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Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 13

Por que demoramos tanto para falar do super-homem? Bem, não é tão fácil, este conceito tão famoso de Nietzsche (e tão mal interpretado) exige a articulação de tantos conceitos que seria impossível começar por ele. São necessárias a noção de Eterno Retorno, como ferramenta para se chegar ao Super Homem, a ideia de amor-fati, para superar todo o ressentimento, e, claro, o conceito de Vontade de Potência.

É por isso que aconselhamos antes a leitura destes textos, sem eles, jamais teríamos a capacidade de entender o que significa dizer que “o homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem – uma corda sobre o abismo” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 13). Nietzsche matou Deus, e agora quer dar fim aos seguidores dele:

“Grande, no homem, é ele ser uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 13

Busto de Apolo

As duas traduções mais comuns para Übermensch são super-homem e além-do-homem; nenhuma delas é perfeita, mas as duas trazem a ideia de superação, de alguém que se eleva, a criação de um novo tipo. Usaremos aqui os dois nomes como sinônimos. O super-homem não é uma forma superior de homem, mas é aquele que deixa a forma homem para trás, se desfaz desta casca que se tornou demasiadamente apertada.

Ao desenvolver este conceito, Nietzsche estabelece plena oposição com o europeu moderno. Este é o alvo de sua crítica, o filósofo também o chama de último-homem, ou homens-superiores. Zaratustra ridiculariza este homem apaixonado por sua cultura, suas leis e seus valores cristãos (já escrevemos aqui sobre a psicologia do homem do ressentimento). O último-homem (último poque depois dele vem o além-do-homem) é o europeu domesticado, obediente, anestesiado, entupido de cultura, aferrado ao seu tempo. Este está em franco declínio, e Zaratustra ama aqueles que querem declinar, pois é deles que nascerá o super-homem: valente, impetuoso, ativo, vivaz.

O niilismo está em seu estágio mais avançado: o homem não quer mais ir para além de si, não quer criar, “seu solo ainda é rico o bastante para isso, mas um dia este solo será pobre e manso, e nenhuma árvore alta poderá nele crescer” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 18). O super-homem é aquele que vence o niilismo, supera a forma homem, velha e desgastada, supera todos os humanismos, toda a cultura que o prende em si mesmo, é ele quem “lança a flecha do seu anseio por cima do homem” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 18). Já o homem do ressentimento é aquele cujas forças reativas predominam, ele é escravo de seu tempo, não consegue ir para além da conservação.

O homem moderno orgulha-se demais de si próprio, está acomodado, conformado, abraça seus ídolos supersticiosos como único meio de sobrevivência. Chegamos ao extremo da massificação e uniformização. Também existe, claro, muito medo e insegurança, poucos aventureiros. O valor dos valores deve ser revisto: é afundados nesta sociedade moralista que devemos viver? Não! A afirmação do super-homem é a negação dos valores vigentes: ousadia no lugar de segurança, auto-disciplina ao invés e auto-piedade, esquecimento em vez de ressentimento. Zaratustra aconselha ao homem mergulhar dentro de si para encontrar a potência necessária para declinar, deixar esta forma velha e empoeirada e criar novos valores. Isto fica claro nesta famosa passagem:

Eu vos digo: é preciso ter ainda o caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante, eu vos digo: tendes ainda o caos dentro de vós”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 18

O além-do-homem é aquele que supera todo o ressentimento, é a criança da última das três metamorfoses, é a inocência do devir. Todos os modelos são deixados para trás, todos os ídolos são quebrados: só há espaço para a criação. O homem se torna artista, dono de si; não qualquer espécie de ditador, desmentindo qualquer vínculo com o nazismo (pobres daqueles que leram duas linhas de Nietzsche e o acham pessimista ou próximo do nazismo, este ainda tem um longo percurso pela frente).

O super-homem é aquele que apreendeu o verdadeiro sentido do eterno retorno: o retorno da diferença. Há um completo domínio das forças reativas, elas obedecem ao além-do-homem, faz-se uma hierarquia. As forças que querem criar se tornam mais fortes que as forças que querem conservar. Expressão da diferença no lugar de conservação do igual. O ser passa a se afirmar na diferença, o devir é o devir da potência na diferença.

Os mais preocupados perguntam hoje: ‘como conservar o homem?’. Mas Zaratustra é o pimeiro e único a perguntar: ‘Como superar o homem?'”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 272

Escultura de Apolo

É necessário o dizer-sim do bom jogador, amor-fati, aquele que aprendeu a jogar não pelo resultado do lance de dados, mas pelo prazer que o jogo proporciona, independente do resultado. A dor o cativa, o torna mais forte, ele não amaldiçoa o sofrimento, ele o abençoa, pois é sua possibilidade de provar-se e ir além. Todo “acaso é cozinhado em sua panela”, ele pode aproveitar-se até mesmo da dor, é um tempero a mais na vida, é mais uma tonalidade que ele dispõe ao pintar novos horizontes.

Mas Nietzsche nos avisa desde cedo, não há super-homens ainda (até porque ele é muito mais uma atitude do que uma estado de ser). Nascemos em um lodaçal onde podemos nos aprimorar e tornarmo-nos mestres de nós mesmos, o super-homem é uma possibilidade circunscrita que acontece esporadicamente. Quem sabe não estamos abrindo caminho para ele? Quando a Vontade de Potência se manifesta plenamente, podemos dizer que o além-do-homem se anuncia através de nós.

Ir para além do homem é ir para além da forma homem pregada pelos humanismos que existem por aí, ultrapassar as ideias fechadas, os conceitos que mais parecem prisões. O que pode o homem? Mais nada, o melhor a fazer é ultrapassá-lo.

Após a morte de Deus, seu trono ficou vago, e foi preenchido por toda sorte de superstições. O niilismo ainda está presente, mas o além-do-homem atravessa todo este lodaçal como um raio de luz que não se deixa contaminar pelo niilismo. O além-do-homem atinge o ponto definitivo da morte de deus. Finalmente toda transcendência é deixada de lado: deus, religião, moral, lei, castração, verdade, ciência, humanismo, justiça, bem e mal.

A morte de deus foi anunciada, mas só com o advento do super-homem ela se torna definitiva. Com o declínio do último-homem, o ocaso de seus valores, o homem supera a si mesmo superando deus e todos os valores ascéticos. Por fim, a longa e gelada noite termina com os primeiros raios de sol, anunciando a filosofia do meio-dia.

O homem se acha no meio de sua rota, entre animal e super-homem, e celebra seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança; pois é o caminho para uma nova manhã./ Então aquele que declina abençoará a si mesmo por ser um que passa para lá; e o sol do seu conhecimento permanecerá no meio-dia/ ‘Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem'”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Da Virtude Dadivosa

Comentário do Autor

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Flavio
Flavio
10 anos atrás

Encantador

Claudia Cardenette
10 anos atrás

Rapazes,
Como faço para seguir o blog de vocês?
Não encontrei a ferramenta.
Adorei!!! Parabéns!
Abs.
Claudia

Rafael Lauro
Admin
Reply to  Claudia Cardenette
10 anos atrás

Oi Claudia,

Se você não tem conta no WordPress, siga pelo email ou na nossa pagina do facebook. Basta ir na página inicial do blog e procurar na coluna da direita.

Obrigado e até mais!

Luiz Mendes
10 anos atrás

Excelente, uma defesa com uma base muito bem alicerçada. Gostei.

Vinicius
Vinicius
10 anos atrás

Olá, Muito bom o seu texto, e a escolhas das imagens foi ótima. Parabéns! No entanto, tenho uma dúvida sobre um trecho. Você diz: “A afirmação do super-homem é a negação dos valores vigentes: ousadia no lugar de segurança, auto-disciplina ao invés e auto-piedade, esquecimento em vez de ressentimento.” O que me preocupa é o termo “esquecimento”. Esse conceito é fundamental na obra de nietzschiana? Não seria mais adequado aqui falarmos: ‘afirmação em vez de ressentimento’? A questão passa pela noções de que esquecimento pode, em certo sentido, ser visto como negação da própria história, e não acho que esse… Ler mais >

Victor Feres Bergamini
Reply to  Vinicius
7 anos atrás

também condeno o uso do termo esquecimento, mas no caso é a manifestação do perdão, o conceito de perdão é o que impera no ubermensch.

biahgodblessed
biahgodblessed
Reply to  Vinicius
2 anos atrás

Acredito que nesse contexto, o esquecimento é essencial; Pois, o além-do-homem ao invés de fingir perdão ou fingir uma simpatia pela pessoa que falhou com ele; Ele simplesmente procura esquecer aquilo que o irritou e incomodou com aquela pessoa. Diferentemente dos cristãos ou religiosos em geral, que forçam simpatia com seus chamados ”próximos”, em busca de imitar seus Deus de figura humanizada. Eu mesmo, por viver num lar cristão, já fui obrigado a ”perdoar” vários vacilos que fizeram comigo só para não dizerem que eu havia me perdido em ressentimento e que aquilo não era imitar verdadeiramente a cristo; Jogando… Ler mais >

Carolina Z C
Carolina Z C
10 anos atrás

Maravilhoso,me ajudou bastante!!

Filipe Caldeira
10 anos atrás

Excelente texto. Os posts aqui são sempre muito bons..

Jorelaine
Jorelaine
10 anos atrás

Parabenizo pelo texto e alerto para a seriedade e clareza das asserções devido principalmente a complexidade da hermenêutica em textos filosóficos, talvez maior do que em outros textos.

alyssonpacifico
9 anos atrás

Republicou isso em Assim Falou Alysson.

sadi
sadi
9 anos atrás

muito bom!

João Paulo
João Paulo
8 anos atrás

O vínculo com o nazismo jamais poderia ser de intenção, até porque Nietzsche era um crítico do antissemitismo, mas ele existe pelo simples fato de o Super-Homem cair como uma luva na figura do psicopata moderno: o mito do sujeito ousado, auto-disciplinado, que nunca olha para trás e que você não pode jamais julgar, sob o risco de ser rotulado como “o último homem”, “o niilista”, “o ressentido”. Cada uma das características expostas aqui poderiam ser (e foram) usadas pela propaganda de Hitler e muitos outros picaretas perigosos do século XX. Nietzsche não era bobo, ele sabia que o Super-Homem… Ler mais >

biahgodblessed
biahgodblessed
Reply to  João Paulo
2 anos atrás

Verdade, infelizmente vivemos em uma época de inversão de valores, aonde o bandido sai como moçinho simplesmente por usar as palavras que as pessoas gostam de ouvir.
:(((