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Queremos uma diferença de método, não admitimos uma diferença de valor entre a metafísica e a ciência”

– Bergson, O Pensamento e o Movente

Se a duração nos leva por caminhos diferentes, se a intuição é o método que nos faz ir mais longe, isso quer dizer que somos contra a ciência? De modo algum! Bergson é contra o cientificismo, mas não há aqui qualquer menosprezo à ciência. O que não podemos fazer é deixar que ela invada o campo da filosofia e a diga o que pode e não pode fazer. Ou seja, cada um tem seu modo de trabalhar, mas não devem se manter isoladas e muito menos inimigas.

Bergson assim se justifica: o ser tem duas metades, dois polos, uma é a filosofia, a metafísica. A outra metade do ser pode ser conhecida pela inteligência (razão, ciência) e foi desta maneira que a espécie humana evoluiu, privilegiando o intelecto e a capacidade de racionalizar. Uma metade é o espaço, o tempo quantitativo; a outra metade, já sabemos, é a duração. A ciência está a serviço do progresso e da instrumentalização; a filosofia procura a densidade da duração.

Ciência e filosofia não estão em um campo de futebol para ver quem vencerá a partida. Não é um disputa porque não se trata de vencer, mas de cooperar! Ambas tratam da realidade, mas cada uma delas apreende apenas uma parte, uma metade. Se de um lado temos a matéria, objeto de estudos que a ciência toma por direito; do outro temos o espírito, que a metafísica arroga ser seu.

Como o espírito e a matéria se tocam, metafísica e ciência poderão, ao longo de toda a sua superfície comum, pôr-se mutuamente à prova com a esperança de que o contato vire fecundação. Os resultados obtidos de ambos os lados deverão se encontrar, já que a matéria encontra o espírito”

– Bergson, O Pensamento e o Movente

A grande questão de Bergson é como a Filosofia encontra a Ciência, mas outros conceitos podem ser usados aqui: como o espírito encontra a matéria? Como a memória encontra a percepção? O filósofo não deve curvar-se à ciência, com o perigo de perder a sua potência de criar conceitos. Mas se desprezá-la, sua filosofia provavelmente não servirá para nada. Já a ciência não deve arrogar-se ter todas as ferramentas para dar conta da realidade. Por quê? Porque o cientista sempre precisará de capacidade imaginativa para ir além do que seu conhecimento lhe apresenta, neste campo os filósofos serão seus aliados.

No fim das contas, um não pode viver sem o outro. A filosofia existe para fazer o que a ciência tem dificuldades, olhar para além dos dados, olhar para além da determinação. Por isso uma deve complementar a outra. O erro é sempre o excesso de pretensão, uma ciência querendo fazer filosofia e vice-versa.

Como diz Deleuze em seu livro “O que é a Filosofia?“, a ciência necessita de pontos fixos, ela se coloca em um ponto de referência para criar funções e proposições. O caos, o infinito, precisa ser recortado e desacelerado. Por isso o recurso às “condições ideias de temperatura e pressão”. O ambiente científico é idealizado para isolar variáveis. Ela está correta em seu método, caso contrário se perde no caos das variações e fluxos do universo. Eis a grande diferença: a ciência desacelera para encontrar as relações, a filosofia acelera para criar novas relações.

O conhecimento científico limita-se a procurar por instantâneos e imobilidades. A ciência fecha o mundo, ciclo do carbono, ciclo digestivo, ciclo das estações do ano. Tudo se faz de maneira imóvel, como um clico eterno, eterno retorno do mesmo. Mas este Eterno Retorno do Mesmo é o que assusta o filósofo! Este quer o Retorno da Diferença! Qual o perigo da ciência? Não ser capaz de se abrir, de ver o mundo como um processo que dura e se diferencia.

Por isso a dificuldade enorme de pensar a existência como um Big Bang em expansão acelerada. Ora, então não é um universo fechado, constante? Não, o tempo e espaço não são molduras fixas onde o teatro do mundo se passa. O problema da Ciência é sua aposta na inteligência, que só é capaz de atuar com a repetição, com o mesmo. É muito difícil para ela lidar com o novo, o inesperado o súbito.

Aqui cabe a nossa mais profunda admiração por Epicuro e Lucrécio! É tudo uma questão de Clinâmen! Este conceito foi criado para dar conta da teoria atomista destes filósofos/cientistas. O Clinâmen é o átomo que se desvia, que se inclina, e ao realizar tal movimento, faz com que o universo se transforme. O desvio dá origem à diferença. Se há apenas átomos e vazio, então corremos o risco de tudo ser o mesmo o tempo todo, pela eternidade! O que criou o universo heterogêneo? O Clinâmen! O devir submetendo o mesmo, o desvio levando fluxos de átomos a direções novas, fazendo turbilhões de matéria se modificarem constantemente.

Enfim, podemos concluir que a ciência não pode apenas olhar para o que é, mas precisa, e é com esforço que realiza este movimento, olhar para o que tende a ser, abrindo-se para aquilo que ainda não é, mas se cria. De forma alguma cabe a nós enfrentar as ciências, elas não são inimigas, mas cuidar para que elas não avancem em pretensões descabidas.

O objetivo da ciência é oferecer os pontos fixos que nos abram para o desconhecido, mostrar que cada descoberta nos leva para novos e mais maravilhosos problemas. Cada pergunta respondida nos abre mais duas, como um círculo de conhecimentos que amplia a circunferência de nossa ignorância sempre proporcionalmente ao raio de nossas certezas.

Texto da Série:

Duração

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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