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O niilismo ativo de Nietzsche nos lançou em uma busca por personagens dignos de um sagrado dizer Sim. Começamos pelo asno dialético e sua mania reativa de afirmar e, é claro, não nos serviu para muita coisa. Encontramos Zaratustra no sopé da montanha e com ele aprendemos a dizer Não para melhor dizer Sim. Olhamos para o mundo das forças e tivemos com Dionísio e sua alegria trágica. Aprendemos a colocar a negação em seu devido lugar, aprendemos a primeira afirmação, mas ainda não acabamos.

Dionísio nos introduziu à dança do cosmos tocando sua singela melodia de flauta: afirmação delicada, arte interessada, potência diferencial. O que nos desespera é também o que nos faz vivos, niilismo é só um outro nome para Vontade de Potência, ou melhor, é a qualidade que esta toma quando passa a negar. Grande aprendizado – não devemos suprimir, mas afirmar; não devemos negar, mas diferir. O deus dos excessos nos mostrou que a única possibilidade de dar sentido ao caos é implicando-se nele. Um plano é também uma base onde se colocam alicerces e se fundamenta uma construção.

Nicholas Roerich

O convite à criação não seria nada se não tivesse o polo que o correspondesse, não é? A divina afirmação nada seria se não pudesse ser ela mesma afirmada. Ou seja, buscamos um segundo sim para compor uma dupla-afirmação. Afirmação da afirmação, significa precisamente dizer Sim àquilo que se afirma necessariamente; afirmar as forças que se efetuam imperativamente. Percebam que o sentido nasce aqui. Os valores dos valores são formados pela vontade de potência, mas o sentido nós é que neles colocamos.

Quem é que diz Sim a Dionísio? Ora, sua noiva, Ariadne. Nos mitos gregos, conta-se que ela era apaixonada por Teseu. Este, por sua vez, tinha recebido do Oráculo a missão de enfrentar o Minotauro em seu labirinto. Ariadne oferece então a sua ajuda, ela tece um fio, o famoso fio de Ariadne, para que seu amado consiga se localizar no labirinto e retorne para ela. Teseu sai vitorioso, mas percebe que não ama Ariadne. No retorno da batalha, Dionísio, surpreso por Ariadne ter se tornado a senhora do labirinto, intervém nos sonhos de Teseu e o coage a abandoná-la. Então, ao fim, o deus da afirmação une-se àquela que venceu o labirinto.

Ariadne apaixonada por Teseu significa ainda a afirmação presa ao último homem. Teseu, o heroico, quer vencer os monstros. Derrotar o Minotauro em seu labirinto significa superar a vida, negar o desafio, abolir o labirinto. É o homem lutando contra o seu perecimento. Ariadne liberta significa que a potência feminina está por si mesma.

Enquanto a mulher ama o homem, enquanto é mãe, irmã, esposa do homem, ela é apenas a imagem feminina do homem: a potência feminina permanece aprisionada na mulher”

– Deleuze, Nietzsche e a Filosofia

Eis a ousada interpretação de Deleuze: Dionísio não é uma potência masculina. Ele é a representação da vontade de potência. O casal divino Ariadne-Dionísio representa não o par feminino-masculino, mas o par Sim-Sim, afirmação da afirmação. Muito se fala sobre a misoginia de Nietzsche. Sabemos que sua aversão ao feminino passa pelo problema da mulher submissa, dominada, subserviente. Sabemos que ele se apaixonou por uma mulher forte e livre, que o recusou. Pensamos que não seja o caso de o defendermos, nem de o acusarmos, pois o que pouco se fala é do papel de Ariadne em sua filosofia.

Não há misoginia nietzscheana: Ariadne é o primeiro segredo de Nietzsche, a primeira potência feminina, a Anima, a noiva inseparável da afirmação dionisíaca. Mas bem diferente é a potência feminina infernal, negativa e moralizante, a mãe terrível, a mãe do bem e do mal, queda que deprecia e nega a vida.”

– Deleuze, Nietzsche e a Filosofia

Convencidos ou não, pouco importa. Não estamos elegendo ídolos. Estamos pensando personagens afirmativos e como nos alegramos em encontrar uma mulher! Que potência não foi aí até então perdida na visão deturpada do niilismo cristão? O feminino é potência misteriosa de dizer sim ao acaso, ao múltiplo e ao devir! Ousaríamos até mesmo dizer que Ariadne é o primeiro devir-mulher da história da filosofia!

O Sim de Ariadne é um Sim ao Sim. Parece redundante, mas não é, esta dupla afirmação não é feita à toa. Dionísio, como representação da Vontade de Potência, é a afirmação do mundo sobre nós; Ariadne como nossa representação, é a afirmação singular de nós sobre o mundo. Como dissemos anteriormente, Dionísio sempre faz um convite – estamos vivos! Mas isso nada significa se Ariadne não o aceita – queremos afirmar a vida!

Dionísio:
Sê prudente, Ariadne!…
Tens orelhas pequenas, tens minhas orelhas:
enfia nelas uma palavra prudente! –
Não é preciso se odiar, para se amar?…
Eu sou teu labirinto…”

– Nietzsche, Ditirambos de Dionísio

Percebam que a imagem das orelhas remete também ao labirinto. É uma brincadeira em que Dionísio se afirma mais uma vez. O labirinto em nossas orelhas é o que nos equilibra. O fio tecido por Ariadne trança uma trama de afeto com o labirinto. Se, em um primeiro momento, ele foi usado para que seu amor retornasse, agora é ela que retorna corajosamente ao labirinto e logo percebe que não há lado de fora. Odiar a si mesma e a vida é só uma forma de tentar fugir do labirinto para acabar sendo devorada por ele mesmo assim – o niilismo é negação como qualidade de potência. Voltar, encarar, tecer, amar, encontrar o labirinto – potência feminina como afirmação que acelera um devir-ativo.

Nicholas Roerich

Essa vida de matéria e força, cruel abismo, vazio abissal, tem tudo para se tornar uma aposta transcendente e amarrar-se em um ideal transmundano. Platão, Kant, Schopenhuaer tomaram esse caminho, não conseguiram encarar Dionísio nos olhos. Chega o ponto em que devemos dizer: nós os entendemos, é realmente difícil a tarefa de encarar uma filosofia da afirmação. Entretanto, vamos, com Nietzsche, soltar essas amarras. Erguemos as velas e partimos ao mar. Deixemos as ondas bater, não navegaríamos sem elas.

Outro mito diz que Dionísio presenteia Ariadne com uma coroa de ouro, repleta de pedras brilhantes. No dia da morte de sua amada, ele lança a coroa aos céus formando uma nova constelação, Corona Boeralis. Não poderíamos pensar melhor na eternidade da dupla-afirmação. O Eterno Retorno de Zaratustra é afirmação seletiva do que acontece, uma cosmogonia tornada maneira de viver, imperativo categórico ético. Mas o eterno retorno de Ariadne é um pouco diferente. Ela conquista a eternidade pelo devir-ativo, logo, expulsando a negação de qualquer possibilidade de retorno.

O sim conjugado do par Ariadne-Dionísio faz a roda do eterno retorno acelerar a ponto de expelir a negação. Assim, o que retorna é só o que se afirma, só a diferença. As forças ativas, centrípetas, aproximam tanto a vida que se tem da vida que se quer ter que acabam constrangendo todo tipo de vida reativa a não mais retornar. Nietzsche radicalizado por Deleuze: só o ativo retorna, o eterno retorno do mesmo é ainda um pensamento inacabado.

O próprio eterno retorno é um anel nupcial, […] um espelho de núpcias que espera a alma (anima) capaz de se mirar nele, mas também de refleti-lo ao se mirar”

– Deleuze, Nietzsche e a Filosofia

Se o Além-do-Homem não existe como personagem e nem pode existir, já que é aquilo que não conhecemos, temos em contrapartida nossa trindade afirmativa: Zaratustra, Dionísio e Ariadne. Juntos, eles representam uma vontade elevada à potência da afirmação plena. Conseguimos até vislumbrar: o riso de Zaratustra, a despeito do reativo; a dança de Dionísio, acompanhando a música perene da vida; o jogo de Ariadne, tecendo o fio que atravessa o labirinto.

A morosidade do asno não nos ensinou muita coisa além do fato de que precisamos aprender também a dizer não. Zaratustra nos fez olhar para o acaso por outro ponto de vista, chamando atenção para a demasiada reatividade do homem. Profeta da afirmação, ele nos faz deduzir do acaso a necessidade. Dionísio apresentou-se como única realidade, como espelho fragmentado do mundo, ontologia pluralista. Ele nos faz admitir que o ser é o múltiplo. Ariadne é quem diz Sim ao mundo e toma nas mãos o devir, fazendo do vir-a-ser pura afirmação.

Emblema da necessidade!
Supremo astro do ser!
– que nenhum desejo alcança,
– que nenhum Não macula,
eterno Sim do ser,
eternamente sou teu Sim:
pois te amo, ó Eternidade! — “

– Nietzsche, Ditirambos de Dionísio

Texto da Série:

4 formas de Niilismo

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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J.M. Marun
J.M. Marun
5 anos atrás

Por acaso existe o SIM sem a alimentação de um NÃO? O quê diria Pitágoras?

MARIA MERCEDES CARACCIOLO PICARELLI
MARIA MERCEDES CARACCIOLO PICARELLI
3 anos atrás

MARAVILHOSO!Obrigada!