Mesmo o mais corajoso de nós raramente tem a coragem para o que realmente sabe …”
– Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos
Encontramos-nos muitas vezes oscilando ao sabor das ondas. Passivos, em seus amores fatais, em suas alegrias passageiras, através de suas tristezas necessárias e pelos seus ódios imperiosos. Vagamos, vulneráveis, oscilando entre o medo e a esperança. Acompanhamos a maré imaginando ora o pior, ora o melhor. A incerteza e a finitude são premissas que não podemos suprimir, são as condições de estarmos navegando.
Não haveria porque essa vida – esse mar de forças – nos paparicar com o luxo da calmaria perpétua, nem nos atacar com o impropério da tormenta infinita. Em sua justeza, a vida se apresenta em ondas, inevitáveis variações de intensidade. Jamais teremos certeza sobre o dia seguinte: uma brisa fresca ou um ardente tufão? Da esperança à segurança ou do medo ao desespero? Não podemos prever. Procuramos manter a calma e evitamos nos afogar.
É por isso que não apostamos nas paixões. Medo e a esperança são duas pontas de uma só bandeira que não serve para nosso mastro. Se é preciso navegar, que ao menos escolhamos bem as nossas bandeiras. São elas que nos fazem direcionar as velas. Parece óbvio, mas não é: chegar em algum lugar supõe a descoberta de que nem todos os lugares são os mesmos.
Estar certo de um caminho não é saber exatamente onde ele dará. Não é acabar totalmente com o medo e com a esperança na clareza absoluta do destino. A certeza se faz em um processo aberto, na medida em que a experimentamos como um sentido e não como um destino. Se estamos seguindo o vento que nos leva para o lado certo, teremos menos medo e menos esperança.
Tenhamos mais certezas para sermos melhor surpreendidos! Parece estranho? A certeza não nos torna mais capazes de prever, logo menos capazes de nos surpreender? Não, nós pensamos diferente. Carregar uma ideia certa, clara, uma noção comum, nos faz portadores de uma confiança no mundo. Se tivermos uma má surpresa, ao menos saberemos que estávamos do lado certo. Agora, se algo belo surgir no horizonte, gritaremos: terra à vista!, plenos de uma grata comoção. A certeza não altera o estatuto da surpresa, apenas a intensifica.
Buscamos afetos para além do medo e da esperança, que ultrapassem o campo da paixão e da imaginação. A esperança é a última que morre? Pois não poderíamos discordar mais. Queremos viver à despeito dela, e temos uma enorme variedade de afetos para isso. Já que vamos de encontro ao desconhecido, levemos à mão nossas melhores ideias. Buscamos a coragem para o que sabemos, pois enfrentamos o que não temos como saber de antemão.
Qual é o limiar onde a espera esperançosa se torna ação? Ora, ter alguma certeza é já sentir um pouco de coragem. É superar um pouquinho o medo paralisante e a expectativa passiva. Na imanência, na política e na ética, sempre buscamos as condições que nos tornam capazes de apostar: a coragem ilumina o abismo. Com ela, somos capazes de nos conhecer melhor e de encontrar o mundo. Mas como fazer desse audacioso projeto um processo em afirmação?
Queremos tecer uma linhagem ascendente de afetos em oposição direta ao medo:
1 – Partimos da pura audácia. O próprio pensamento exige ousadia: ‘Será que eu consigo fazer isso ou aquilo?’. Aprendemos a nadar entrando na água. Alcançar o real é mergulhar nele, descobrir a natureza é abraçá-la, para descobrir algo é preciso cultivar as vivências.
A audácia é o desejo pelo qual alguém é incitado a fazer algo arriscado ao qual seus semelhantes temem se expor”
– Espinosa, Ética III, definição dos afetos
2 – Chegamos à coragem de enfrentar o perigo: ‘Sei que posso passar por isso!’ Seguimos o desejo não uma, não duas, mas inúmeras vezes, a ponto de criar uma pequena solidez, frágil constância em meio ao caos, uma amostra de nossas capacidades para então nos apropriarmos disso. A possibilidade do enfrentamento não surge do nada, mas segue um processo de descobrimento. A resistência não se faz do dia para a noite, mas em uma série de pequenos passos dados na mesma direção.
Já não recuamos, atemorizados, diante daquilo que nos incutia medo e respeito, mas ganhamos coragem. Por trás de tudo isso encontramos nossa coragem, nossa superioridade: por trás da ordem rude dos superiores e dos pais está agora nossa vontade corajosa ou nossa esperteza astuta. E quanto mais nos sentimos nós próprios, tanto mais ínfimo nos parece aquilo que antes tomávamos por insuperável.”
– Stirner, O único e sua propriedade
3 – Alcançamos a firmeza: ‘Sei que isso não me favorece’. Uma postura nasce do nosso próprio interesse. Criamos por sob as nossas medidas, um modo próprio de afetar e ser afetados. A partir desse ponto, não se pode confundir mais a coragem com a imprudência. Ter firmeza é conhecer as proporções e saber escolher bem as batalhas. Firme é quem conhece o que deve deixar passar e o que deve refletir, o que deve absorver e o que deve difundir. A firmeza é o reconhecimento das próprias capacidades que o corpo têm de se relacionar com o mundo em cada situação.
No homem livre, portanto, a firmeza em fugir a tempo é tão grande quanto a que o leva à luta; ou seja, o homem livre escolhe a fuga com a mesma firmeza ou com a mesma coragem com que escolhe o combate.”
– Espinosa, Ética, IV, proposição 69, corolário
4 – Nos deparamos com a generosidade: ‘Não estou sozinho!’. Bradar uma certeza bem trabalhada é edificar um pensamento que alcança o outro. A coragem aliada à firmeza não é um salto no nada, ela é implicação no mundo. Aqui, nos afastamos das cegas certezas, preconceitos movidos muito mais por amor e ódio do que por coragem. A certeza de que falamos não é cega, é afiada! Ela se desfaz e refaz num processo de duplo fortalecimento. A certeza coletiva é mais potente do que a individual, ela incide no tecido social, rasgando, abrindo brechas para novas relações passarem.
Para acabar com o medo é preciso pensar com firmeza, é preciso enumerar e imaginar, com frequência, os perigos da vida e a melhor maneira de evitá-los e superá-los por meio da coragem e da fortaleza.”
Espinosa, Ética V, proposição 10, escólio
5 – Finalmente, contemplamos a fortaleza, uma das virtudes do homem livre: ‘Estamos juntos!’ Se a firmeza é a coragem que beneficia o agente e a generosidade é a partilha de um benefício comum, a fortaleza é a constatação dessa soma. Horizontalidade que faz brotar algo novo. Não é nada abstrato: toda relação bem feita, cuidada em seu valor, é um princípio de fortificação. Fortalece-se aquele que encontra a liberdade pela audácia de experimentar, pela coragem de enfrentar o mundo, pela firmeza de apostar em si, pela generosidade de contar com os outros.
A verdadeira liberdade do homem, demonstramos, referem-se à fortaleza, isto é, à firmeza e à generosidade.
– Espinosa, Ética IV, proposição 73, escólio
Uma certeza nos dá coragem de seguir adiante: “Ele está comigo, eles estão comigo”, uma coragem nos leva ao encontro de certezas: “Vou encontrar, vou conseguir, está lá, deve estar, precisa estar”. Uma razão que encontra medidas e se torna afeto: a coragem é o vento que empurra o barco cuja vela é a certeza que carregamos. É o que nos faz seguir adiante, ignorando os monstros que encontramos pelo caminho.
Coragem, amigos! Nossos tempos exigem novamente de nós este afeto. Ele colhe em nosso passado as sementes que serão lançadas no futuro! Se distende impávido entre um e outro. Façamos da firmeza nosso brasão, brademos em generosidade nossas certezas, enquanto o mundo, povoado por covardes, se desfaz em seus fogos de artifícios. Nós seguiremos navegando, valentes, intrépidos. Onde chegaremos? Não sabemos, mas nunca contamos com muito mais do que a sensação de ser empurrados na direção correta. Olha! Adquirimos aqui mais uma certeza: mais vale o destemido esforço do que o incerto destino.
Rafael, recomendo fortemente para quando for referir ao humano, use humano, ao invés de homem.
Abraço
Na verdade, é uma questão da filosofia moderna de maneira geral. Se você perceber, o uso está bastante nas citações e nos conceitos. Eu não usei nenhuma vez no sentido estético, certo? É mais no sentido do conceito de “Homem Livre”, que é uma expressão característica da filosofia de Espinosa e que não faria muito sentido alterar.
Mas saiba que seu incômodo é válido e que nós evitamos os usos estéticos e não temos nenhum apreço pela forma homem.
Obrigado pelo retorno, Laura!
Abraço
Querido Rafael , visito e revisito esse texto . Agradeço-o . Foi a minha porta de entrada para Spinoza e Nietzsche ( bem como o blog ) . Apesar de ter tatuado no peito a frase de Guimarães Rosa ” O que a vida quer de nós é coragem” , esse afeto é sempre um mistério para mim . Ele é uma coisa que se apresenta , que impele , mas que ainda é misteriosa . Retraindo-se sempre que uma tristeza mais aguda ou um medo mais forte se apresentam . No entanto, ele é uma constate na minha vida,… Ler mais >