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Pensando os personagens que decorrem do niilismo ativo, derradeira expressão da filosofia de Nietzsche, encontramos o asno dialético como primeiro afirmador. Vimos como seu Sim irrestrito a tudo não se tratava de uma superior atividade afirmativa, mas de uma incapacidade de selecionar. Em seu zurro, o asno não distingue o sim do não, ele confunde as forças, não percebe a reatividade do Sim dialético, muito menos o Sim diferencial, genético e afirmativo. É hora de seguir caminho, deixamos nosso primeiro personagem ir ao deserto e vamos ter com outro na base da montanha: Zaratustra, profeta do oriente, estrela cadente da moral.
Em suas andanças, Zaratustra demorou, mas encontrou seu povo. Os últimos homens ouviram seus discursos e compreenderam bem o seu objetivo: ser aquele que diz Sim, ser aquele que retorna eternamente dizendo Sim, ser aquele que abençoa a existência para sempre e mais uma vez. Mas nenhum deles, Zaratustra incluso, ao longo de todo o livro, parece dar conta plenamente dessas ideias. Assim falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém, conta os desafios de um profeta que chegou cedo demais, com a difícil tarefa de ensinar a suprema afirmação ao homem reativo. É, como dissemos em outro lugar, a característica principal do profeta, dizer o porvir, lançar no mundo a luz que lhe foi agraciada. No caso de Zaratustra, vemos logo no prólogo, retribuir ao Sol, estrela maior, a dádiva que lhe foi concedida.
Zaratustra desce da montanha para anunciar: Deus morreu, o Além-do-Homem virá. Diversos percalços depois, na quarta e última parte do livro, ele encontra os últimos homens, aqueles que aceitam encarar o abismo, mas cada um deles representa a reatividade em alguma forma. O Adivinho, representante do grande cansaço, do niilismo passivo, ao qual morrer parece ativo demais; o Feiticeiro, apropriando-se da dor como ópio, santo remédio para a vida fraca; o mais feio dos Homens, o reativo por excelência, sentado no trono ainda quente de Deus, mas sem dar conta da imensa tarefa; o último Papa, produto da vida como serviço, caolho, só enxerga um tipo de religião, a dos fracos, a de Deus, a da negação; o Mendigo Voluntário, tendo visto a decadência tanto nos ricos quanto nos pobres prefere ruminar com as vacas; o Andarilho e sua Sombra, fugindo da cultura inferior, tentando alcançar a atividade genérica e sem rumo da cultura superior; entre outros.
Nestas representações, Nietzsche colocou tudo o que via nos homens superiores, os últimos de uma linhagem, as consequências terminais do niilismo, homens preparados para desejar a própria decadência. Eles não estão ainda prontos para devir-ativos, esses homens confundem ainda a mensagem de Zaratustra. Eles pensam que a tarefa é substituir a reação pela ação, não entenderam o que significa substituir a negação pela afirmação. É por este motivo que devemos descobrir com Zaratustra o que é a afirmação e em que medida isso aponta para o aberto, o desconhecido, o que ainda não existe.

O Além-do-Homem não é uma superação, mas o resultado de um processo de decadência. O niilismo deve ser vencido por si mesmo. A supressão do niilismo não faz sentido em Nietzsche. O niilismo é uma qualidade da vontade de potência e, enquanto tal, ele é um meio de conhecer, de entender como as forças se relacionam, como elas podem tomar o sentido da afirmação. Nunca expiaremos do mundo o niilismo, a negação sempre estará à porta, o que lembra a ideia de Servidão em Espinosa. Os últimos homens devem descobrir a destruição ativa, que nada tem a ver com suicídio, mas com a transvaloração.

Não podemos simplesmente afirmar de antemão, como se fosse uma festa, onde tudo é lindo e espontâneo. A existência não tem sentido, o trágico se afirma por sobre nós. E, por isso mesmo, o niilismo é fundamental, pois coloca as condições em que se pode afirmar verdadeiramente, e não de qualquer jeito como o asno. Como vencer o niilismo? Estamos mais perto do que imaginamos. O niilismo ativo é a forma final em que se descobre as verdadeiras condições da afirmação. Enquanto maneira de conhecer a vontade de potência, ele nos ensina a dizer: Não.
Zaratustra sabe e ensina: amor-fati, deve-se afirmar tudo de uma só vez. Não é curioso? O profeta anuncia aos ventos, precisamos aprender a dizer Sim, mas se depara com a incapacidade do homem em dizer Não. E assim, ele retorna à caverna cheio de repulsa… o que fazer? Nossa hipótese, conjuntamente com Deleuze, é a de que Zaratustra percebe a sua nova missão e retorna aos homens para ensiná-los a dizer Não. A afirmação depende de uma negação que a sustente, tanto quanto a ação depende de uma reação que a suporte.

Será que o homem é essencialmente reativo? Será que o devir-reativo é constitutivo do homem? O ressentimento, a má consciência, o niilismo não são traços de psicologia, mas como que o fundamento da humanidade no homem. São o princípio do ser humano enquanto tal. O homem “doença de pele” da terra, reação da terra … É nesse sentido que Zaratustra fala do “grande desprezo” dos homens, do “grande nojo”. Uma outra sensibilidade, um outro devir, seriam ainda do homem?”

 – Deleuze, Nietzsche e a Filosofia

Qual a ferramenta que Zaratustra usa para acelerar o processo de decadência do homem? Para fazê-lo aprender a dizer Não para então pensar no Sim? O que faz o homem tomar responsabilidade por sua vida ao ponto de tentar expurgar toda a negação? Ora, o Eterno Retorno! Como ciclo acelerado, expulsando a negação juntamente com os negadores e impulsionando a afirmação e os afirmadores. Os últimos homens não suportariam permanecer os mesmos se os confrontássemos com a imensa pergunta: “suportarias viver essa mesma vida inúmeras vezes por toda a eternidade?”.
O eterno retorno ético é esta forma que transforma o niilismo em inimigo de si mesmo, em combustível e comburente de uma mesma reação. Fazendo da capacidade seletiva do homem, de organizar seus encontros, de cuidar de sua grande saúde, a verdadeira necessidade. Sob a ideia da eternidade, o homem pequeno é constrangido e, como diz Deleuze, não retorna. Fica preso ao pequeno e claustrofóbico momento de uma vida triste, esvaziada de sentido. O eterno retorno faz do niilismo um niilismo completo, pois faz da negação uma negação à voz de comando das forças reativas. É um conceito que incita à criação, excita à ação e faz o Não romper seu pacto com as forças reativas! É a grande descoberta de Zaratustra – o Não é tão importante quanto o Sim.

Um devir-ativo, não sendo nem sentido nem conhecido, só pode ser pensado como produto de uma seleção. Dupla seleção simultânea: da atividade da força e da afirmação na vontade. […] O pensamento do eterno retorno elimina do querer tudo o que cai fora do eterno retorno, faz do querer uma criação, efetua a equação querer = criar.”

 – Deleuze, Nietzsche e a Filosofia

Vimos como o asno era também camelo, pois bem, o eterno retorno será o seu deserto. E, nele, ele se transformará. Descobrirá a potência do Não, arremessará para longe o peso que até então implorava para carregar. Zaratustra, sob o signo do leão, nos ensina que para afirmar é preciso saber negar. O zurro do asno não é mais afirmativo do que o rugido do leão, ele só parece ser: I-A, I-A, I-A, que em alemão soa como sim, sim, sim; é na verdade Não, Não, Não, a quem tem bons ouvidos. Leão é o animal que enfrenta a moral, que ruge face aos valores incondicionados e indiferenciados, que enfrenta a negação em sua pureza ascética, que precisa descarregar a existência para poder afirmar.
Zaratustra nos faz entender que a afirmação não pode ser desligada de duas negações. Uma primeira, que a precede; e uma segunda, que a segue. A primeira dirige-se àqueles que nos querem carregar com seus pesos, seus valores; e a segunda é aquilo que nos mantém em um caminho singular, diferencial. O devir-ativo é entrecortante, ele atravessa o mundo inaugurando outras possibilidades, desferindo um golpe no antevisto. Toda diferença nasce constrangida e aprende pelo próprio processo de sua potência a se afirmar pela negação.

Nunca a afirmação afirmaria a si mesma se, inicialmente, a negação não rompesse sua aliança com as forças reativas e não se tornasse potência afirmativa no homem que quer perecer; e, em seguida, se a negação não reunisse, não totalizasse todos os valores reativos para destruí-los de um ponto de vista que afirma. Sob essas duas formas, o negativo deixa de ser uma qualidade primeira e uma potência autônoma”

 – Deleuze, Nietzsche e a Filosofia

A destruição como destruição ativa de todos os valores conhecidos é a marca do criador. Zaratustra é aquele que diz primeiro Não ao Não, rugindo como o leão, para então dizer Sim. Ele o faz de maneira bem orquestrada, conhecendo bem os seus limites, fazendo uma seleção das forças, capturando a negação para colocá-la a serviço da afirmação. Assim, ele leva o homem ao seu limite, transformando a negação numa potência de afirmar. O que está além-do-homem, nem Zaratustra pode elucidar: afirmar a afirmação é ainda o grande desafio destes personagens.
Aqui, onde entre mares cresceu a ilha,
pedra de sacrifício repentinamente erguida,
aqui acende Zaratustra, sob um céu negro,
seus fogos nas alturas –
sinal de fogo para navegantes desnorteados,
ponto de interrogação para os que tem resposta…”

– Nietzsche, Ditirambos de Dionísio

Texto da Série:

4 formas de Niilismo

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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