O mundo verdadeiro, inalcançável, indemonstrável, impossível de ser prometido, mas, já enquanto pensamento, um consolo, uma obrigação, um imperativo (O velho sol, no fundo, mas através de neblina e ceticismo; a ideia tornada sublime, pálida, konihsberguiana.)”
– Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, cap IV
Foi Platão quem fundou outro mundo para controlar este! O reino das ideias oferecia critérios para discernir as boas das más cópias. Uma Ideia como reguladora das vidas. O niilismo negativo ofereceu conforto, alento, para aqueles que temiam o plano de imanência: o vir-a-ser, o niilismo. Mas a bola de neve do niilismo começa a rolar a encosta e crescer, chegando ao ponto em que o niilismo negativo já não pode oferecer todas as respostas e não pode recusar a sua vontade desenfreada de pureza e verdade!
O niilismo negativo ofereceu sentido, organizou as cópias, mas sua vontade de pureza e abstração alimentou a Vontade de Verdade! Quando o pensamento que procura pelo puro já não pode mentir para si mesmo! Então tudo desaba… As religiões não dão mais conta da realidade. Deus está morto! Se o filósofo aspirou subir, chegar aos cumes, às alturas, depois de contemplar as estrelas e não encontrar nada de quintessência ou Deus, então seu tombo é enorme, a desilusão também.
Onde está Deus? Onde está o reino das Ideias? Onde está a nossa ficção organizadora? Afinal, o plano de imanência niilista nos assusta, nos assombra, abala tudo ao nosso redor. Nosso segundo personagem conceitual nos salvará novamente do caos: Kant. A relação do filósofo iluminista de Königsberg com o niilismo é a mesma que a platônica, ele procura fundamentos, procura por uma âncora que nos impeça de ser arrastados pelas correntes do niilismo. Deus está morto, sim, mas nossa vontade de deuses e fundamentos ainda está bem viva. É difícil aceitar sua morte, então é necessário substituí-lo o mais rápido possível.
Kant encarna o espírito iluminista (niilista reativo) de seu tempo e o transforma em filosofia! Trabalha diligentemente neste sentido. Seu pensamento, na realidade, traduz pura e simplesmente as transformações da sociedade capitalista de sua época. A fé em Deus é substituída pela fé na razão, a fé em outro mundo é substituída pela fé no progresso, na tecnologia, no futuro. Os fundamentos se mantêm, estamos seguros, chegaremos lá! Kant dá um passo para trás, ele se proíbe de encarar o abismo dos simulacros, retorna para a consciência, faz a revolução copernicana e instaura um tribunal da razão. Agora a Razão brilha como um Sol, soberana, ela iluminará nosso caminho! Ora, por quê? Por medo! Ele não consegue encarar o abismo, não consegue ir além de onde é seguro. No mar do niilismo ele quer ficar no raso, com boias, para não se afogar. Um tribunal da razão lhe dará todas as chaves para não se perder. O Entendimento fará a síntese dos dados para formar o conhecimento e a razão dominará..
Kant é tão cheio de sinuosidades. Um dos motivos é o fato de ele ter instaurado e levado a extremos o que nunca fora levado em Filosofia até então, que é a instituição de tribunais”
– Deleuze, Abecedário, K de Kant
Para isso é instaurado um tribunal onde se encontrará as bases do conhecimento, os fundamentos do entendimento para se pensar corretamente. Para além dos dados sensíveis que recebemos e das categorias que nos permitem formar o entendimento, não podemos ir além. Está vetado transpor este patamar. Para além dos fenômenos, que nos chegam através dos sentidos, está o númeno, a coisa-em-si, a qual não temos acesso. Ufa, que bom, Kant nos salvou! O mundo torna-se indemonstrável, inacessível, para sempre! Temos nossas categorias de organização que nos permitem pensar, mas apenas para nós mesmos, apenas para nosso mundo, apenas para nos reconhecermos eternamente nele.
Para levar sua empreitada adiante sem recorrer à transcendência, Kant fundamenta-se no transcendental. Para isso ele atualizará o conceito de Razão. De agora em diante ela instaura nossas possibilidades de vida, ela passa a dar as cartas. O tribunal da razão é realizado sobre ela mesma (para que ela mesma se julgue adequada, comportada, reta e pura, perfeita) e sobre a nossa vida, sobre a vida que devemos (ou ao menos deveríamos) ter.
Muito bem, é assim que nasce o Imperativo Categórico! A razão pura dá um golpe de estado e nos fornece as diretrizes para conhecer e os imperativos para agir. Se não existem mais critérios exteriores para criar uma lei universal, a razão precisa de critérios em si, uma lei que fundamente-se por si própria, sem apelar para mais nada. A razão precisa agir no querer, na vontade e na liberdade, legislar sobre ela. O Imperativo Categórico dá conta disso: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal“. Pronto! A vontade colada na Lei e no Universal. Agir como se fosse uma lei. A Vontade dobrada pelo peso do Universal, submetida a ele, ameaçada pela possibilidade de tornar-se lei, para todos em todos os tempos.
Se o mundo está como está é porque não seguimos o Imperativo Categórico, promessa de virtude, felicidade, progresso, realização. Ame teu pai porque ele é teu pai, faça a coisa certa porque é a coisa certa. Não minta porque não se pode mentir. Acreditamos piamente que se cada um fizer a sua parte, se cada um agir de acordo com as leis, pelo bem comum, então finalmente um dia chegaremos lá. Lá aonde? No Bem, no Belo, na Moral, na Justiça! Ora! Quem convidou Platão para a festa?
A crítica da moral em Kant chega exatamente no ponto de onde partimos! Praticamente sem tirar nem por! (talvez Deus tenha sido colocado no banco de reservas). O “Tu deves” continua a assombrar a filosofia! Um “tu deves” universal, válido para todos, inclemente, intolerante. Com a crítica da moral kantiana ainda não saímos da moral platônica-cristã! Era necessário ir mais fundo, mas Kant recuou, não teve coragem de levar a crítica mais longe! Enquanto Kant realiza seu trabalho filosófico a serviço de Deus e do Estado, Nietzsche grita lá do fundo da sala: “vocês ainda não foram longe o bastante! Muitos passos ainda serão dados, o niilismo ainda não foi encarado em todas as suas implicações, como problema profundo de nossas existências”. Todos tergiversaram, mais por medo do que por ignorância.
O racionalismo kantiano ainda é uma forma de escravidão. O filósofo não conseguiu criar conceitos potentes o bastante para enfrentar o niilismo, precisou recuar, recorrer ao universal, ao desejo ainda ligado à lei. Há aqui a ligação entre a pura forma, a priori, e o desejo, particular, imerso no mundo, na existência. Kant cola o desejo na lei. Submete, como fez Platão, o conteúdo à forma, o tempo móvel à eternidade. Em Kant, a potência ainda está submetida ao modelo, à forma, ao fora, ao outro.
Quando deixamos de obedecer a Deus, ao Estado, aos nossos pais, a razão sobrevêm e persuade-nos a ser ainda dóceis, na medida em que nos diz: és tu quem comanda. A razão representa nossas escravidões e as nossas submissões como tantos outras superioridades que fazem de nós seres razoáveis […] nada mais do que uma teologia renovada, uma teologia ao sabor protestante: carregam-nos com a dupla tarefa do sacerdote e do fiel, do legislador e do sujeito”
– Deleuze, Nietzsche e a Filosofia
O desejo parte em busca de sua própria servidão, de uma própria forma sem conteúdo, está cego! Continuamos lidando com o niilismo de modo embaraçado, tímido. A vontade ainda está presa no universal, no a priori kantiano. Ainda não se consegue viver a vida sem uma âncora pesada demais para permitir o movimento. O desejo deseja a sua própria repressão, porque teme as consequências de agir de outra maneira. Kant procura uma maneira de lutar contra o niilismo, mas ele se assusta com a morte de Deus, por isso procura colocar urgentemente outra coisa no lugar! O que expulsamos pela porta retorna sorrateiramente pela janela, dá um golpe e tudo retorna à normalidade. Mal percebemos o que se passou!
Não queremos avaliar uma filosofia por suas verdades ou falsidades, é muito mais interessante entendê-las como modos de vida, como sintomas de uma determinada maneira de medir e se portar diante da realidade. Até que ponto acreditar na verdade favorece nossa vida? Até que ponto acreditar que no fundo da realidade está o inerte e o imóvel nos beneficia? Em vez de “juízos sintéticos a priori”, nós nos perguntamos: “Por que a crença no a priori é tão importante?”.
Todo este aspecto me deixa horrorizado, mas é um horror fascinado também, pois é genial ao mesmo tempo. Dentre os inúmeros conceitos que Kant inventou, está o do tribunal da razão que é inseparável do método crítico. Meu sonho não é esse. Este é um tribunal do juízo. É o sistema do juízo, só que este não precisa mais de Deus. É um juízo baseado na razão, e não em Deus”
– Deleuze, Abecedário, K de Kant
Vemos como Kant é um representante privilegiado da tradição socrática-platônica-cristã. Ele apenas coloca o velho ideal em bases seguras, evitando que tudo colapse e o niilismo se revele com todas as suas forças. Nosso personagem conceitual realiza críticas e mais críticas, estranhamente, para chegar no mesmo lugar, tal como parafuso espanado. Sai Deus, mas a razão encontra exatamente os mesmos valores: o valor da verdade, o valor da moral, do em-si. Não é mais necessário ser bom para aproximar-se de deus, mas é necessário ser bom pelo bem da humanidade! É assim porque é assim. A moral não é o que nos levará para o céu, mas é o que trará a realização do homem na terra. Temos que fazer porque temos que fazer. Resultado: ainda somos religiosos! Apenas trocamos seis por meia dúzia. Não é este o caminho que queremos seguir! É necessário levar a crítica adiante, mergulhar mais fundo! Encontrar o que se encontra atrás da razão!
O simples fato de os alemães terem suportado seus filósofos, sobretudo o mais deformado aleijão do conceito que jamais existiu, o grande Kant, dá uma boa ideia da graça alemã”
– Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, cap VIII
Então…bifurcando-se dentro da mesma veia: Trocas são necessárias, estamos imprensados! No entanto, o fogo iluminista solda e liga razão-fé para buscar a grana, o trabalho, a sobrevivência neste mundo. O pensamento é brilhante. (poxa, será que tudo é redução?) Mas não podemos controlar quem amamos! E Nietzsche canta: “Quando o segundo sol chegar…”
Otimo texto, parabens!! Tinha acabado de ler a triade das criticas kantianas e fui procurar algumas contraposições de filosofos contemporaneos a ele ou posteriores, já que concordo com essa análise de que foi feita uma simples substituição da instituição que toma nossas rédeas da vida, razao como um novo deus, submetendo-nos a leis que em tese traria uma convivencia harmonica. Talvez o imperativo categorico tenha sido um grande exagero na tentativa de criar essa lei universal a qual ele tanto perseguia, porque até então, dá pra olhar os textos como uma tentativa de explicar as bases da moral e não… Ler mais >