que na melancolia mais nada é possível, entramos em um estado de servidão do qual é muito difícil sair.
Vemos, assim, que a mente pode padecer grandes mudanças, passando ora a uma perfeição maior, ora a uma menor, paixões essas que nos explicam os afetos da alegria e da tristeza. Assim, por alegria compreenderei, daqui por diante, uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca, compreenderei uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor. Além disso, chamo o afeto da alegria, quando está referido simultaneamente à mente e ao corpo, de excitação ou contentamento; o da tristeza, em troca, chamo de dor ou melancolia. Deve-se observar, entretanto, que a excitação e a dor estão referidos ao homem quando uma de suas partes é mais afetada do que as restantes; o contentamento e a melancolia, por outro lado, quando todas as suas partes são igualmente afetadas“
– Espinosa, Ética, III, prop 11, esc
Espinosa faz esta denúncia em sua Ética: afastar a tristeza é um dever ético! Quebrar com o estado melancólico é uma urgência! Não devemos nos manter neste estado por muito tempo, ele nos torna confusos, nos impede o pensamento, nos arrasta para cantos dos quais se torna cada vez mais difícil sair. Se a mente e o corpo podem sentir tristeza ou dor em determinados momentos, isso é muito diferente do estado melancólico onde toda a potência do corpo está impedida de agir. Não, precisamos fazer alguma coisa, as coisas não podem ficar assim.
Nada, certamente, a não ser uma superstição sombria e triste, proíbe que nos alegremos. Por quê, com efeito, seria melhor matar a fome e a sede do que expulsar a melancolia? Este é o meu princípio e assim me orientei. Nenhuma potestade, nem ninguém mais, a não ser um invejoso, pode comprazer-se com minha impotência e minha desgraça ou atribuir à virtude nossas lágrimas, nossos soluços, nosso medo, e coisas do gênero, que são sinais de um ânimo impotente. Pelo contrário, quanto maior é a alegria de que somos afetados, tanto maior é a perfeição a que passamos, isto é, tanto mais necessariamente participamos da natureza divina”
– Espinosa, Ética IV, prop. 45, esc.
Quem inventou que a melancolia é um afeto bom de vez em quando? Quem foi o padre, o infeliz, o amante do poder, que disse que a criação do filósofo, do artista, do escritor, pintor, poeta, músico, é impulsionada pela tristeza? Ora, como mostramos na citação acima, apenas um supersticioso, um invejoso poderia pensar assim. Da tristeza nós tiramos apenas tristezas, não há exceção.
Mas insistem, “não há momentos em que a melancolia pode ser boa? Os grandes gênios da humanidade não foram todos um pouco melancólicos?” Pois é, alguns veem a melancolia com bons olhos, como se as maiores criações e pensamentos viessem dela. No entanto, Espinosa, como filósofo da alegria, não pode pensar assim. Pelo contrário, para o filósofo holandês este afeto pernicioso é perigoso e danoso, e qualquer um que pense diferente contribui para uma política da impotência.
Mas vamos então supor uma tristeza, uma das grandes, que leve o ser humano a um estado melancólico. Ora, imaginemos uma tristeza, a pior delas, o que acontece quando ela nos abate? Algo se afasta de nós, a própria realidade fica distante, nos tornamos versões piores de nós mesmos, o horizonte se fecha. O corpo é uma complexa relação de vários outros corpos, na melancolia nos perdemos de nós próprios. Mas o corpo é esta relação que procura manter a sua relação de movimento e repouso, durar, continuar existindo. O corpo é conatus! Esforço para continuar existindo, sendo assim:
A mente esforça-se, tanto quanto pode, por imaginar aquelas coisas que aumentam ou estimulam a potência de agir do corpo”
– Espinosa, Ética III, prop. 12
Uma mente melancólica procurará, primeiramente, imaginar como sair daquilo. De que forma ela faz isso? Ora, afetada de tristeza será da maneira mais desordenada e confusa possível (veja aqui). Primeiramente oscilará entre a esperança e o medo, não sabendo exatamente o que pode acontecer, pode chegar enfim ao desespero. Poderá odiar o objeto perdido, criando toda sorte de acusações imaginárias. Mas enfim, a mente (e o corpo) apenas está reagindo à perda de algo que lhe trazia alegria. Portanto:
Quanto maior é a tristeza, tanto maior deve ser a parcela de potência de agir do homem que ela contraria. Portanto, quanto maior for a tristeza, tanto maior será a potência de agir com a qual o homem se esforçará por afastar a tristeza” – Espinosa, Ética III, prop. 37, esc
Para Espinosa, mente e corpo são a mesma coisa, e o ser humano resiste à tristeza e à morte. Quanto maior o estado de melancolia, maior a tensão entre o conatus e seu esforço para preservar suas condições de duração. A produção melancólica é assim uma reação à dor. Mas não é a tristeza que cria ou que é inspiradora para criar, muito pelo contrário! É a parte saudável em nós que procura dar conta da vida apesar da impotência! É nosso conatus que resiste, procurando alternativas para não mais manter-se melancólico.
As tentativas de criação do desejo são prenúncios de sua libertação. O desejo tateia linhas de fuga timidamente, porque não quer de modo algum manter-se neste estado triste e deprimido. Procurando entender o que aconteceu, a criação melancólica é um espernear do conatus lutando contra a servidão. Quanto maior o tombo, maior o esforço. Por isso, na melancolia, nos dedicamos a criar poesias, músicas, desenhos, cartas. Procuramos entender, procuramos resistir.
Mas a pergunta ainda vale: Como da impotência pode nascer uma grande obra de arte? Como pode o melancólico passar de uma tristeza profunda à euforia da criação artística?
Quando a mente considera a si própria e sua potência de agir, ela se alegra, alegrando-se tanto mais quanto mais distintamente imagina a si própria e a sua potência de agir”
– Espinosa, Ética III, prop. 53
A alegria eufórica da criação melancólica é o desejo que resiste à tristeza e procura fontes de felicidade (perdidas ou nunca encontradas). Por isso, quando cria, a mente se alegra, pois contempla a sua potência de agir. Mas, a potência de criação na melancolia é frágil, muitas vezes ressentida, feita de modo imprudente, impulsivo; não é um ação, trata-se muito mais de uma paixão. A mente e o corpo procuram restabelecer, recompor as relações que o mantinham potente e disposto. Mas…
O conhecimento do mal é um conhecimento inadequado”
– Espinosa, Ética IV, prop. 64
Ou seja, enquanto a mente e o corpo permanecerem neste estado, o remédio administrado (a criação artística) corre o risco de ser ao mesmo tempo o veneno que debilita (a própria melancolia). A melancolia é efeito, ela não tem nada de comum conosco, sempre criamos resistindo à tristeza e não podemos correr o risco de nos apaixonarmos pela melancolia e seus efeitos. O que nos faz criar é a própria força de nossa essência, nosso conatus, não a tristeza…
Este primeiro momento mostra um desejo confuso que cai em sua própria servidão procurando escapar dela. O melancólico fica feliz com o remédio/veneno que administra para si mesmo, achando que são a tristeza, a melancolia, os afetos tristes que o fazem criar, sendo que é ele mesmo, a sua parte ainda saudável. Sua criação é um narcótico, não os meios de chegar à liberdade! Ele contempla sua potência de criação, mas ainda está confuso, não entende as causas que o levaram a esta condição e não possui as ferramentas para sair dela. Chegamos em um ponto importantíssimo: a saída da tristeza e da melancolia não se dará pelos afetos tristes. Por isso Espinosa diz:
O desejo que surge da alegria é, em igualdade de circunstâncias, mais forte que o desejo que surge da tristeza”
– Espinosa, Ética IV, prop. 18
Apenas um afeto mais forte pode vencer a melancolia, que é um afeto fortíssimo na direção da impotência, este afeto contrário é a alegria. A criação provinda da tristeza melancólica é o que mantém o “gênio” cativo de sua “genialidade artística”. Não é isso que queremos, definitivamente. Espinosa nos mostra que através dos afetos alegres, somos capazes de pensar e agir melhor, encontrando as saídas deste estado. Ou seja, é pela alegria que criamos obras de arte verdadeiramente potentes e libertadoras!
Na impotência, qualquer mínimo movimento pode ser saudado como grande reação e ser aplaudido de pé. A melancolia é um afeto (bio)político pernicioso, sedutor! Ele é bom para ser vendido aos pretensos “homens profundos”, por aparentemente ser de uma superioridade ímpar. Mas a dinâmica melancólica é irracional, a alegria eufórica da criação triste comporta desmedidas e desmesuras, sendo uma perigosa armadilha. É fácil tropeçar e cair com estes afetos! É o melhor que o melancólico pode fazer, e não o recriminamos por isso, mas certamente esta não é a linha de fuga criativa que possibilita novos modos de vida.
A impotência melancólica faz parecer que “um homem com uma dor é mais elegante” (Leminski). Mas agora já temos ferramentas o bastante para dizer: a profundidade melancólica é um embuste! Não é com ela que crescemos, mas apesar dela! Espinosa procura por um modo de vida que seja capaz de uma política baseada na alegria e no amor, a melancolia é capaz de dar conta disso? Não, mil vezes não! Como afeto (bio)político ela é uma das mais poderosas superstições que circulam pela nossa sociedade. Um afeto triste não possui as chaves para sair de sua própria prisão!
Nossa sociedade fabrica melancolia, ela seduz, fascina com uma pretensa superioridade, encanta com uma falsa profundidade. O homem fica cativo de sua própria “capacidade intelectual”, seu “gênio artístico que sofre demais por sentir demais”; a torre de marfim intelectualoide é uma cela apertada, mas protegida, onde o melancólico pode se julgar superior a tudo e todos. Enfim, Espinosa ensina a não nos apaixonarmos pela melancolia e seus efeitos, mas procurar por meios para sair dela.
À medida que a mente compreende as coisas como necessárias, ela tem um maior poder sobre os seus afetos, ou seja, deles padece menos”
– Espinosa, Ética V, prop. 6
O pessimismo e o niilismo não são caminhos seguros, dirá Espinosa. Não é à toa que o filósofo propõe uma terapêutica dos afetos, a fim de afastar a tristeza, o medo, o ódio e a melancolia. Esta última é o grau máximo de tensão entre o conatus e a vida. Quando a melancolia se instala, é como se toda a nossa essência gritasse, procurando por alternativas! Este grau de tensão pode ser, como bem disse Nietzsche, a possibilidade de uma virada do niilismo passivo para o niilismo ativo. O desejo procura medir seus afetos e encontrar outros mais potentes! É o fim da impotência, é um atravessamento, quando o próprio esgotamento ultrapassa seus limites e se abre para outras possibilidades. Onde mais elas poderia estar senão nos bons-encontros? É a chance de virar a mesa e passar uma rasteira na melancolia, que sedutoramente nos matinha presos em sua teia. Sair da servidão e encontrar a liberdade, este é o imperativo ético de Espinosa. A tristeza, o medo, o ódio, a melancolia, devem ser compreendidos, mas não devem ser procurados, muito menos amados e admirados.
Nos alegramos, como diz Epicuro, ao ver como podemos resistir à dor e fazer um bom uso dela. Ora, então nos alegraremos ainda mais ao ver que somos capazes de sair da melancolia, que cresce por entre os vãos de nossa sociedade impotente e triste. A Ética de Espinosa jamais fará odes à tristeza, muito menos ao seu efeito mais deletério: a melancolia.
Eita, meu comentário foi apagado? Não creio…
Anita, não apagamos seu comentário, algo deve ter dado errado na conexão
Puxa, que pena! Eu ainda conferi e ficou ali… mas enfim… Não vou conseguir reproduzir da maneira que havia comentado. Mas te questionava se isso de querer apenas buscar alegria – essa alegria de que me pareceu o texto – se isso não é negar um aspecto sombrio – melancolia – que faz também parte do ser. Me pareceu – com toda franqueza – meio auto ajuda. Acho que de fato, ninguém busca pelas dores, mas quem não as têm? Aprender a lidar com isso através da arte, ou de um estudo, não vejo como ruim. O Jung por exemplo,… Ler mais >
Anita, acho sua experiência extremamente válida, mas fico pensando quantas coisas não se perderam na melancolia, mesmo que a gente resista e fique feliz de superá-la
Espinosa não nega a dor, apenas imagina que seria mais interessante se ela não fosse o primeiro plano de nossas vidas.
Entendo. Ainda assim penso – talvez até “erroneamente” – que imaginar algo que não é, digo nesse sentido da vida como se apresenta, é também uma forma de negar aquilo que a vida é. E a vida certamente (infelizmente?) não é feita apenas de alegria.
De todo modo, foi válida a leitura e o que me fez pensar.
Abraço!
Lembrei agora que vcs nunca responderam meu e-mail….
El 14 feb. 2018 15:03, “Razão Inadequada” escribió:
> Rafael Trindade posted: “A melancolia (podemos chamá-la de depressão), > juntamente com a flutuação de ânimo (que podemos chamar talvez de > ansiedade) são os grandes males do nosso século! Sim, porque como afetos > (bio)políticos, podemos dizer que estão esparramados em nossa sociedad” >
Seria Espinoza um anti Schopenhauer por antecipação? Perdoem a brincadeira mas quando li o texto lembrei do Schopenhauer, será que existe alguma relação entre as obras, imagino que de antagonismo, mas será que Schopenhauer leu Espinoza, ou será que estou falando besteira?
Eu gostei muito do texto. Acho que a perspectiva fica bem clara e penso até que concordo com ela. Só me fica um pensamento daqui de onde estou – sou psicóloga e muito mais ainda psicoterapeuta – um efeito colateral da nossa cultura que, embora como você tenha colocado coloca a melancolia como algo especial e superior, isso é pra uma pequena parcela das pessoas, eu acredito. Pra maioria a tristeza é abominada, proibida nessa “sociedade do desempenho”. Não digo de uma melancolia aprisionadora, mas a tristeza tem sua função e essa fuga, esse horror das pessoas tem complicado muito.… Ler mais >