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Tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis o essencial”

– Nietzsche, Fragmento Póstumo

Nietzsche nos dá um conselho simples, e é isso que faremos então: tomar o corpo como fio condutor. Onde chegaremos? É difícil dizer por enquanto, mas certamente nos afastaremos da filosofia dogmática e platônica. O corpo é um problema central na filosofia de Nietzsche, ele permite contrapor-se à tradição filosófica que valoriza apenas a alma e o metafísico. Por isso, nas mãos do pensador alemão, este conceito funciona como arma filosófica para nos lembrar que somos deste mundo, e apenas deste.

Desprezadores e Transmundanos

Primeiramente, o filósofo alemão quer uma palavrinha com os pregadores de outro mundo e desprezadores do corpo. Nietzsche quer falar com seus opositores: por que tanto ódio à própria existência? Ora, por que tanta vontade de ir logo para outro mundo? Por que desprezar os instintos, as pulsões? Eles sofrem, só pode ser, estão doentes deste mundo, doentes do próprio existir. Entorpecem o corpo para não senti-lo, não lidar com a materialidade concreta da vida. Afirmar outros mundos para não viver nesse, não afirmá-lo.

Pois bem, se odeiam a si mesmos, por que não dizem adeus ao seu próprio corpo e somem? Não, não é isso que eles querem, preferem maldizer a tudo e todos, preferem ser aqueles que caluniam, depreciam, acusam. Um corpo fraco que encontra meios de sobreviver, mas não de viver. O ressentimento é sua única saída. Triste, não? A filosofia de Nietzsche não quer acusar os acusadores, não quer perder seu tempo. Afastar-se destas filosofias de ódio e desprezo, esta é a primeira atitude.

Qual um dos problemas da filosofia de Nietzsche? Voltar a acreditar na vida! Qual a via? Em vez de tentar subir para o além… deixando o corpo para trás, é preciso descer, voltarmos aos instintos, à carne, ao corpo.

O que é o corpo?

Corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para algo no corpo. O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra

O corpo é a única realidade dos homens e dos seres vivos. Somos corpos entre corpos! Nossa materialidade não pode ser negada, nossa animalidade tampouco. Simples assim! Somos corpo entre corpos e pertencemos à terra! Falar é fácil, mas o que é isso? Podemos responder de três maneiras: o corpo é móvel, mutável e instável

– Jacques Fabien Gautier

Movimento Contínuo

Façamos o exercício de percepção: quando olhamos para nosso organismo, o que vemos? Sangue fluindo nas veias, pulmão enchendo e esvaziando, pensamentos contínuos brotando em nossa cabeça, coração incansável, músculos retesados, tudo está em contínuo movimento. Nietzsche está certo, nosso corpo é uma “guerra e uma paz”, um força afirmativa em constante atividade. O corpo parece ser a própria expressão do vir-a-ser, ele ama a inquietação e o fluxo.

Somos uma relação de forças dinâmicas: cada corpo exprime a sua potência, vai até seu limite, procura vencer obstáculos, ultrapassar resistências, impor ao máximo o seu movimento. Mas o que acontece quando faz isso? Ao atingir seu limite, ele se transforma!

Diversidade Criativa

O que encontramos depois de cruzar os limites do corpo? Ora, Nietzsche chama de Vontade de Potência! Nós podemos traduzir simplesmente como uma pluralidade de forças em transformação, variação e transmutação! São muitos, inúmeros impulsos, infinitas vontades, múltiplas almas que ao se movimentarem, se transformam… toda força que chega no seu limite, se diferencia!

O corpo se move, é dinâmico, e assim se divide, se multiplica, se espalha diferentemente. O corpo é a capacidade de se tornar outro corpo, tudo isso sem se desfazer no processo!

Relações Hierárquicas

Por isso precisamos dizer que, mesmo estas forças em confronto, o corpo não se desfaz, não se desorganiza. Um organismo, diz Nietzsche, não é uma anarquia…. ele é uma estrutura, “um rebanho e um só pastor”, ou então: “Uma multiplicidade dotada de sentido”.

Ou seja: o corpo possui valores dos quais não abre mão, hierarquias que são mantidas a todo custo, um sentido difícil de quebrar, uma meta em si mesmo! Um corpo é, belíssima metáfora, uma estrutura social de muitas almas! Não uma alma imortal, mas muitas almas mortais!

Temos a chance de dizer agora o que é o corpo. Ele é como uma grande cidade, dentro dele existem lutas políticas. Trata-se de uma complexa estrutura de impulsos e de afetos em ebulição, conflito, movimento. Desta instabilidade brota uma ordem, uma frágil e efêmera hierarquia. É o bastante! A Multidão de almas organiza o diverso e o contraditório numa delicada estrutura.

O que pode o corpo?

Já sabemos o que o corpo é, mas o que ele pode? Para isso, Nietzsche se utiliza de outra bela metáfora: O corpo é como um grande estômago, ele digere experiências. Por isso Nietzsche emprega com frequência termos fisiológicos para falar da existência humana: mastigamos experiências, ruminamos pensamentos, digerimos vivências, excretamos o que não nos interessa…

O corpo procura assimilar a existência e selecionar aquilo que importa daquilo que não importa. Algumas coisas ficam, outras vão embora. O que pode o corpo? Incorporar o mundo exterior sob suas próprias medidas e regras. A incorporação pode servir à conservação, nutrição… o que é o básico. Mas também pode servir a expansão, extravasamento, dominação, triunfo. Ora, finalmente temos fundamentos para filosofar com todo o nosso ser. Era isso que faltava a toda a filosofia antes de Nietzsche, era isso que o filósofo alemão não podia perdoar em seus antecessores.

O corpo que outrora foi esquecido agora aparece como o centro das atenções! Ele existe e quer ampliar o seu poder! Ampliar sua Potência dentro da existência! O corpo é vontade de ter mais, de ser mais, de digerir mais, dominar mais, conquistar, crescer. Ir ao seu limite e ver o que acontece…. O corpo é tudo, e como tudo o mais, obedece à lógica da Vontade de Potência.

É apenas entendendo o corpo que podemos começar a filosofar! Quebrando a distância entre o corpo e alma (eles agora são a mesma coisa). Deixando para trás todos os reducionismos, denunciando todas as falsas hierarquias, todas as dualidades simplistas. A filosofia nasce do corpo e morre com ele, não há outra alternativa para Nietzsche.

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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19 Comentários
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Jair CORRÊA
Jair CORRÊA
5 anos atrás

Belíssimo trabalho em prol de uma Filosofia palpável, literalmente.

Mari
Mari
5 anos atrás

Nossa! Me identifico tanto com a filosofia de Nietz!!! Grata por esse texto.

Anderson R
Anderson R
5 anos atrás

Achei poético e até psicólogico, mas nada filosófico. Vamos deixar a Biologia cuidar do corpo, enquanto isso à Filosofia se ocupa da alma; da metafísica. Se assim continuarmos nesse sentido que corpo é uma grande cidade, iremos parar em Freud é transformá-lo num geógrafo que percorre o mundo em busca do “lugar” perfeito.
Deixemos pois à Filosofia cuidar da Filosofia.

Kaio M. Cardoso
Kaio M. Cardoso
Reply to  Anderson R
5 anos atrás

Que bobagem que você disse… “Filosofia cuidar de Filosofia”, ora, poesia e filosofia, tal qual Literatura e história andam no passo da existência de todas. Mandar a Filosofia ocupar o espaço da filosofia, é limitar sua zona de preocupações. E, amigão, para o filósofo, nem a Teologia escapa do seu analisar cético ou reacionario, quiçá “todas as coisas” possíveis de se refletir.

Lucas Renan
Lucas Renan
Reply to  Anderson R
5 anos atrás

Vamos deixar o próprio Nietzsche responder:
A nós, filósofos, não nos é dado distinguir entre corpo e alma, como faz o povo, e menos ainda diferenciar alma de espírito. Não somos batráquios [rãs] pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós”
– Nietzsche, Gaia Ciência, prólogo §3

MARCIO
MARCIO
Reply to  Anderson R
2 anos atrás

por que a filosofia não pode se ocupar do corpo? é o que temos! e a filosofia pós metafísica.

Pamera Francieli Corrêa Pereira
Pamera Francieli Corrêa Pereira
5 anos atrás

Rafael, vc afeta deliciosamente.

Marco Aurélio Alves
Marco Aurélio Alves
5 anos atrás

É uma das coisas mais idiotas que eu li… Se fosse verdade vc deveria citar os mais de 200 (duzentos) corpos incorruptos de Santos católicos que não se decompõem, mas isso só atestaria a existência do divino que vc, Nietzsche, Karl Marx e todos os materialistas negam e tentam valorizar uma carcaça que dura, no máximo, 100 anos…. Deus existe e é bem mais real que esse corpo que vc tenta canonizar… Acredite, Nietzsche buscou a Deus antes da morte … ele viu isso no cavalo de Turim

Thiago Maciel
Thiago Maciel
Reply to  Marco Aurélio Alves
5 anos atrás

A extensão do divino dada por Deus, não se encontra também em nosso corpo? perante a bíblia, Deus fez o homem semelhante a própria imagem. Por que então não valorizar o próprio corpo? entende-lo?

Thiago Maciel
Thiago Maciel
Reply to  Thiago Maciel
5 anos atrás

Não desprezo o que o senhor diz, mas por que tamanho ódio?

João Inaudito
João Inaudito
Reply to  Marco Aurélio Alves
4 anos atrás

Deus, força inexistente criada pela ignorância. Lave sua boca ou sua bunda, ambas fedem iguais.

N Alexandre
N Alexandre
5 anos atrás

Nenhum pensamento deve ser desprezado, por mais que ele, seja oposto do que pensamos entender. Como dizia; o próprio Nietzsche, ” Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos \u2014 e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?” Nietzsche, foi um grande questionador da verdade, da moral, das crenças. Claro muitas vezes, mal interpretado, mas como o próprio filósofo dizia, sua filosofia não era para seu tempo. E parece que até hoje, ela ainda causa grande inquietação, sobre aqueles que se acostumaram com conformismo. Nietzsche viveu, bem além de… Ler mais >

Thiago Maciel
Thiago Maciel
5 anos atrás

Wow! Me sinto extremamente aconchegado lendo o trabalho de vocês, encontrei a pouco tempo e me sinto fascinado. Parabéns á vocês! Obrigado pelo conteúdo.

Bianca Passamani
Bianca Passamani
4 anos atrás

Perfeito Rafael!!! Sou nutricionsta estudiosa de nossa relação com o corpo e a partir de agora irei acompanhar seus textos e do blog Razão Inadequada, em busca de elucidações para aumentar a capacidade de auxiliar as pessoas em seu comportamento alimentar.

Raul
Raul
3 anos atrás

Nietzsche como bom luterano que foi,esqueceu que corpo e alma andam juntos.

JJ. C. Vel.
JJ. C. Vel.
3 anos atrás

Se penso concluo que existo, se existo posso entender o que a razão me revelou, assim consigo chegar a Verdade sobre a existência de um poder divino e estável, eterno como o tempo, seguro como a certeza, existente antes do princípio e que não terá fim, que impele para o bem e é súdito de suas próprias leis. Ao seu toque florescem os rosais e no obscuro solo e nas silenciosas sementes tece o atavio da primavera. Por enquanto é só o que pode ser revelado, quanto ao corpo já sabemos qual será o seu fim, porém os nossos pensamentos… Ler mais >